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Pesquisa na quarentena

“Minha fantasia no Carnaval de 2020 foi de professora, mas veio a pandemia e tudo mudou”

A biomédica Isis Souza escreveu e defendeu sua tese de doutorado sobre zika, ganhou o Prêmio Capes, passou em dois concursos e deu aulas: tudo dentro do quarto

Mesa e cadeira na zona Norte do Rio de Janeiro foram palco para a finalização e o reconhecimento do trabalho que visou desenvolver um modelo animal para o estudo dos efeitos da zika

Reprodução YouTube CAPES_Oficial

Em fevereiro de 2020 fiz um concurso para professor substituto da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], estava muito feliz com a oportunidade de ter uma experiência didática mais séria. Era permitido ter o doutorado em andamento, e fui selecionada. O início seria imediato, minha fantasia de Carnaval foi de professora. Mas veio a pandemia e tudo mudou.

Meu limite de defesa era setembro e em março ainda estávamos fazendo experimentos. Comecei o doutorado em 2016, quando a epidemia de zika chegava ao fim, era uma área de pesquisa muito competitiva. Por isso, trabalhamos muito rápido e, quando toda a atividade presencial foi suspensa, eu tinha o suficiente para defender. As contratações também foram paralisadas. Passei a procurar oportunidades on-line, como fazer cursos, participar de palestras e seminários. E escrever a tese.

Trabalhei com infecção pelo vírus zika em camundongos, em modelo neonatal. Também participei do projeto da minha colega Fernanda Barros-Aragão com camundongos adultos. A ideia era termos modelos de animais robustos. Nos debruçamos inicialmente sobre características de esquizofrenia. As crianças que nasceram durante a epidemia estão com cerca de 5 anos e sabemos que os danos no neurodesenvolvimento podem ter consequências duradouras. Cerca de 70% delas desenvolvem epilepsia, algo que descobri sem querer durante o doutorado. Percebi que o comportamento dos animais na infância estava estranho, eu achava que era algum problema motor. Filmei e mostrei para minha orientadora, que identificou ser convulsões. Também acontece declínio cognitivo, dificuldade no relacionamento social. O modelo animal se mostrou bem preditivo, foi a maior contribuição. É um problema de saúde pública brasileiro, não podemos esperar que outros países resolvam. Temos cientistas capazes de solucionar os problemas que temos aqui, e precisamos fazer isso.

A pandemia de Covid-19 mudou a atenção para problemas de saúde pública mais urgentes, mas dados de vigilância da Fiocruz mostram que existem cepas diferentes de zika em circulação no Brasil. A qualquer momento podemos ter uma nova epidemia.

Em agosto, com a perspectiva das aulas em formato remoto, a universidade retomou as contratações. Foi uma loucura para mim: alguns meses antes eu era uma aluna que começaria a ter experiência como docente, e de repente precisava ser professora dentro da minha casa, em um sistema que ninguém sabia usar e ter contato com os alunos apenas on-line. Eu não adaptei para o formato remoto algo que eu já sabia fazer: comecei do zero naquela situação. Minha área é neurofarmacologia, mas também dei aulas de farmacologia cardiovascular, endócrina e básica. Precisei aprender muita coisa para ensinar, sozinha no quarto com meus gatos. Ao mesmo tempo, escrevia a tese e buscava oportunidades de pós-doutorado.

Em 2019 eu tinha conhecido um pesquisador francês, dr. Jean-Pierre Mothet, que trabalha com balanço excitatório/inibitório, algo que eu queria muito aplicar ao entendimento da epilepsia gerada pelo vírus zika. Mas era preciso conseguir uma bolsa. Fui rejeitada várias vezes, mas na quinta tentativa obtive pela Embo – European Molecular Biology Organization. Fui entrevistada pelo neurocientista dinamarquês-sueco Ole Kiehn, que é membro da comissão que seleciona o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Foi bem tenso. Em março deste ano pedi demissão como professora substituta para assumir o pós-doutorado. A pandemia estava em uma fase melhor e seria possível viajar.

Mas poucos dias depois de fazer o pedido de visto as fronteiras voltaram a fechar, o consulado parou de funcionar e fiquei presa no Brasil sem emprego. Em maio houve a seleção para uma vaga de professor adjunto na UFRJ, a primeira etapa seria presencial e as seguintes on-line. Pelas restrições, só 16 dos 42 inscritos compareceram. O anúncio foi on-line, então existe uma gravação com a minha cara de surpresa quando soube que tinha sido selecionada. Dá para escutar minha mãe chorando no fundo do vídeo. Ela estava no cantinho, fora da tela.

Meu quarto foi o mundo durante a pandemia, tudo aconteceu dentro dele. Moro na zona Norte do Rio de Janeiro, então acontecem coisas típicas: passa o carro do ovo ou do hortifrúti, o vizinho põe música para tocar, os cachorros latem.

Contei muito com a ajuda da minha psicóloga, que me acompanha desde o final de 2019. A pressão do doutorado era muito grande, não tinha tempo de cuidar de mim, não existia fim de semana nem feriado. Em dias como 26 e 30 de dezembro, eu estava fazendo experimentos, era muito intenso e acabou ficando difícil sustentar.

Eu queria uma tese de que eu me orgulhasse. Fiz um bom trabalho, por isso entrei com uma boa sensação na competição do Prêmio Capes de Teses. Acho que valorizaram o fato de ser um tema relevante para o Brasil, que tem uma aplicação com bom potencial. Estava no laboratório, fazendo experimento, quando descobri que ganhei. Foi em setembro, estávamos começando a voltar ao laboratório com os devidos cuidados. Eu estava no meio de um experimento e fui conferir o e-mail, estava esperando uma mensagem importante e encontrei a resposta do prêmio. Não podia falar com ninguém e não conseguia me concentrar, as mãos tremiam. Só meia hora depois terminei o experimento e pude comemorar.

Durante a seleção para professor fui aberta à oportunidade de ir para a França e os professores deram muito apoio. Estamos em uma situação muito precária no Brasil em termos de financiamento para ciência e é difícil captar alunos sem aulas presenciais. A UFRJ então aprovou meu pedido de missão científica no exterior.

E ela acaba de começar. Consegui vir para a França no final de outubro. Estou alojada em um castelo onde há quartos para pesquisadores visitantes em Gif-sur-Yvette, ao sul de Paris, onde fica a Universidade Paris-Saclay. É temporário, até eu conseguir um apartamento.

As pessoas ainda usam máscara em lugares fechados, mas raramente na rua. Eu continuo usando. Para ir a museus, cinemas e centros comerciais, é preciso ter o passe sanitário. Eu tenho o meu, eles permitem a conversão de atestados estrangeiros para o europeu.

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