Uma das mais importantes coleções de arte italiana da primeira metade do século XX – certamente a mais importante em continente americano – se encontra em São Paulo. É bem conhecida historicamente por ter sido um dos núcleos fundadores do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). Mas agora, ao ser exposta no marco das comemorações dos 50 anos da instituição, aparece reorganizada e reavaliada, graças ao trabalho Obras italianas das coleções Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado, de Ana Gonçalves Magalhães, docente e curadora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do museu.
Ao recuperar os rastros da história da coleção, o estudo chegou a conclusões que valorizaram sua representatividade em escala internacional, com repercussão entre pesquisadores da Itália. Além disso, traz a público detalhes sobre o ambiente da arte moderna brasileira. “É um conjunto fascinante, não só pela qualidade das obras, mas porque de muitas delas, na Itália, se haviam perdido os vestígios”, diz Paolo Rusconi, historiador da arte e professor da Universitá degli Studi di Milano (Unimi), na Itália. Rusconi foi o parceiro italiano no acordo de cooperação entre o MAC e a Unimi que visa ao estudo do modernismo brasileiro e, junto com Ana Magalhães, organizou um seminário em abril sobre o tema em São Paulo.
A exposição Classicismo, realismo, vanguarda: pintura italiana do entreguerras, que resultou da pesquisa, compreende as 71 pinturas da coleção, mais 10 de artistas brasileiros (entre eles Candido Portinari e Alberto Guignard) que dialogaram com seus contemporâneos italianos. Foi inaugurada em 31 de agosto na nova sede do MAC e fica até julho de 2014. Entre os artistas italianos há grandes nomes, como Giorgio de Chirico, Giorgio Morandi, Carlo Carrà e Amedeo Modigliani, este presente com seu único autorretrato conhecido, uma obra tão célebre que foi deslocada para outra exposição em cartaz, O agora e o antes: uma síntese do acervo do MAC USP.
O projeto original da curadora Ana Magalhães era reavaliar a catalogação do conjunto de obras, para permitir, entre outras coisas, sua publicação em ambiente virtual (em construção no site do museu). “Mas, durante a pesquisa”, diz ela, “ficou claro que conhecíamos muito pouco da coleção, excetuadas algumas obras mais famosas.”
O principal mito derrubado foi a noção, amplamente difundida, de que as coleções Matarazzo se formaram de acordo com o gosto pessoal do mecenas, sem critério estético ou histórico. “Foi um acervo adquirido por intermediários de Francisco [Ciccillo] Matarazzo Sobrinho na Europa, para o antigo Museu de Arte Moderna, num intervalo de 10 meses entre 1946 e 1947, mesma época em que se constituía também uma coleção francesa”, diz a pesquisadora. “O acervo revela uma atenção às principais tendências da época, com destaque para a vertente do Novecento italiano. Dá para contar a história da arte italiana na primeira metade do século através da coleção.” Ao mesmo tempo, segundo ela, o estudo mostrou que o ambiente artístico brasileiro não se encontrava em estado de atraso e descompasso com a Europa.
Pelo contrário, o que a equipe da curadora encontrou foi uma “intensa troca” entre o modernismo paulista e o italiano. Nesse cenário se destaca a figura do teórico e artista plástico brasileiro Paulo Rossi Osir. “No fundo é ele, sua obra e sua biblioteca que iluminam essa coleção”, conta ela. Osir viajava sempre à Europa e era dono de uma biblioteca sobre arte moderna que tem alguns de seus livros expostos junto à coleção Ciccillo-Yolanda.
As investigações sobre as aquisições levaram à descoberta do engajamento, na Europa, de nomes como o do galerista veneziano Carlo Cardazzo e de Pietro Maria Bardi. Este último viria a ser o curador do futuro Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Amante de Mussolini
Numa história cheia de personagens fascinantes, surge a crítica de arte e dama da sociedade italiana Margherita Sarfatti. De ascendência judaica, Margherita foi, desde 1912, amante do futuro ditador Benito Mussolini e exerceu influência na intelectualidade que apoiava a ascensão do fascismo. Participou da fundação, em 1922, da estética do Novecento, o “retorno à ordem” da arte italiana depois dos anos incendiários do futurismo. Ao receber o apoio de Adolf Hitler e implantar o antissemitismo como política oficial na Itália, nos anos 1930, Mussolini afastou-se de Margherita, que acabou se exilando entre o Uruguai e a Argentina.
Foi nessa condição que ela recebeu a incumbência dos Matarazzo de coordenar as aquisições de arte italiana. “Um dos intermediários das aquisições realizadas na Itália foi seu genro, o conde Livio Gaetani d’Aragona”, diz Annateresa Fabris, professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP. Embora exilada, Margherita manteve-se fiel às diretrizes estéticas que pretendiam mostrar ao mundo, segundo Ana Magalhães, uma “nova Itália”.
“Era uma ruptura com o futurismo, embora alguns futuristas também tenham revisto sua primeira postura”, diz Annateresa. “Margherita opunha o Novecento ao futurismo e à pintura metafísica de De Chirico, representado na coleção por obras posteriores a essa fase.” A coleção abarca um grande núcleo dedicado ao Novecento, mas inclui outros artistas que gravitaram em torno dessa tendência ou mesmo se opunham a ela, como os artistas da Scuola Romana e do Grupo Corrente. Estão presentes nomes que nunca comungaram com a vertente principal, como Morandi. Um dos objetivos da pesquisa de Ana Magalhåes foi questionar a ideia de que o Novecento foi a única vertente norteadora da coleção. “Talvez o quadro mais representativo seja o autorretrato de Modigliani”, diz Annateresa. De acordo com a pesquisadora, nele o artista trabalha os aspectos cromático e linear, trata a si mesmo como uma imagem pensada, sem deixar de manter uma relação com o concreto e o real.
Como se vê, o cenário das artes italianas era, na primeira metade do século, um balaio de tendências não raro conflitantes. “A noção de tempo dos futuristas e da pintura metafísica era quase oposta. Os primeiros eram barulhentos defensores da máquina e da rapidez, enquanto os metafísicos trabalhavam com o silêncio, a imagem estática e a longa duração”, diz Ana Magalhães. O Novecento, por sua vez, era inimigo da postura matemática e técnica do abstracionismo, tendência ainda em formação naquele momento e que é, segundo Paolo Rusconi, a única não representada, sequer indiretamente, na coleção Ciccillo e Yolanda.
Métodos de coerção
A presença do fascismo não se manifestou, no entanto, por meio de uma estética oficial. “A relação entre o regime e o ambiente artístico se deu por métodos de coerção ambíguos e capilares, como no uso de incentivos oficiais promovidos por Mussolini para agradar os artistas”, diz Rusconi. Um personagem como Mario Sironi, presente na coleção do MAC com seis obras, teve a maior parte de suas obras públicas (murais e afrescos) destruída depois da queda do regime, embora elas não tivessem, tematicamente, relação direta com os ideais fascistas.
Para Annateresa, a coleção reflete a orientação estética de Margherita, mas também o gosto de Ciccillo, “que tinha uma visão eminentemente realista da arte”. O momento em que as obras foram adquiridas, no entanto, indica uma mudança de curso em seu trajeto de colecionador. Ciccillo casou-se em 1946 com uma representante da elite paulista, Yolanda Penteado.
“O casamento fez com que Matarazzo se aproximasse da arte moderna”, diz Annateresa, lembrando que Yolanda frequentava os círculos da intelectualidade modernista. “Até então, seu interesse era por arte acadêmica, mas a mudança de diretiva lhe permitiu se diferenciar da burguesia imigrante que havia se oposto ao modernismo.” Ao mesmo tempo, se distinguia também de Assis Chateaubriand, que criava o Masp de acordo com uma perspectiva histórica da arte.
A fundação do MAC foi consequência, segundo Annateresa, de um “ato de força” de Ciccillo. Ele havia sido o criador e era o único responsável por subvencionar o Museu de Arte Moderna de São Paulo e resolveu doar o acervo à USP em 1963. Além de a coleção estar passando por “problemas econômicos e funcionais”, Ciccillo se encantara com outra novidade – a Bienal de São Paulo. As confusões entre o que lhe pertencia e o que era acervo do museu ainda causam problemas na catalogação das obras.
“Ainda precisamos entender melhor a relação dos artistas brasileiros com os futuristas, do ponto de vista artístico”, diz Ana Magalhães. No campo teórico, Mário de Andrade cunhou a expressão “futurismo paulista”, que, segundo ela, significa “futurismo, sim; Marinetti, não”, referindo-se ao mais eminente e radical teórico do movimento, Filippo Tommaso Marinetti. “A reverberação formal do futurismo entre nós é praticamente nula”, diz. Annateresa observa que as relações entre o Novecento italiano e a arte no Brasil não se dá tanto por influência, mas por semelhança de princípios. O modernismo brasileiro, apesar de parcialmente disruptivo, nunca deixou de lado a tradição. “Há o interesse por uma sólida prática artesanal e realista. É uma pintura moderna ‘moderada’.”
A pesquisa de Ana Magalhães propiciou outros estudos, como a dissertação de Renata Dias Rocco, do programa de pós-graduação interunidades em estética e história da arte, do qual o MAC faz parte. Ela se debruçou sobre as quatro obras do pintor e teórico Gino Severini presentes na coleção, entre elas Natureza-morta com pomba, de 1938. Severini foi um artista bastante representativo das reviravoltas da arte italiana do período, tendo, de início, comungado com o futurismo. Realizou, no entanto, uma “mudança radical de rumo”, que Renata decidiu investigar a partir das quatro pinturas, que formam uma espécie de elo perdido na trajetória do artista.
Projeto
Margherita Sarfatti e o Brasil: a coleção (nº 2011/00757-9); Modalidade Bolsa no Exterior; Bolsista Ana Gonçalves Magalhães – MAC USP; Investimento R$ 9.023,90 (FAPESP).