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Física

Método permite descobrir se duas partículas de luz estão emaranhadas por meio de medições feitas em apenas uma delas

Abordagem foi concebida por brasileira em trabalho conjunto com ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2022

Representação do fenômeno de interferência causado pela superposição de duas ondas de luz

Petrovich9 / Getty Images

Área contraintuitiva e desafiadora da lógica que rege as interações no mundo macroscópico da física clássica, a mecânica quântica descreve o comportamento da matéria e da luz na escala do átomo e das partículas subatômicas. Uma de suas propriedades mais estranhas e, ao mesmo tempo, definidoras é o emaranhamento quântico. Nesse estado, duas (ou mais) partículas se comportam como se fossem uma entidade única, entrelaçada, ainda que estejam separadas por qualquer distância. O resultado de medições feitas em uma partícula está correlacionado com o valor obtido para a outra.

Um artigo publicado no início de março na revista científica Physical Review Letters indica que é possível determinar se um sistema composto por duas partículas de luz (fótons) está emaranhado, mesmo quando se realiza medições em apenas uma dessas partículas. No trabalho, são apresentados um método experimental e os conceitos teóricos que permitem realizar esse tipo de aferição.

O estudo foi coordenado pelo austríaco Anton Zeilinger, da Universidade de Viena, um dos três ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 2002 por suas pesquisas na área de emaranhamento quântico. A física Gabriela Barreto Lemos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que fez um estágio de pós-doutorado no grupo de Zeilinger na década passada, é a primeira autora do estudo. “Nosso método é útil para ser usado em situações em que, por algum motivo, não há um detector disponível ou eficiente para medir o estado de uma das partículas emaranhadas”, comenta Lemos.

O entrelaçamento é um fenômeno tão espetacular quanto frágil. A conexão misteriosa que mantém duas partículas, como fótons ou elétrons, correlacionadas pode se desfazer devido a interações com as mais diversas variáveis do ambiente, como flutuações de temperatura, ações de outras partículas ou perturbações mecânicas. Por isso, é importante ter certeza se há realmente emaranhamento em sistemas criados pelo homem no mundo real, fora das condições idealizadas pela teoria. “Os resultados desse novo estudo podem ser úteis, por exemplo, para o desenvolvimento de protocolos de certificação de sistemas de criptografia quântica”, diz o físico Roberto Serra, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que não participou do estudo.

O primeiro passo do trabalho experimental conduzido pelo físico austríaco e pela brasileira consiste no uso de duas fontes idênticas, compostas de um laser e de um cristal, para produzir fótons. Cada fonte gera, em momentos distintos, um par de fótons, alfa e beta, que exibe uma propriedade fundamental da mecânica quântica conhecida como superposição de estados. Ou seja, cada partícula se encontra, a um só tempo, em dois estados diferentes até que seja realizada uma medição nela. Quando isso é feito, a partícula assume um dos estados possíveis.

No experimento, essa superposição significa que cada par de fótons, independentemente de ter sido produzido pela fonte um ou dois, comporta-se como se tivesse nascido de ambos os cristais. O fóton alfa proveniente da segunda fonte tem propriedades quânticas idênticas e se propaga pelo mesmo trajeto percorrido pelo alfa emitido pelo primeiro cristal. A situação do fóton beta é ligeiramente diferente. Dependendo de onde foi gerado, se na primeira ou na segunda fonte, cada partícula beta, a despeito de sua enorme similaridade, percorre um caminho de propagação distinto. Esses dois trajetos díspares podem ser combinados com um aparato óptico e, assim, gerar um padrão característico de ondas que pode ser observado em um detector.

Esse padrão é o registro da chamada interferência quântica e, no experimento, decorre da combinação dos possíveis caminhos que podem ser percorridos pelos fótons beta se gerados na primeira ou na segunda fonte. Ele serve para confirmar se há emaranhamento no sistema e qual é o grau dessa correlação, se forte, média ou fraca. A resposta é obtida sem nenhum fóton alfa ter sido detectado. “Usar o padrão de interferência quântica para verificar se há emaranhamento no sistema é uma sacada genial”, diz o físico Marcelo Martinelli, da Universidade de São Paulo (USP), que não tem participação no estudo.

A abordagem só é possível devido à natureza dual da luz, que é, ao mesmo tempo, uma partícula e uma onda. No experimento de Lemos e Zeilinger, a combinação de dois caminhos possíveis para o fóton beta resulta em um novo padrão de onda. De acordo com as propriedades da onda original do fóton beta, essa interação, ou interferência para usar o jargão dos físicos, pode produzir uma onda final maior, amplificada, ou menor, reduzida ou até mesmo inexistente. Esse fenômeno quântico é similar às oscilações criadas por pedras atiradas contra a superfície de um lago, que, ao interagir, podem amplificar ou cancelar as ondas iniciais.

“Nesse novo trabalho, usamos uma abordagem similar à que empregamos em um estudo de 2014 que gerou a imagem de um objeto sem usar as partículas de luz que tinham entrado em contato com ele”, conta Lemos. No estudo de nove anos atrás, também feito com a equipe de Zeilinger e publicado na revista Nature, os físicos criaram um par de fótons emaranhados, um com comprimento de onda infravermelho e outro correspondente à cor vermelha (ver Pesquisa FAPESP nº 224). Apenas os fótons infravermelhos interagiram com a silhueta recortada de um gato em um pedaço de cartolina. No entanto, foram os fótons de cor vermelha que foram detectados e produziram a imagem do felino. Por estarem entrelaçados, os fótons infravermelhos, que nunca foram detectados, “transmitiram” as informações sobre a imagem para seus irmãos de cor vermelha.

Artigos científicos
LEMOS, G. B. et al. One-photon measurement of two-photon entanglement. Physical Review Letters. v. 130, n. 9. 3 mar. 2023.
LEMOS, G. B. et al. Quantum imaging with undetected photons. Nature. v. 512, n. 7515. 28 ago. 2014.

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