catarina besselUm conjunto de mudanças na carreira dos professores das universidades federais, que passam a valer no início deste mês, provocou reações ásperas na comunidade científica e em parte das entidades representativas dos docentes. O alvo das críticas é a lei nº 12.772/2012, sancionada pela presidente Dilma Rousseff no dia 28 de dezembro, resultado de um acordo entre o governo federal e a Federação de Sindicatos de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior (Proifes-Federação) celebrado após a greve que paralisou as universidades federais no ano passado. Embora tenha motivações ligadas aos salários dos docentes – que terão reajuste médio de 16% em 2013 –, a nova lei modifica pontos estruturais da carreira que vigoravam desde abril de 1987. “A lei deveria ser rasgada, pois o conceito de universidade foi ferido”, afirma Helena Nader, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que em fevereiro alertou a presidente Dilma da insatisfação da comunidade científica durante uma reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
Os críticos argumentam que a lei pode desestimular a pesquisa universitária nas federais e inviabilizar a atração de grandes talentos para a carreira acadêmica. Isso porque o ingresso na universidade federal só poderá ocorrer no primeiro nível da classe de professor auxiliar, independentemente da titulação do docente, e a progressão entre um nível e outro da carreira passa a exigir o intervalo de 24 meses. Segundo a nova lei, a universidade federal passa a ter dois tipos de professor titular. Um é o titular de carreira, que, além de ter doutorado, precisa galgar os degraus da vida acadêmica. Outro é o titular-livre, talhado para quem já tem pelo menos 20 anos de doutorado e quer ingressar numa federal.
Para ilustrar o problema, a pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Debora Foguel, conta um caso emblemático, que, segundo ela teme, pode se tornar recorrente. Recentemente, a UFRJ recebeu a visita de Cedric Villani, um jovem matemático francês que conquistou em 2010 a cobiçada Medalha Fields, concedida pela União Internacional de Matemática. Villani obteve o título de doutor em 1998. Se fosse convidado a ingressar na UFRJ, teria de entrar como auxiliar 1. Como não tem 20 anos de doutorado, também estaria desabilitado para ser professor titular-livre. “Isso será um problema, já que estamos trazendo vários pesquisadores brilhantes dentro do programa Ciência sem Fronteiras. A esses, teremos que oferecer vagas de professor auxiliar. Na hipótese de querer trazer o Cedric Villani, eu não teria coragem sequer de fazer tal convite”, declara Debora. Para Helena Nader, o tempo de doutorado não tem vínculo direto com a competência. “Você pode ter alguém com cinco anos de doutorado, mas que já tem condições de ser professor titular”, explica.
A lei também veta a abertura de concursos específicos para as classes de auxiliar, assistente e adjunto. Mesmo que o aprovado tenha título de doutor, o ingresso será na categoria de auxiliar e, passados três anos do período probatório, ele segue para o nível de adjunto. A promoção, contudo, pode ser acelerada de acordo com a titulação do professor – mestrado ou doutorado. O presidente da Proifes-Federação, Eduardo Rolim, explica que a razão disso se baseia em acórdãos do Tribunal de Contas da União, que impedem o ingresso de servidores no meio da carreira. “Isso aconteceu até agora porque nossa carreira é de 1987, anterior à Constituição de 1988”, acrescenta.
A insatisfação das sociedades científicas cresceu em agosto, quando o Palácio do Planalto apresentou o projeto que deu origem à lei. O texto causou polêmica também entre as entidades sindicais. Na ocasião, após reunião entre representantes dos ministérios do Planejamento e da Educação e de três entidades ligadas aos professores, duas delas – o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) – não assinaram o acordo, entre outros motivos por considerarem que o projeto desestruturava a carreira de docente. Em novembro, enquanto o projeto tramitava na Câmara, a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) divulgaram um manifesto no qual afirmavam que alguns aspectos da proposta poderiam trazer “graves dificuldades, problemas e, por que não dizer, retrocesso para as universidades federais brasileiras, principalmente no que tange à qualidade da pesquisa”.
O novo texto estabelece que os concursos devem exigir pelo menos diploma de graduação, mas não deixa claro se as instituições poderão continuar a restringir o edital apenas para candidatos que possuam o título de doutor, como a maioria faz hoje. “Os professores que ingressam nas universidades federais sem título de doutor muito dificilmente conquistam tal título ao longo da carreira”, afirma Debora Foguel. As universidades pretendem seguir exigindo em seus concursos que os candidatos tenham título de doutor. “Mas confesso que estou temerosa que essa estratégia seja objeto de contestação na Justiça por parte de candidatos”, avalia a professora da UFRJ, instituição na qual apenas 20% dos docentes não são doutores.
As alterações na legislação forçaram algumas universidades a cancelar, às pressas, concursos que estavam em andamento. De acordo com Helena Nader, um desses concursos teria como candidato um experiente professor que concorreria ao cargo de titular na Unifesp. Ao saber do cancelamento do edital e das novas condições para ingressar na universidade, ele preferiu desistir da vaga. “A universidade deve gerar conhecimento novo, não apenas transmitir conceitos”, avalia a presidente da SBPC. Para a professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Elizabeth Balbachevsky, as universidades federais podem perder a oportunidade de trazer de volta brasileiros que realizam pesquisa em países que no momento sofrem com a crise econômica. “Você acha que um professor que esteja na Universidade Stanford, na Califórnia, voltará para cá para ser professor auxiliar?”, indaga Balbachevsky.
A ex-secretária Nacional de Educação Superior e professora do curso de direito da Universidade de São Paulo (USP) Maria Paula Dallari Bucci acompanhou o início das discussões sobre alguns conceitos presentes na lei, quando, ainda no MEC, conduziu um esforço conjunto com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) para a implementação da autonomia das universidades federais. A lei nº 12.772, segundo ela, deve ser lida com atenção, levando em conta artigos inovadores que estão sendo negligenciados nas discussões. No artigo 21º, por exemplo, que especifica o que é permitido durante o regime de dedicação exclusiva, há uma passagem que, segundo Maria Paula, beneficia diretamente a pesquisa nas universidades federais: a retribuição, em caráter eventual, por trabalho prestado no âmbito de projetos institucionais de pesquisa e extensão. Outro ponto lembrado pela professora é a regulamentação do estágio probatório. “O professor que fez o concurso não tem a permanência garantida. Ele passa por uma avaliação de desempenho e isso evita a acomodação de professores. É uma das poucas leis no Brasil que tratam disso”, afirma. O artigo 26º também é considerado importante por ela — junto com o mecanismo de reposição automática de docentes aposentados, falecidos ou desligados, criado em 2007 —, pois institui uma comissão para formulação e acompanhamento da execução da política de pessoal docente. “A lei permite a gestão do quadro de professores pela universidade, de acordo com o projeto dela. Cada universidade tem seu projeto, seus desafios e dificuldades”, conclui Maria Paula.
O vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Luiz Henrique Schuch, contesta a afirmação da ex-secretária do MEC de que a lei amplia a autonomia universitária. “A nova lei delega ao ministério o estabelecimento de diretrizes que ainda não foram definidas.” Isto configura, na visão de Schuch, uma afronta à autonomia, uma vez que o desenvolvimento na carreira deveria ser definido no âmbito institucional.
Outra novidade é que acaba a limitação de 10% de professores titulares nos quadros das universidades. Qualquer docente, na categoria professor associado 4, com título de doutor, poderá pleitear a promoção para titular, independentemente da existência da vaga. “Sem essa limitação, será mais fácil atrair professores qualificados que vêm de fora e desenvolver a pós-graduação em universidades mais jovens”, diz Rolim.
Elizabeth Balbachevsky, contudo, observa no caso brasileiro um movimento contrário à tendência mundial de permitir que a universidade desenvolva seu próprio plano de carreira. A professora participou de um estudo internacional que avaliou, entre 2005 e 2007, o impacto da globalização na profissão acadêmica em 19 países de todos os continentes. O estudo mostra que, tradicionalmente, a organização da profissão nas universidades oscila entre dois grandes tipos ideais: o mercado acadêmico, da experiência norte-americana, e o modelo estatal. O primeiro se caracteriza por uma alta mobilidade, em que a instituição negocia condições específicas de contratos, quando está interessada em atrair um determinado profissional. Essa situação tende a criar uma intensa mobilidade de profissionais em todos os níveis de carreira, pois, conforme o professor amadurece, ele tem maior capacidade para negociar condições específicas com as instituições que se interessam por ele.
Esse é o segredo do dinamismo do sistema universitário dos Estados Unidos, diz a professora, pois é relativamente fácil para uma instituição criar competência em áreas emergentes de pesquisa, contratando alguns pesquisadores com nome e experiência na área e que lideram a formação de novos laboratórios e grupos de pesquisa. “Um professor recém-formado não terá condições para atrair recursos para projetos mais ambiciosos e liderança para propor uma agenda de pesquisa relevante”, pontua.
No segundo modelo, o acadêmico é contratado como servidor público, e daí decorre sua estabilidade, o que tende a contribuir para a fixação do pesquisador numa instituição muito cedo. Esse modelo era muito comum em países europeus. Ainda assim, em diferentes países a estrutura de acesso a diferentes pontos da carreira, especialmente na posição de professor titular, tendia a promover a mobilidade dos professores, especialmente os mais ambiciosos, interessados em subir na carreira. Nas últimas décadas, essa concepção de plano de carreira perdeu força na Europa, onde, desde o final dos anos 1980, já se identificava uma capacidade de resposta limitada ante as crescentes demandas da sociedade, onde a competitividade da economia depende da capacidade de se manter na liderança da inovação (ver mapa). Dentre os países emergentes, a China também introduziu reformas importantes na carreira acadêmica, deixando-a mais flexível, explica Elizabeth. “Para a China, a reforma do ensino superior é central para a estratégia do país de sair de um modelo de inserção no mercado internacional baseado no baixo custo de mão de obra para outro baseado em vantagens competitivas criadas pela capacidade de inovação das indústrias chinesas”, diz.
O MEC defende a nova lei, mas admite que poderá rediscutir alguns pontos. Em nota, a Secretaria de Educação Superior do MEC afirmou que “algumas das questões sobre a estruturação do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal estão sendo tratadas pelo MEC diretamente com as universidades”. Ainda segundo o ministério, o objetivo da lei é buscar a valorização da dedicação exclusiva e a titulação dos docentes. Em janeiro, uma nota técnica divulgada pelo MEC tenta esclarecer pelo menos um tópico da lei. De acordo com o documento, além da exigência de diploma de graduação, as instituições poderão solicitar nos editais outros requisitos, como a apresentação de títulos de pós-graduação, de acordo com o interesse da universidade.
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