PEIXES DO RIO NEGRO/ ALFRED R. WALLACEDepois de assistir a Piranha, filme de terror norte-americano lançado em 1978, é fácil deixar-se dominar pelo medo de mergulhar mesmo em um rio tranqüilo como o Tietê, o maior rio paulista, que a menos de 200 quilômetros da capital deixa de ser poluído e volta a ter peixes. No cinema, as vorazes piranhas, com seus dentes triangulares e pontiagudos, devoram os desavisados banhistas em minutos e a água se torna turva de sangue. É impossível não pensar no risco de ser a próxima vítima mal se molhe os pés no rio.
Mas pesquisas recentes mostram que essa imagem de devorador sanguinário é mesmo infundada. Vidal Haddad Junior, médico dermatologista da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, estudou os ataques de piranhas a banhistas no interior de São Paulo e, em parceria com o zoólogo Ivan Sazima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chegou a conclusões que desfazem o preconceito contra esses peixes carnívoros, de corpo oval e achatado, encontrados apenas na América do Sul. Embora estejam se espalhando pelos rios do estado, elas geralmente atacam para defender a prole (ovos e larvas) e suas mordidas não causam grandes ferimentos. Os casos estudados até agora consistem apenas de uma única mordida na perna ou no pé – o ferimento sangra, mas o membro continua inteiro. Até agora não há registro confiável da morte de uma só pessoa provocada por ataque de piranhas. Mesmo assim, é bom ficar longe delas.
Fama indevida
O interesse de Haddad pelos acidentes provocados por animais aquáticos surgiu há dez anos, quando percebeu que pouco se sabia sobre como cuidar dos ferimentos que eles causavam. Só depois de publicar em 2000 o Atlas de animais aquáticos perigosos do Brasil: Guia médico de identificação e tratamento (160 páginas, Editora Roca), em que trata principalmente das espécies marítimas como ouriço e água-viva, é que ele começou a se dedicar às de água doce e conseguiu demonstrar que as investidas das piranhas eram menos graves do que se supunha. Em março e abril de 2002, Haddad foi a Santa Cruz da Conceição, cidade de 3.500 habitantes a 200 quilômetros da capital, investigar os ataques de piranhas aos banhistas que tiravam o domingo para se divertir na praia de águas calmas e rasas, às margens do rio Mogi-Guaçu. Em cinco domingos, em um posto de saúde próximo à praia, ele atendeu 38 pessoas mordidas por esses peixes enquanto nadavam.
Em geral, quem chegava ao posto de saúde apresentava um único ferimento, com cerca de 2 centímetros de diâmetro – o mesmo da mandíbula da piranha -, em forma de uma cratera. Sangrava bastante e os banhistas se impressionavam, o que certamente contribuiu para alimentar o mito da ferocidade desses peixes. Mas não houve caso fatal. Metade das pessoas feridas fora mordida na perna e outros 40%, no pé, próximo ao calcanhar. Apenas um banhista foi ferido no braço e outros três, na mão. Das 38 pessoas mordidas, cinco precisaram ser transferidas para a cidade vizinha, Leme, por apresentarem sangramento mais intenso, e apenas uma sofreu a amputação de um dedo. O maior número de acidentes (16) ocorreu justamente no final de semana em que mais banhistas entraram na água. De modo geral, o tratamento indicado é bastante simples e inclui a limpeza do ferimento por cerca de dez minutos com água e sabão, para eliminar a possibilidade de contaminação por bactérias. Em caso de mordidas mais profundas,recomenda-se tomar vacina antitetânica.
Sinal de alerta
“Os ferimentos causados pelas piranhas são menos graves que os provocados pelo ferrão de peixes como o mandi ou a arraia”, diz Haddad. Formado também em biologia, ele identificou a espécie que rondava as águas de Santa Cruz da Conceição: piranha-pequena, piranha-doce ou pirambeba (Serrasalmus spilopleura ou Serrasalmus maculatus). Comum em todo o país, essa espécie, quando jovem, apresenta a cauda amarela com uma listra negra, o dorso de prateado a dourado e o ventre amarelado, coberto de pintas escuras. Já adulta, o corpo se torna cinza escuro, com até 26 centímetros de comprimento. Mas faltava saber por que a Serrasalmus spilopleura – hoje comum nas praias que se formaram ao longo do rio Tietê após seu represamento – estava atacando as pessoas.
A resposta veio pouco tempo depois, quando Haddad conheceu Ivan Sazima, especialista no comportamento de peixes que, desde a década de 1980, estuda os hábitos das piranhas como parte de um projeto temático coordenado por Marcio Roberto Costa Martins, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Sazima já havia investigado a fama de devoradores de pessoas atribuída a esses peixes por meio do relato de três casos em que corpos humanos haviam sido encontrados com mordidas e até mesmo inteiramente descarnados por piranhas. Em todos eles, porém, a pessoa já havia morrido por afogamento ou infarto antes do ataque dos peixes.
Após um ano de visitas a Santa Cruz da Conceição, os pesquisadores conseguiram associar as características dos ferimentos às do ambiente em que ocorreram. Com apenas 300 metros de extensão, a praia do município fica em um trecho de águas calmas do rio Mogi-Guaçu, onde proliferam os aguapés (Eichhornia crassipes), plantas aquáticas flutuantes de folhas arredondadas verde-escuro e flores lilás. Não foi difícil estabelecer a relação. Em 1985, Sazima havia descoberto que a Serrasalmus spilopleura deposita seus ovos próximos ou em meio às raízes dos aguapés, que, mais tarde, fornecem abrigo e alimento para a cria. Outros estudos também mostravam que, para proteger a prole, o macho ou a fêmea dessa espécie atacam os possíveis predadores da cria com uma mordida de advertência. “É apenas um alerta”, diz Sazima, co-autor de Haddad no artigo sobre os ataques de Santa Cruz da Conceição publicado no final do ano passado na revista Wilderness and Environmental Medicine. “As piranhas estão indicando: afaste-se do ninho”, afirma o zoólogo da Unicamp.
Pouco agressiva, a S. spilopleura é em geral um animal solitário, que se alimenta de pequenas porções de nadadeiras e músculos de outros peixes. Além de comerem insetos, crustáceos e pedaços de aves, rãs e cobras, as pirambebas costumam roubar a isca de pescadores, por vezes levando linha, anzol e isca numa só mordida. De acordo com Sazima, somente em casos extremos uma pessoa correria o risco de ser devorada – por exemplo, se entrasse com um ferimento sangrando em um trecho de rio isolado pela seca e com cardumes de piranhas ou em uma porção de um rio na qual há descarte de carcaças de matadouros. Mesmo assim, o mais provável é que o ataque fatal fosse provocado por outra espécie, maior e mais robusta, a Pygocentrus nattereri ou piranha-queixuda, cujo ventre avermelhado lhe valeu o nome de piranha-caju, encontrada em cardumes maiores.
Antes incomuns no Estado de São Paulo, os ataques de pirambebas a banhistas se tornaram freqüentes nos últimos cinco anos. Os pesquisadores atribuem esses episódios à soma de uma série de fatores. Um dos mais importantes é o represamento dos rios paulistas para navegação, produção de energia elétrica e abastecimento de cidades, que origina os remansos – lugares favoráveis à procriação de peixes e à proliferação dos aguapés, onde as piranhas depositam seus ovos -, e as praias. Além disso, o ciclo de reprodução das piranhas coincide com o verão, quando aumenta a freqüência de banhistas nas praias de rio.
Arraias nos rios
Depois dos ataques em Santa Cruz da Conceição, Haddad constatou pessoalmente cerca de cem outros acidentes por mordida de pirambeba nos municípios de Iacanga e Itapuí, próximos a Bauru, na região noroeste de São Paulo. Em cada uma dessas cidades banhadas pelo rio Tietê, o pesquisador da Unesp observou 50 ataques a banhistas em apenas dois finais de semana. Haddad e Sazima alertam para o risco de um outro tipo de acidente muito mais grave: os provocados pelo ferrão de arraias de água doce do gênero Potamotrygon. Peixes cartilaginosos aparentados dos tubarões, as arraias apresentam o corpo em forma de um disco de até 50 centímetros de diâmetro. Sua cauda longa tem um ferrão ósseo serrilhado, rodeado por gládulas produtoras de um potente veneno que provoca a morte dos tecidos.
As arraias migraram há 20 milhões de anos da região Amazônica para os rios do interior do país. Os pesquisadores acreditam que a construção de barragens, como a de Itaipu, favoreceu a proliferação e a migração de arraias, permitindo que atingissem o rio Paraná. Haddad, que no ano passado detalhou o tratamento de ferimentos por arraias no livro Animais peçonhentos no Brasil: Biologia, clínica e terapêutica dos acidentes (468 páginas, Editora Sarvier), já ouviu pescadores relatando a captura de arraias em Ilha Solteira, próximo à região em que o rio Paraná recebe as águas do Tietê. “Em poucos anos”, diz ele, “as arraias podem se tornar comuns nos rios paulistas.”
O Projeto
História Natural, Ecologia e Evolução de Vertebrados Brasileiros (nº 00/12339-2); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Marcio Roberto Costa Martins – Universidade de São Paulo; Investimento R$ 851.027,74