Há sete anos instalado num prédio de 1.200 metros quadrados vizinho ao Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), o Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH) tornou-se um pólo de difusão do conhecimento em genética sem paralelo no Brasil. É difícil estimar o impacto social de todas as atividades desenvolvidas pela equipe de profissionais ligados à instituição, composta por 11 pesquisadores, cinco médicos e aproximadamente 70 alunos. Mas não seria exagero dizer que cerca de 50 mil pessoas, de várias partes do país, já se beneficiaram de forma direta de alguma iniciativa promovida pelos cientistas com o intuito de disseminar informações sobre biologia molecular. “O conhecimento científico não pode ficar confinado apenas aos limites da universidade”, diz a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do centro e atual pró-reitora de Pesquisa da USP. Indiretamente, o número de beneficiários é muito maior. São cifras impressionantes.
De 2000 até hoje, cerca de 5 mil famílias fizeram um dos 40 testes genéticos disponíveis no Centro Genoma Humano. O impacto desse serviço, que inclui o aconselhamento genético (informações sobre como proceder diante do diagnóstico de uma doença ou da possibilidade de desenvolver ou de transmitir uma patologia de forma hereditária), atinge 20 mil pessoas, se o cálculo levar em conta uma família padrão de quatro indivíduos. No campo educacional, nos dois últimos anos, três cursos foram ministrados no prédio do Genoma Humano, com presença de 550 profissionais, entre professores da rede pública, médicos, jornalistas e tradutores. Um dos materiais didáticos mais interessantes confeccionados pelo centro, uma célula gigante em cujo interior as pessoas podem entrar e conhecer in loco organelas como o complexo de Golgi, foi vista por pelo menos 8 mil crianças de escolas públicas (e de duas particulares) da Grande São Paulo. Sondagens feitas pelos pesquisadores do Cepid indicam que 96% dos alunos que tiveram contato com a célula gigante aprovaram a iniciativa.
A área de educação é realmente um dos focos prioritários do setor de difusão do centro. Outro exemplo dessa vocação para o ensino é uma parceria recém-firmada com a Secretaria de Estado da Educação. O acordo abriu caminho para que o Genoma Humano possa emprestar kits de material didático, microscópios e lupas e fornecer apoio pedagógico a 15 escolas de ensino médio da Zona Norte da cidade de São Paulo. “Quinze professores de biologia, um de cada colégio, são atendidos pela parceria”, diz a bióloga Eliana Beluzzo Dessen, coordenadora de difusão do Cepid. “Cada um dos professores dá aulas para cerca de mil alunos.” Portanto, aproximadamente 15 mil alunos usufruem da parceria. Também foi criado um fórum na internet para que os professores possam tirar dúvidas e fazer perguntas para os cientistas do Genoma. No âmbito da própria universidade, outra iniciativa educacional estimulada pelo Cepid foi a implementação de disciplinas na pós-graduação sobre o ensino de ciências biológicas. No dois últimos anos, 12 alunos cursaram a matéria “Ensino de genética” e, em 2006, 16 estudantes se inscreveram na disciplina “Ensaios pedagógicos no ensino de biologia”.
Nova doença
Sempre que possível, os pesquisadores do centro aliam seu trabalho de investigação científica, que estuda a origem genética de mais de 20 doenças, como as distrofias musculares, o autismo e o retardo mental e as malformações crânio-faciais, a esforços de difusão do conhecimento em biologia molecular. Até uma de suas grandes descobertas recentes gerou uma série de ações na área de educação informal. Em 2005, num feito cada vez mais difícil de ser obtido na pesquisa genética, uma equipe do centro descobriu uma nova doença neurodegenerativa, batizada de síndrome Spoan (em inglês, o nome significa spastic paraplegia, optic atrophy and neuropathy), numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte, Serrinha dos Pintos. Assim que tiveram certeza de que se tratava de uma condição clínica inédita na literatura científica, originada por uma mutação genética que se manifesta devido a casamentos consangüíneos entre primos, os pesquisadores da USP iniciaram um trabalho de divulgação sobre a patologia e noções de genética para os 4.300 habitantes do município potiguar. Desde então, a bióloga Silvana Santos, principal responsável pela descoberta da Spoan e bolsista de pós-doutorado da FAPESP, faz viagens sistemáticas a Serrinha. “Temos de explicar para a população de forma simples, mas correta, o que significa a doença”, diz Silvana, que, no segundo semestre, passará seis meses no interior do Rio Grande do Norte estudando a Spoan e outras patologias genéticas.
Base de apoio
Por reunir serviços e uma enorme quantidade de informação sobre distúrbios de origem genética, o Cepid serve também de base de apoio informal a associações que congregam familiares de doentes com patologias de interesse científico para os profissionais do Genoma Humano. Esse tipo de interação teve início com a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdin), fundada e presidida por Mayana, cujos milhares de pacientes atendidos nos últimos anos foram diagnosticados e orientados no Cepid. Outras entidades, pequenas e sem sede própria, fazem até reuniões esporádicas no prédio do Genoma Humano. “Os pesquisadores se preocupam com seus estudos, mas também fazem questão de dar apoio aos familiares dos pacientes”, diz a bióloga Lucia Pimenta, diretora da Associação X Frágil do Brasil, da qual fazem parte 210 famílias de doentes com essa síndrome, causada por uma mutação num gene no cromossomo X. Mãe de um filho de 17 anos com a doença, que é mais freqüente no sexo masculino e é a segunda causa mais comum de retardo mental, atrás apenas da síndrome de Down, Lucia já fez cursos sobre genética básica no Cepid, em cujas instalações a associação promove duas reuniões anuais, uma palestra mais técnica para seus membros e uma festa de confraternização. Outras entidades semelhantes, como as que juntam as famílias de doentes das síndromes de Angelman e de Prader Will, também promovem encontros no Genoma Humano. “É importante divulgar as peculiaridades de cada doença genética não só entre os pais, mas também entre os médicos, que também têm dificuldades em diagnosticar alguns problemas”, diz a bióloga.
Ao contrário da síndrome de Down, que dificilmente é recorrente numa mesma família, o X Frágil pode afetar vários membros de um clã. Alguns indivíduos podem ser apenas portadores da mutação no cromossomo X, sem apresentar nenhuma manifestação clínica,mas podem transmitir o gene alterado para indivíduos que poderão desenvolver a síndrome. Esse portador da mutação precisa ser avisado de sua condição, mas isso dificilmente ocorrerá em grande escala se não houver profissionais da saúde inteirados sobre o que é o X Frágil (e uma série de outras doenças genéticas de perfil semelhante) e como a síndrome pode ser diagnosticada. Nesse contexto, ganham relevância social os cursos de atualização profissional dirigidos especificamente para certas especialidades da medicina que o Cepid começa a promover. Por ora, apenas um curso com esse perfil, voltado para neurologistas, foi feito no Genoma. A julgar pelo sucesso da primeira iniciativa, que ocorreu no final do ano passado e juntou, durante um dia, cem médicos no auditório do Cepid, a experiência será repetida e incorporada às ações de difusão do centro. “A idéia é fazer um curso assim todo ano, talvez para médicos de outras especialidades”, comenta Fernando Kok, organizador da iniciativa e um dos pesquisadores do Genoma.
A neuropediatra Marcília Martyn, que trabalha em três hospitais na cidade de São Paulo, fez o curso e ficou surpresa com o que viu e ouviu no Cepid. “Tive uma visão geral sobre vários temas e percebi que hoje a pesquisa genética é muito diferente daquilo que ouvíamos no passado”, diz a médica. “Os médicos também ficaram satisfeitos em saber que podem ter acesso aos testes genéticos feitos no Genona Humano.” Marcília já enviou vários pacientes com problemas mentais e surdez, casos de difícil diagnóstico, para realizar exames na USP. “Hoje em dia há famílias que chegam no consultório com muita informação da internet sobre a doença que acreditam ter e logo pedem para fazer um teste genético”, conta a neuropediatra. Muitos profissionais da área da saúde têm uma idéia equivocada sobre a atuação do centro da USP. Acham que ali só são realizados exames genéticos para detectar doenças que são alvo de interesse científico dos pesquisadores do Cepid. É claro que essas patologias são a razão de ser do Genoma Humano, mas o centro também realiza testes genéticos de outras doenças genéticas. “Os serviços e exames relacionados a problemas que estudamos no centro são gratuitos”, explica Maria Rita Passos-Bueno, pesquisadora do Cepid responsável pela parte de transferência de tecnologia. “Para as demais patologias, cobramos pequenas taxas.” Para facilitar ainda mais o acesso da população mais carente aos testes genéticos feitos na USP, os cientistas gostariam que o Sistema Único de Saúde (SUS) federal cobrisse as despesas dos exames que não podem ser debitados na conta das pesquisas científicas.
Artigos científicos
Ainda poderiam ser contabilizados entre as atividades de difusão do Cepid mais de uma centena de artigos científicos publicados nos últimos sete anos em revistas científicas do exterior e também daqui. Isso sem mencionar as inúmeras reportagens e entrevistas que os pesquisadores do Genoma Humano concederam nesse período à imprensa nacional. Mayana Zatz, coordenadora do centro, tornou-se uma figura conhecida nacionalmente depois de participar ativamente em Brasília dos debates que levaram à aprovação da Lei de Biossegurança em 2005. No geral, as iniciativas do Genoma Humano para levar um pouco mais de genética à vida das pessoas têm obtido reconhecimento até de outros pesquisadores. “Os programas educacionais e o aconselhamento genético do centro são excepcionais”, diz Keith Campbell, da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, um dos “pais” da ovelha clonada Dolly, que esteve em março em São Paulo para avalia o conjunto das atividades desenvolvidas pelo Cepid. As atividades de difusão do Genoma Humano são desenvolvidas apenas com verbas do próprio orçamento do Cepid, da ordem anual de R$ 1 milhão. “Infelizmente, ainda não conseguimos captar dinheiro de fora para nossas iniciativas”, afirma Eliana Dessen.