Pesquisadores brasileiros estão desenvolvendo, com abordagens inovadoras, biomateriais para aplicações nas áreas médica e odontológica que fazem ligações com o tecido celular e auxiliam na formação dos vasos sanguíneos e na rápida recuperação do osso. Um desses materiais bioativos é uma membrana feita a partir da celulose produzida por bactérias que traz em sua composição peptídeos (pedaços de proteínas) sintetizados em laboratório, capazes de estimular processos que melhoram a reparação óssea, além de elementos constituintes dos ossos como colágeno e hidroxiapatita. Em contato com os fluidos fisiológicos, os materiais classificados como bioativos, a exemplo de cerâmicas e vidros, são capazes não só de regenerar a camada perdida, mas também de fazer a ligação com o tecido ósseo. São materiais diferentes do titânio, por exemplo, muito usado para fixar implantes, mas que não possui uma ligação química efetiva com o osso.
O material compósito à base de celulose bacteriana desenvolvido na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, no interior paulista, pode ser usado em implantes dentários em casos em que não há osso suficiente para colocação do pino de suporte ou em processos de extração de dente que resulta em encolhimento do osso (veja o infográfico). Os testes já feitos dão indicações de possíveis aplicações para reparação de pequenas fraturas ósseas em locais sem grande carga mecânica, como ossos da face. A celulose já é utilizada na área médica, a exemplo dos curativos antibacterianos indicados para queimaduras vendidos comercialmente, mas não havia sido usada até agora para regeneração de tecidos ósseos.
ana paula campos“Introduzimos na celulose dois tipos de peptídeos, um contendo cinco resíduos de aminoácidos e outro 14, e os dois promoveram uma melhor reparação óssea”, diz o professor Reinaldo Marchetto, do Instituto de Química, coordenador do projeto e líder de um grupo de pesquisa de Síntese, Estrutura e Aplicações de Peptídeos e Proteínas na Unesp de Araraquara. Marchetto foi o orientador do trabalho de doutorado da cirurgiã-dentista Sybele Saska, premiado na 88ª Sessão Geral da Associação Internacional de Pesquisa Dentária, em julho de 2010 em Barcelona, na Espanha, como o melhor trabalho na categoria Materiais Dentários. O estudo faz parte de dois projetos financiados pela FAPESP coordenados pelo pesquisador. Em função dos resultados obtidos foi feito um depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) com auxílio do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi), também da Fundação.
A celulose é formada por nanofibras produzidas pelas bactérias do gênero Gluconacetobacter e cada uma possui entre 10 e 50 nanômetros – 1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão. Elas são expelidas pelas bactérias que ficam imersas em um meio de cultura composto por glicose, aminoácidos, extrato de levedura e sais, por um período de 120 horas a uma temperatura de 28ºC. As camadas vão se sobrepondo até formar uma espécie de manta de consistência gelatinosa formada entre o meio de cultura e a superfície. Ao atingir 5 milímetros de espessura, a manta é retirada do meio para lavagem e remoção das bactérias. Depois de passar por um tratamento químico, lavagens com água destilada e esterilização, sobra apenas a celulose pura na qual são adicionados componentes como o colágeno, a hidroxiapatita e os peptídeos.
Após análises das propriedades físico-químicas do material e ensaios mecânicos de resistência e tração, os pesquisadores realizaram testes in vitro com células precursoras de ossos cultivadas por até 21 dias sobre as membranas contendo os peptídeos e sem a presença deles. “As amostras que receberam os peptídeos tiveram uma proliferação muito maior de células de osteoblastos, as células jovens do tecido ósseo, e o processo de mineralização foi superior quando comparado com as amostras sem as proteínas”, diz Marchetto. O resultado sugere uma regeneração mais rápida do osso. Encerrados os ensaios in vitro, os pesquisadores fizeram testes empregando regeneração óssea guiada em pequenos defeitos no fêmur de ratos. As análises para avaliar a biocompatibilidade, a eficiência do peptídeo regulador e a densidade óssea abrangeram períodos de 7, 15, 30 e 120 dias. “O peptídeo realmente promoveu a condução e a indução óssea”, relata Marchetto. Entre 15 e 30 dias o osso estava formado. Os ensaios iniciais apontaram que a reabsorção das membranas pelo organismo só ocorre em períodos superiores a 120 dias. Para a membrana de celulose modificada ser aplicada em consultórios odontológicos ainda são necessários novos testes com animais e pessoas.
Outro biomaterial, desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é um vidro bioativo composto basicamente por sílica, cálcio e fósforo, indicado inicialmente para recuperação óssea em implantes dentários. Futuramente, o produto poderá ser usado em aplicações ortopédicas como reparo de vértebras e em associação com o colágeno, por exemplo. Suas aplicações se estendem para a substituição de ossos com maior resistência mecânica, como pernas e braços. No mercado brasileiro já existem biovidros fabricados por empresas norte-americanas, mas o material desenvolvido na universidade e que está em fase de aperfeiçoamento na empresa startup Ceelbio, de Belo Horizonte, traz como inovação o seu processo de síntese à temperatura ambiente. Além de gastar menos energia, o processo permite a incorporação de fármacos com liberação controlada e ação localizada. “No processo convencional, de fusão das matérias-primas e resfriamento rápido, o biovidro é fabricado a 800ºC”, diz a professora Rosana Domingues, do Instituto de Ciências Exatas da UFMG, coordenadora do projeto do biovidro e uma das sócias da Ceelbio. “A alta temperatura torna o material denso e não permite a incorporação de medicamentos.”
Os pesquisadores escolheram uma rota de síntese chamada sol-gel, que consiste em uma sequência de processos químicos acelerados por um catalisador, à temperatura ambiente. No final do processo é obtido um gel com estrutura porosa, transformado em pó para facilitar a preparação e adição de medicamentos. Os ensaios de avaliação da toxicidade do material reconhecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) comprovaram que ele não é tóxico. Em parceria com o Instituto de Ciências Biológicas e a Escola de Odontologia da UFMG, os pesquisadores fizeram testes in vitro e em ratos, além de um estudo preliminar com pessoas, utilizando o vidro bioativo associado a antibióticos e anti-inflamatórios, com bons resultados.
As pesquisas na universidade que levaram ao desenvolvimento do biovidro à temperatura ambiente tiveram início no final da década de 1990, com uma aluna de doutorado orientada por Rosana que criou um biomaterial à base de hidroxiapatita e zircônia. Desde então foi criada uma linha de pesquisa exclusiva para o desenvolvimento de materiais cerâmicos bioativos no Departamento de Química da UFMG. O desenvolvimento do biovidro pela rota sol-gel teve um pedido de patente depositado em 2002 e a partir de 2008 estudos dirigidos para aplicação comercial. Além de Rosana, o professor Tulio Matencio, do mesmo departamento, também é sócio da Ceelbio, que inicialmente ficou abrigada na incubadora de empresas da UFMG, a Inova. Como a incubadora não possui alvará para funcionamento na área biológica, a empresa está de mudança para a incubadora da empresa Biominas, a Habitat. A Ceelbio trabalha com materiais cerâmicos em duas linhas distintas. Uma é a de células a combustível, equipamento semelhante a um gerador para produção de energia elétrica a partir do hidrogênio, e a outra são as cerâmicas bioativas para a área biológica. O projeto que resultou no biovidro recebeu financiamento no valor de R$ 30 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), R$ 120 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e R$ 67 mil por ter vencido o Desafio Brasil 2011, um prêmio de empreendedorismo e inovação promovido pela Intel e pelo Centro de Estudos em Private Equity e Venture Capital da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas.
Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o grupo de pesquisa do professor Celso Bertran, do Instituto de Química, desenvolveu uma modificação funcional na superfície de um biovidro comercial chamado Bioglass 45S5, composto por cálcio, fósforo, silício e sódio, que acelera as reações de interação com o organismo, induzindo a um crescimento mais rápido de tecidos ósseos. “Modificamos a superfície do biovidro com íons cálcio em concentração adequada”, diz Bertran, orientador da tese de doutorado de João Henrique Lopes, com bolsa da FAPESP, que resultou em um depósito de patente no INPI pela Agência de Inovação da Unicamp, a Inova. Essa modificação funciona como um acelerador do processo de formação do fosfato de cálcio na interface entre o biovidro e o tecido ósseo. “Conseguimos acelerar a resposta biológica do biovidro sem precisar alterar a facilidade do seu processamento”, relata Bertran. Tanto o processo como o material resultante são novos.”
A caracterização completa da composição da superfície do biovidro assim como a determinação da velocidade com que os íons que compõem a superfície modificada são liberados para o tecido, tornando-se responsáveis pelos processos indutores de formação óssea e conexão do biovidro com o tecido hospedeiro, já foram feitas pelos pesquisadores. A ideia inicial era modificar a superfície do biovidro mantendo as propriedades vítreas, o que foi conseguido com sucesso. Atualmente a pesquisa tem como foco a determinação dos mecanismos de modificação da superfície do biovidro e a avaliação biológica do material in vitro.
Os Projetos
1. Peptídeos sintéticos com aplicação na área de saúde: perspectivas de inovação e desenvolvimento tecnológico (nº 2010/10168-8); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Reinaldo Marchetto – Unesp; Investimento R$ 366.830,00 (FAPESP)
2. Nanocompósitos à base de celulose bacteriana para aplicação na regeneração do tecido ósseo (nº 2009/09960-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Reinaldo Marchetto – Unesp; Investimento R$ 131.672,04 (FAPESP)
3. Materiais nanocompósitos à base de celulose bacteriana, colágeno, hidroxiapatita, fatores de crescimento e peptídeos afins, para aplicação na regeneração de tecido ósseo (nº 2009/50868-1); Modalidade Programa de Apoio à Propriedade Intelectual; Coordenador Reinaldo Marchetto – Unesp; Investimento R$ 18.651,50 (FAPESP)