Os aparelhos que lêem o código de barras dos produtos nos supermercados, e se espalham por outros estabelecimentos do comércio, estão ganhando uma pequena peça que poderá torná-los mais rápidos e eficientes. Acionado por um campo eletromagnético, essa peça, que possui o tamanho de 25 milímetros de comprimento por 12 milímetros de largura, chamada de defletor ou scanner, leva no seu interior um produto precioso com a espessura de 70 micrômetros (também chamados de mícrons) ou 0,07 milímetros de espessura. É uma trilha de ouro instalada no centro do rotor, a parte giratória do scanner que faz a leitura das barras impressas nas embalagens. A incorporação dessa inovação vai ampliar os exemplos de produtos da tecnologia de microfabricação, um segmento que cresce em importância no atual estágio do desenvolvimento industrial.
No nosso dia-a-dia, vários exemplos já mostram o potencial dessas micropeças que sempre ficam escondidas dentro de equipamentos bem maiores se comparados com elas, como nas cabeças de bicos de impressoras de jato de tinta, sistemas portáteis de dosagem de glicose e os acelerômetros, micromáquinas que acionam o air-bag de veículos. “A microtecnologia trabalha com dimensões de alguns micrômetros a alguns centímetros”, explica o professor Luiz Otávio Saraiva Ferreira, coordenador do Projeto Multiusuário de Microfabricação (Musa) do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e mentor do oscilador para leitores de código de barras, projeto que recebeu financiamento da Fapesp.
Não tão famosa como a sua irmã mais nova, a nanotecnologia, já usada nos chips eletrônicos, mas ainda em fase experimental em vários campos de estudo, a microfabricação, além de estar presente em diversos produtos, é a esperança para um amplo leque de atuações. Por exemplo, ela está cotada para formulação de microdispositivos de análise clínica que vão funcionar num recipiente do tamanho de uma caixa de fósforos e dispensar num futuro não muito distante os tradicionais exames de sangue. Apenas uma gota retirada do dedo do paciente – como atualmente nos exames rápidos de diabetes – será suficiente para se fazer um hemograma ainda no consultório do médico ou ao lado de um leito hospitalar.
Ganha o paciente, que não precisará mais ver uma seringa perfurar o seu braço e ganha o médico, que poderá ver o resultado de forma instantânea na tela do computador que estará conectado ao microdispositivo de análise clínica. “Ainda estamos no começo, testando as enzimas, as interfaces elétricas e caracterizando os polímeros que vão ser usados nos microcanais que farão a análise do sangue”, diz o químico Júlio César Bastos Fernandes, pós-doutorando no LNLS com bolsa da FAPESP, que iniciou em setembro do ano passado um projeto de construção desses microdispositivos de análise clínica.
Pesquisadores convocados
O braço mais famoso da microfabricação é a microeletrônica, responsável pela produção de chips. Para tornar o outro braço da microfabricação, que produz micropeças não-eletrônicas, mais famoso e mais útil aos pesquisadores brasileiros e futuramente à indústria, o Projeto Musa trabalha para assegurar essa notoriedade. Por meio de rodadas anuais de editais, o grupo convoca pesquisadores interessados em micropeças para diversos experimentos. O próprio slogan do Musa define bem a sua função: “Você projeta, nós fabricamos e você testa”.
Dessa forma, desde sua criação no LNLS em 1999, num projeto idealizado pelo professor Ferreira ainda utilizando as instalações do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD), criado pela antiga Telebras, o Musa já proporcionou a fabricação de micropeneiras para limpeza de água, microdutos para contagem de bactérias no leite, guias de laser e até um microdispositivo que serve como base para o crescimento de neurônios em pesquisas laboratoriais. Além do suporte do LNLS, o Musa recebe apoio da FAPESP, do Centro de Pesquisas Renato Archer (Cenpra), antiga fundação Centro Tecnológico para a Informática (CTI), e do Centro de Componentes Semicondutores (CCS) da Faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Alta velocidade
O experimento que está mais próximo de ganhar o mercado é mesmo o do professor Ferreira. Com a colaboração do aluno de mestrado Pedro Ricardo Barbaroto, do CCS da Unicamp, ele finaliza o defletor de feixes de luz que se movimenta por indução eletromagnética e faz a varredura do código de barras. Fabricado com um monocristal de silício, o novo dispositivo tem resistência mecânica melhor que o aço-mola, com custo menor e melhor desempenho que os equipamentos usados atualmente. A velocidade do novo dispositivo se comparado com a dos atuais é também um fator favorável. Ele pode oscilar 1.300 vezes por segundo, enquanto os aparelhos existentes no mercado não podem oscilar acima de 30 vezes com risco de se enganar na leitura.
“Já patenteamos o princípio do acionamento do mecanismo por indução nos Estados Unidos e no Brasil”, conta Ferreira. O defletor está incluso nessas patentes. Agora, o trabalho de Ferreira e de Barbaroto é miniaturizar a parte do defletor, chamada de estator, peça que não se movimenta durante o funcionamento do aparelho. “Se uma empresa se dispuser a produzir esse equipamento em larga escala, ele vai ficar barato”, assegura Ferreira. Outro experimento produzido no Musa que apresenta possibilidades futuras de ser utilizado pela indústria – e que já foi testados em campo – são as micropeneiras, dispositivos que podem ser utilizados para retirar partículas muito pequenas suspensas em gases ou em líquidos, além de servir para separar, por tamanho, partículas sólidas em pó.
As micropeneiras projetadas e testadas pela professora Maria Aparecida Silva, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp, são feitas de cobre no tamanho de um centímetro por um centímetro e possuem 67 mil orifícios com diâmetro de 20 mícrons cada um. Com essa micropeneira foram realizados experimentos de filtração de água em laboratório, utilizando-se amostras coletadas de uma estação de tratamento de água da Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento (Sanasa) de Campinas.
“Com a filtração da água bruta, conseguimos a retirada de 95% da matéria orgânica, e a filtração da água tratada quimicamente apresentou um índice de transparência de 99,9%”, diz Maria Aparecida. “Esse produto teve bons resultados experimentais e tem potencial de uso no tratamento de água a um preço barato e com amplo impacto social, se produzido em larga escala.” A micropeneira também poderá ser utilizada como membrana filtrante em sistemas de hemodiálise, que filtra o sangue de pessoas com insuficiência renal. Com esse novo dispositivo, fica mais viável o desenvolvimento de um equipamento portátil para hemodiálise. Maria Aparecida tem confiança no uso futuro da micropeneira tanto no tratamento de água como na hemodiálise, porque a boa uniformidade dos orifícios garante o sucesso técnico do dispositivo.
As possibilidades abertas com projetos de microfabricação são amplas. Os dutos dos microdispositivos fabricados no LNLS também já cedem espaço para projetos inovadores, como o do professor Elnatan Chagas Ferreira, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp. Ele pesquisa um contador de bactérias no leite por meio de microdutos e fibras ópticas. “A contagem das bactérias é feita no meio líquido em microdutos fabricados no Musa que medem 100 mícrons de largura e 100 mícrons de altura”, explica Ferreira. Ele e o doutorando André Teixeira estão elaborando um protótipo de contador de bactérias automatizado acoplado a um microscópio óptico especial que faz a contagem dos microrganismos.
Neurônios de escargô
Outros projetos também produziram dispositivos para contato com material orgânico. Um deles foi a criação de uma microestrutura para a cultura de neurônios num trabalho realizado no Laboratório de Microeletrônica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Dois doutorandos, Henrique Estanislau Maldonado Peres e Nathalia Peixoto, sob a orientação do professor Francisco Javier Ramirez-Fernandez, desenvolveram um dispositivo de 1,2 milímetro de lado, com cavidades para orientar o crescimento de neurônios de escargô (Helix aspersa) em meio de cultura. Os experimentos mostraram que as células aderem e crescem sobre as estruturas e podem ser estimuladas por meio de microeletrodos. “Precisamos, agora, desenvolver um dispositivo com canais de maior profundidade para acomodar os neurônios”, explica Peres. “O maior sucesso foi estudar a propagação de sinais elétricos (ou estímulos elétricos) nos neurônios in vitro.”
Testador portátil
O óleo de cozinha usado em restaurantes e outros estabelecimentos de produção de alimentos, como as pastelarias, foi o objeto de um experimento realizado no Musa pelo professor Edval Santos, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele desenvolveu um capacitor que mede as constantes dielétricas (resistência à passagem de corrente) de líquidos como óleo de cozinha, solventes e combustíveis. “Com esse capacitor poderemos, por exemplo, caracterizar o óleo de cozinha usado no comércio, medindo a qualidade desse produto”, explica Santos. O mesmo princípio poderá ser também utilizado para detectar adulterações em combustíveis.
Conforme o tempo de fritura, o óleo pode perder as características originais e tornar-se, inclusive, cancerígeno. Uma das maneiras de avaliar essa degradação é medir as propriedades elétricas do óleo com o capacitor, que funciona como um sensor químico. “Com o microcapacitor produzido no Musa é possível montar um sistema de inspeção para testar no próprio local a qualidade do óleo, funcionando como um sistema de triagem para o laboratório que irá emitir um laudo conclusivo”, prevê Santos.
Entre os vários projetos já executados pelo Musa estão, por exemplo, uma pinça para manipular cristais de proteínas, ferramenta útil para os pesquisadores do Centro de Biologia Molecular Estrutural do LNLS. “Já temos a pinça, agora precisamos criar o mecanismo que dará movimento a ela”, explica Izaque Alves Maia, pesquisador do Musa. Como a pinça, outras peças produzidas no Musa já estão delineadas e fabricadas, porém não estão prontas para entrar em ação. Normalmente, elas fazem parte de sistemas maiores que exigem novos estudos e a criação de novos mecanismos. São, no entanto, peças essenciais a sistemas inovadores e, muitas vezes, inéditas.
Litografia e metais
Para ser entregues a seus idealizadores, todas as micropeças fabricadas no Musa passam por um mesmo processo de produção com pequenas variáveis. Elas são projetadas pelos interessados – pesquisadores de institutos e universidades ou de empresas – e enviadas ao LNLS. O processo de fabricação começa com a produção de uma micromáscara litográfica produzida em metal com o desenho da peça. Essa máscara é, então, colocada sobre um polímero fotossensível assentado sobre uma base de silício ou vidro revestido com uma camada condutiva. Depois esse conjunto é exposto à radiação ultravioleta. O desenho da peça fica impresso no polímero como num filme fotográfico.
Ao retirar-se o polímero da parte sensibilizada forma-se um molde da micropeça. Na parte final da fabricação do dispositivo, esse molde ganha por eletrodeposição ou galvanoplastia – sob a ação de corrente elétrica – um metal, que pode ser cobre, níquel ou ouro. Essa fase é realizada na empresa Metalfoto, na cidade de Cotia, que faz o crescimento do metal dentro do molde de polímero. A micropeça fica pronta quando são retirados esse molde e a base de silício ou de vidro.
“Nossa intenção para avançar nesse processo de microfabricação é fazer a sensibilização (litografia) com o raio X da luz síncrotron em vez da radiação ultravioleta”, diz o coordenador do Musa, Luiz Otávio Ferreira. “Com isso teremos melhor qualidade na fabricação das peças.” Uma das dez linhas de luz do síncrotron, chamada XRL, está destinada exclusivamente para o trabalho do Musa. Esse raio X é produzido a partir da energia dos elétrons que circulam, na velocidade da luz, no interior do anel metálico de 93 metros de comprimento e 30 metros de diâmetro que, integrado a dezenas de outros componentes, forma a fonte de luz síncrotron.
Uso industrial
Os primeiros experimentos com o raio X estão sendo realizados pela equipe do professor Ferreira. Mesmo sem a utilização plena do raio X, os mecanismos de fabricação de micropeças estão disponíveis para quem necessitar desse serviço industrial. A intenção do LNLS é aumentar a participação de empresas interessadas em fazer microdispositivos. “Nós temos a receita de fabricação de micropeças e podemos colaborar com empresas nos seus projetos”, diz Ferreira, que também é professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, onde está formando um grupo de estudos em microssistemas. São boas notícias para os vários setores que necessitam de microdispositivos para o desenvolvimento de aparelhos, sistemas e equipamentos inovadores.
O projeto
Projeto, Microfabricação e Caracterização de Osciladores Microeletromecânicos com Acionamento Eletromagnético (nº 00/10487-4); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Luiz Otávio Saraiva Ferreira – LNLS; Investimento R$ 92.660,25 e US$ 51.671,90