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Química

Molécula poderosa

Substância encontrada no corpo humano é a base de biomateriais para tratar lesões na pele e hipertensão

MIGUEL BOYAYANFilme plástico flexível para recobrir “stents”MIGUEL BOYAYAN

Uma das menores e mais versáteis moléculas produzidas pelo organismo, o óxido nítrico (NO), é a matéria-prima de novos materiais destinados a tratar hipertensão arterial, aterosclerose, queimaduras e lesões de pele. A síntese e a formulação de biomateriais que liberam de forma controlada essa molécula de apenas dois átomos, um de oxigênio e um de nitrogênio, renderam à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) o pedido de registro de seis patentes no Brasil. As pesquisas, iniciadas em 1995 no Instituto de Química da universidade paulista e coordenadas pelo professor Marcelo Ganzarolli de Oliveira, resultaram na preparação de três compostos atóxicos, com propriedades antitrombóticas, antiinflamatórias e antiproliferativas (atividade que impede o crescimento celular), que foram adicionados a um gel aquoso e a polímeros sólidos e líquidos.

Os produtos têm potencial para substituir com vantagem os medicamentos à base de nitroglicerina e nitroprussiato de sódio, utilizados para controlar crises de hipertensão e de angina do peito. E também para uso em angioplastia, técnica que consiste em desobstruir as artérias coronárias em processo de aterosclerose. O polímero contendo óxido nítrico, em forma de uma película muito fina, reveste o stent, uma pequena malha metálica de cerca de 2 centímetros de comprimento utilizada como sustentação mecânica para impedir que a artéria volte a se fechar. A função da substância, nesse caso, é evitar a proliferação das células musculares da parede da artéria que, mesmo com a presença do stent, podem levar a uma reobstrução do vaso.

Outra aplicação muito promissora é o uso do gel para o tratamento de feridas provocadas por queimaduras e doenças na pele, como a psoríase (enfermidade não contagiosa que provoca lesões avermelhadas e descamativas) e a leishmaniose cutânea, moléstia endêmica em países tropicais.Essa linha de pesquisa com óxido nítrico começou a ser desenvolvida pelo professor Ganzarolli quando ele retornou ao Brasil, após terminar seu pós-doutorado na Universidade de Southampton, na Inglaterra.

Lá, ele estudava o aspecto fotoquímico do nitroprussiato de sódio, um complexo doador de NO empregado no controle da pressão sanguínea durante cirurgias e tratamentos de hipertensão. Mas não se sabia exatamente como o medicamento atuava no organismo, até que em 1987 se descobriu que o óxido nítrico era produzido em uma camada de células da parede dos vasos, o endotélio, e era o responsável pelo controle da pressão sanguínea nos humanos e demais mamíferos.

Depois que em 1998 os cientistas norte-americanos Robert Furchgott, Ferid Murad e Louis Ignarro receberam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia pela descoberta do papel do óxido nítrico no organismo, as pesquisas relacionadas à molécula multiplicaram-se. Assim, além do controle da pressão arterial, descobriu-se que ela possui várias outras funções fisiológicas importantes. O óxido nítrico é produzido nas células do cérebro e atua como um neurotransmissor especial, em conseqüência da sua difusão muito rápida através das membranas celulares. Além disso, ele é peça-chave no sistema de defesa do organismo contra infecções.

“Os agentes invasores são bombardeados pelas células de defesa com uma mistura letal de NO e superóxido, um poderoso agente oxidante, formando outros produtos que possuem forte ação bactericida e de combate a tumores”, diz Ganzarolli. O mais popular uso decorrente da pesquisa com o óxido nítrico são os medicamentos que combatem a impotência sexual. Eles inibem uma enzima (a fosfodiesterase tipo 5), o que leva ao aumento da produção de NO no tecido muscular do corpo cavernoso do pênis. O óxido nítrico causa o relaxamento desse tecido, permitindo a passagem de sangue, condição essencial para que haja a ereção.

Nos seus estudos sobre o nitroprussiato de sódio, Ganzarolli constatou que o medicamento liberava óxido nítrico, mas que apresentava também um risco de intoxicação por cianeto (ou cianureto). Quando voltou ao Brasil, já veio com a ideia de criar uma maneira de liberar o NO de forma controlada no organismo, mas sem os cianetos. Nessa ocasião, ele solicitou à FAPESP um auxílio a pesquisa, que lhe permitiu montar a infra-estrutura para começar os estudos.

Transportador natural
Outras descobertas, feitas à época em que o pesquisador ainda estava na Inglaterra, mostraram que, em nosso organismo, o óxido nítrico é transportado por uma classe de moléculas chamadas de nitrosotióis. Essas substâncias carregam e preservam o NO no seu transporte entre as células, porque sozinho ele não sobrevive durante muito tempo na corrente sanguínea. Ele reage rapidamente com o oxigênio e pode interagir com outros radicais e se transformar em outros produtos nitrogenados.

Trabalhos da época também apontavam que os nitrosotióis tinham ação vasodilatadora. “Voltei disposto a sintetizar essas substâncias, encontradas dentro do corpo humano, como alternativa aos medicamentos em uso corrente”, conta Ganzarolli. “Conseguimos montar um sistema inovador de síntese que funcionou e passamos a produzir esses nitrosotióis. Como eles são instáveis em solução aquosa, busquei outra estratégia, que é incorporar essas substâncias em uma matriz polimérica líquida para permitir sua liberação controlada e estabilizá-las.”

Para ganhar tempo, a escolha da matriz recaiu sobre polímeros atóxicos que já eram usados em outros medicamentos. Formulações desse polímero, um líquido viscoso com consistência semelhante à da glicerina, foram preparadas com a droga incorporada. “Constatamos que estava muito estável dentro dessa matriz, permitindo que fosse guardada na geladeira por tempo muito longo sem se decompor”, relata o pesquisador. “Esse foi um efeito que descobrimos. As matrizes proporcionam uma estabilidade muito maior à droga.” As descobertas renderam também três pedidos de patente, referentes ao método de síntese e às formulações, que receberam menções honrosas nos prêmios Governador do Estado de 2001 e 2002.

A atividade vasodilatora dos compostos sintetizados foi confirmada em testes in vivo com ratos, realizados por um grupo de pesquisa do Instituto de Biologia da Unicamp, que trabalha em parceria com o professor Ganzarolli. “Constatamos, além disso, que a ação vasodilatora era mais potente que a do nitroprussiato de sódio e durava mais, tinha efeito mais prolongado, sem o inconveniente da toxicidade”, relata. Os resultados renderam um artigo, capa da revista Nitric Oxide em agosto de 2002, publicação que é referência para os estudiosos do tema.Além do polímero líquido, os pesquisadores começaram a explorar outros tipos de materiais. “Conseguimos incorporar esses biomateriais em géis aquosos (hidrogéis) e em filmes poliméricos sólidos, uma película plástica flexível que pode ser usada tanto para aplicações na pele como para recobrir dispositivos de implante intracoronário”, descreve Ganzarolli.

Os hidrogéis foram testados em março e abril de 2003 pela doutoranda Amedea Barozzi Seabra, bolsista da FAPESP, em colaboração com Richard Weller, médico dermatologista da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Durante dois meses em território escocês, Amedea testou o gel na pele de voluntários sadios para avaliar a ação vasodilatora medida pela circulação sanguínea. Para isso foi usada uma técnica baseada no laser.

A luz passa através da pele e é refletida pelas hemácias (células vermelhas do sangue responsáveis pelo transporte de oxigênio), que estão fluindo dentro dos vasos sanguíneos abaixo da pele. Quanto maior a velocidade das hemácias, maior é o fluxo sanguíneo. Isso pode ser medido pela variação do comprimento de onda da luz refletida. “O efeito é o mesmo que o radar usa para detectar os carros que estão em alta velocidade”, compara o pesquisador. Quando o gel foi passado no braço dos voluntários, imediatamente apareceu uma vermelhidão, conseqüência de um aumento de circulação. “Isso mostra que ele libera óxido nítrico através da pele e tem potencial para ser aplicado nas lesões de leishmaniose, psoríase e para tratar queimaduras.”

Liberação controlada
Outros materiais estão sendo desenvolvidos no Instituto de Química com as mesmas potencialidades do hidrogel. Segundo o coordenador da pesquisa, esse gel tem uma propriedade muito interessante, chamada de geleificação térmica reversa. Na geladeira fica líquido, e na faixa de temperatura entre 30º e 40ºC transforma-se em gel. Isso permite injetar a solução de forma subcutânea. Ao entrar em contato com a pele, ela geleifica e forma um depósito, de onde será liberado o óxido nítrico que vai penetrar na circulação sistêmica (do corpo todo). Dependendo do comportamento da formulação, a liberação ocorre de forma mais lenta ou rápida e pode servir para funções diferentes, como controlar a pressão arterial ou ter ação citotóxica para matar o protozoário que causa a leishmaniose.

Os biomateriais doadores de óxido nítrico também têm boa perspectiva de aplicação para a aterosclerose, processo imunoinflamatório originado no espaço logo abaixo do endotélio, a primeira camada de células que reveste o interior dos vasos sanguíneos. É nesse local que as placas de aterosclerose (ateromas) se desenvolvem. Quando a placa se rompe, dispara a formação de um coágulo que bloqueia o fluxo sanguíneo. Se isso ocorre em uma das artérias coronárias, uma região do músculo cardíaco deixa de ser irrigada e as complicações resultantes podem levar à morte.

Uma das formas de desobstruir as artérias coronárias é a angioplastia, técnica que consiste na dilatação do vaso pela insuflação de um balão, envolto pelo stent, que é introduzido por um cateter no local da oclusão. O balão é retirado, mas o stent fica. No entanto, como esse procedimento causa uma lesão na artéria, o organismo reage tentando cicatrizá-la e isso pode levar à formação de um trombo que bloqueia a artéria (reoclusão aguda), o que ocorre em 5 a 9% dos casos. Outra possível conseqüência é que, nessa resposta ao trauma, o tecido muscular da artéria começa a se proliferar, por divisão celular, levando a um espessamento da parede no local da lesão. Como resultado dessa nova camada de células que se forma, o vaso sofre um remodelamento e as células passam através da malha metálica do stent, voltando a fechar o vaso. Essa reoclusão, chamada de reestenose, é um dos principais problemas da angioplastia e ocorre em cerca de 30 a 50% dos casos. Como são implantados cerca de 2 milhões de stents por ano no mundo, há grande demanda por tecnologias que reduzam o problema.

Os estudos com o stent revestido com os biomateriais contam com a colaboração de um grupo de pesquisa do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). “Estamos fazendo a parte química de recobrimento e de caracterização da liberação de óxido nítrico in vitro “, conta Ganzarolli. “Assim que selecionarmos o melhor sistema, vamos entregar os stents ao InCor para que eles possam ser testados em modelos animais.” Os ensaios preliminares foram feitos no Instituto de Química com um filme polimérico bem fino, ideal para recobrir irregularidades da malha metálica. “Verificamos que o polímero libera óxido nítrico e tem potencial de uso pelas propriedades antiproliferativas e antitrombóticas do NO”, relata o coordenador da pesquisa.

Os primeiros testes de incorporação de outros fármacos nos stents começaram a ser feitos há cerca de oito anos por vários grupos de pesquisa espalhados pelo mundo. Desses estudos, o que apresentou melhores resultados foi o recobrimento dos stents com a rapamicina, que tem ação antiproliferativa e foi usada como imunossupressor no tratamento contra a rejeição em transplante renal. Em abril deste ano, a empresa Johnson&Johnson colocou no mercado um stent revestido com o fármaco, o único que existe em uso clínico atualmente. Até o final de outubro, já haviam sido vendidas mais de 450 mil unidades do produto.

No entanto, nessa mesma época, a agência norte-americana de controle de medicamentos Food and Drug Administration (FDA) divulgou um alerta de que havia recebido cerca de 300 relatórios informando a ocorrência de trombose e reações de hipersensibilidade associadas com o uso do stent recoberto com a rapamicina, com mais de 60 mortes associadas. Embora esses números sejam pequenos diante do sucesso do produto, para Ganzarolli isso mostra que há espaço para colocar no mercado stents revestidos com outras drogas.

Além de reduzir os riscos de toxicidade, os biomateriais doadores de óxido nítrico permitem uma aplicação localizada, com tempos prolongados de liberação, como mostram os resultados obtidos até agora. O pesquisador pretende avançar em seus estudos e ressalta que as tecnologias já desenvolvidas podem ser transferidas pela universidade a empresas interessadas em produzir industrialmente os novos materiais.

O projeto
Fotoquímica de Complexos Metálicos em Matrizes Poliméricas e Sistemas Organizados (nº 95/02344-9); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Pesquisa; Coordenador Marcelo Ganzarolli de Oliveira – Unicamp; Investimento R$ 2.200,00 e US$ 20.342,00

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