Negar-se a trabalhar, responder para seus senhores e provocar pequenos prejuízos tornaram-se estratagemas de mulheres negras escravizadas para desvalorizar o próprio preço. Valia até pedir proteção a famílias inimigas dos senhores a quem serviam para conseguir a alforria. A Abolição só ocorreu em 1888, mas, após o estabelecimento da Lei do Ventre Livre, em 1871, escravos passaram a ter o direito de comprar a liberdade. Juntar dinheiro para esse fim exigia sacrifícios além da escravidão, como trabalhar durante as raras folgas, além de negociar a parte da remuneração que seria destinada aos seus proprietários. Ao usar essa estratégia, as mulheres eram mais bem-sucedidas do que os homens, principalmente por causa da demanda por serviços domésticos. Uma vez livres, tinham de vencer outros obstáculos tão difíceis quanto os anteriores: arrumar trabalho para conseguir sobreviver, cuidar sozinhas dos filhos e se inserir na sociedade local.
Em estudos que tiveram início no mestrado e prosseguiram durante um pós-doutorado na Universidade de Nova York, Estados Unidos, a historiadora Lúcia Helena Oliveira Silva, professora da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL-Unesp), campus de Assis, analisou como as escravas africanas e afro-brasileiras buscavam a liberdade mediante o uso de meios jurídicos. “A partir de um estudo que abrangeu 157 ações que tramitaram no fórum de Campinas, identifiquei que mais da metade dos processos para compra de alforria envolvia mulheres”, diz a pesquisadora, que é vice-coordenadora do Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão (Nupe-Unesp).
Os escravos que desejassem comprar sua liberdade solicitavam uma audiência com o juiz local para que se estabelecesse o valor a ser pago. Tinham de ser representados por um homem livre porque, perante a lei, não eram considerados pessoas, mas propriedade alheia. Segundo Lúcia Helena, para conseguir o dinheiro determinado à alforria, as escravas trabalhavam lavando roupa e como babá, ama de leite, bordadeira e engomadeira, além de vender alimentos na rua que elas mesmas faziam ou cultivavam em pequenas hortas. O mercado doméstico oferecia mais oportunidades às cativas do que aos escravos.
Para conseguir a liberdade mais rapidamente, elas adotavam atitudes para baixar o próprio preço, como empreender fugas constantes, relata a pesquisadora. Foi o caso, por exemplo, da escrava Cristina. Levada a contragosto do Rio de Janeiro para Campinas, negava-se a permanecer na cidade. Mesmo sendo frequentemente espancada, ela não se submetia às ordens do senhor. Este concluiu que fez um mau negócio e se desfez dela, enviando-a de volta ao Rio. “Cristina esteve à beira da morte, mas, no fim, alcançou o que queria”, conta.
Outro ardil era se valer das inimizades entre os senhores. Lúcia Helena relata a história de uma cativa no interior de São Paulo que, espancada, fugiu para a casa de uma família inimiga. A família que a acolheu tinha como patriarca um juiz e, mais tarde, ela conseguiu a alforria com a sua ajuda. “Histórias como essas permitem romper com estereótipos da escrava comportada, que ganhava a carta de alforria do patrão como recompensa”, defende a historiadora. “Ou mesmo com a imagem da revoltada que fugia constantemente e, portanto, estava condenada a ser eternamente escrava.”
Uma vez alcançada, a alforria estava longe de resolver os problemas. Ao necessitar da mediação de terceiros para viabilizar a aquisição da liberdade, criavam-se frequentemente relações de dependência, que podiam envolver a prestação de serviços, vínculos sexuais ou pagamentos em dinheiro.
No período que vai de 1888 até 1926, uma estratégia de sobrevivência dos libertos de São Paulo era migrar para o Rio. A partir das análises do censo disponível nas atas da Assembleia Legislativa paulista, Lúcia Helena observou que, de 1888 a 1890, o estado de São Paulo tinha o terceiro maior contingente de escravos do Brasil. Porém, em 1892, a população negra tornou-se escassa na região. “As experiências dos libertos e afrodescendentes em São Paulo eram permeadas por expectativas de inserção social e tentativas senhoriais de manutenção da situação sociorracial anterior à Abolição”, afirma. Com a vinda dos imigrantes europeus, o mercado de trabalho se tornou ainda mais difícil porque os empregadores preferiam contratar a população branca.
Por outro lado, o Rio funcionava como um espaço de confraternização de escravos e libertos provenientes de todo o Brasil. “O cais do porto e a existência de pequenos trabalhos urbanos feitos pela comunidade negra facilitavam a inserção na sociedade local”, diz. Uma hipótese de Lúcia Helena para esse movimento migratório é que os libertos queriam fugir do estigma da escravidão, marca que costumava ser mais aparente no contexto de municípios menores – São Paulo, em 1900, era uma cidade com cerca de 240 mil habitantes, enquanto a população do Rio tinha 811 mil moradores.
A historiadora Isabel Cristina Ferreira dos Reis, professora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), conta que, ao contrário dos ex-escravizados de São Paulo, os dos engenhos do Recôncavo Baiano, localidade com a maior concentração de trabalho escravo na região, permaneceram próximos aos lugares onde viviam. A razão era o desejo de preservar laços familiares e comunitários.
Também no Recife muitas libertas optaram por permanecer na região para não ter sua condição questionada, já que nem todas as cartas de alforria tinham valor oficial e essas mulheres podiam ser perseguidas pela polícia, que as confundiam com escravas fugitivas. “As mulheres se livravam dos estigmas do cativeiro criando estratégias para a garantia de espaços sociais por meio do trabalho, das redes de compadrio ou filiando-se às irmandades católicas”, conta a historiadora Valéria Costa, docente do Instituto Federal do Sertão Pernambucano. Ela relata que havia uma circulação intensa de mulheres nas ruas, sobretudo em razão do comércio. Como parte de uma política pública higienista, que via a população negra como potencial causadora de distúrbios, patrulhas municipais proibiam a circulação de escravos e libertos depois das 20 horas no centro do Recife, em especial pelo bairro de Santo Antônio, de grande movimento comercial.
No Rio, as libertas vindas de São Paulo mantinham o mesmo ofício de antes de se emancipar. “As quituteiras, por exemplo, tinham grande mobilidade no espaço urbano e preservavam a tradição de preparar comidas populares, como angu, espécie de polenta com pedaços de carne, como no tempo em que eram escravas”, explica Lúcia Helena. A pesquisadora constatou esse processo de migração a partir da análise de cerca de 300 exemplares de sete periódicos paulistas lidos pela comunidade negra, abrangendo o período que vai de 1886 a 1926. Esses jornais evidenciavam a frustração dos escravos e libertos com a busca de emprego e o reconhecimento como cidadãos.
Ela também consultou processos criminais e cíveis do Arquivo Nacional, bem como 310 fichas da Casa de Detenção do Rio, datados de 1888 a 1920. Do total de processos estudados, a pesquisadora observou que 275 envolviam problemas de embriaguez e desordem, sendo que as mulheres negras permaneciam mais tempo encarceradas quando eram presas à noite, em um horário considerado imoral para mulheres.
A condição feminina ajudava as alforriadas a conseguir emprego, mas também as expunha à violência. Diferentemente do que ocorria com a maioria das mulheres brancas, as negras – fossem escravas, nascidas livres ou libertas – tinham de enfrentar as ruas, trabalhando para os seus senhores ou pela própria subsistência. “Na Bahia, como no Rio, elas estiveram expostas a todo tipo de assédio e agressões e se defendiam como podiam: gritavam e brigavam e acabavam ganhando má fama”, relata Isabel, da UFRB.
Maternidade
Embora as pesquisas mostrem as escravas como mulheres muito menos passivas do que se pensava, Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), reafirma a precariedade do processo de emancipação baseado no trabalho doméstico. Os patrões exerciam controle sobre a autonomia das libertas, que eram separadas das suas famílias e tinham pouquíssimos dias para descansar.
A historiadora mostra que essas mulheres vivenciaram a maternidade de modo dramático, seja como escravas em busca de pecúlio, antes de 1888, ou na condição de libertas. Em suas pesquisas, ela constatou como a guarda dos filhos frequentemente era retirada das libertas, com a justificativa de que elas não tinham um comportamento moral adequado. Por causa desse tipo de situação, Maria Helena defende que a Abolição deve ser pensada como um processo marcado pelo gênero. “Esse sofrimento, no entanto, não anula a luta dessas mulheres por reinventar suas vidas e mostra como essa luta foi árdua”, conclui.
Projeto
Diásporas negras no pós-Abolição: Libertos e afrodescendentes em São Paulo (1888-1930) (nº 09/14974-1); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisadora responsável Lúcia Helena Oliveira da Silva (Unesp); Investimento R$ 15.951,30.
Artigos científicos
SILVA, L. H. O. A escravidão dos povos africanos e afro-brasileiros: A luta das mulheres escravizadas. Revista Org & Demo. v. 16, Edição Especial, p. 85-100, 2015.
SILVA, L. H. O. Aprendizado da liberdade: Estratégias de mulheres escravizadas na luta pela emancipação. Mnemosine – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFCG. v. 5, n.1, jan./jun., 2014.
MACHADO, M. H. P. T. Corpo gênero e identidade no limiar da Abolição: A história de Benedicta Maria Albina da Ilha ou Ovídia, escrava (Sudeste, 1880). Afro-Ásia. n. 42, p. 157-93, 2010.
Livro
SILVA, L. H. O. Paulistas e afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016.