Entre a década de 1960 e os anos 2000, o Brasil recebeu mais imigrantes do Norte global, como portugueses ou norte-americanos, e estrangeiros com perfil socioeconômico alto. Em sua maioria, essas pessoas não dependiam do Sistema Único de Saúde (SUS) ou de escolas públicas, recorrendo a serviços privados. Era um cenário distinto do atual, marcado pela presença de imigrantes em situação de vulnerabilidade. Lançada neste ano pelo Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp), a nova edição do Atlas temático mostra que o país tem cerca de 415 mil imigrantes registrados no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), ferramenta do governo federal para reconhecer famílias de baixa renda.
“Identificamos a existência de um grande contingente de imigrantes vivendo no Brasil em situação de vulnerabilidade”, relata a demógrafa Rosana Baeninger, coordenadora do trabalho. A pesquisadora esclarece que, embora o país possua uma legislação favorável aos imigrantes, sem a articulação entre os entes federativos por meio de uma política migratória nacional, a atuação das prefeituras é sempre pontual e emergencial.
Entre os 5.570 municípios brasileiros, somente 230 contam com algum tipo de política voltada a estrangeiros. Um deles é a cidade de São Paulo, que atualmente abriga cerca de 500 mil imigrantes registrados, em sua maioria bolivianos, venezuelanos e angolanos. Em 2016, a prefeitura criou a Lei nº 16.478, que instituiu a Política Municipal para a População Imigrante e o Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (Crai) Oriana Jara.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP Pessoa pede informações no Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes Oriana Jara, em São PauloLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
Entre 2020 e 2025, o Crai atendeu 46,7 mil pessoas. Na unidade fixa, situada no bairro da Bela Vista, região central da cidade, circulam imigrantes bolivianos, venezuelanos, afegãos, angolanos, senegaleses, nigerianos, sírios, entre outras nacionalidades. “Estão em busca de serviços como regularização migratória e acesso à educação, além de orientação jurídica e psicológica”, informa o congolês Grevisse Mulamba Kalala, assistente de Gestão de Atendimento na unidade. “Somos procurados por pessoas de mais de 100 nacionalidades, muitas delas em situação de vulnerabilidade.”
No contingente de pessoas que buscam atendimento no Crai, a psicóloga colombiana Ana León, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, destaca um fluxo crescente de crianças que estão sozinhas. “Em 2025, atendemos 18 crianças desacompanhadas”, relata León, que está há 12 anos no país. Os casos são complexos, afirma a psicóloga, como foi o de uma mãe adolescente que migrou com seu bebê de colo.
Esse não é um caso isolado. Segundo o relatório “Refúgio em números 10ª edição”, apenas no ano passado foram registradas no Brasil 14 mil solicitações de refúgio para pessoas menores de 15 anos, um valor considerado elevado. Ao todo, no mesmo período, o governo brasileiro recebeu 68 mil pedidos de reconhecimento da condição de refugiado (ver gráfico). O número total de solicitações representa o terceiro maior volume de pedidos da história, só perdendo para os anos de 2018 e 2019. Publicado em 2025, o relatório é produzido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), em parceria com o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), vinculado à Universidade de Brasília (UnB) e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
No Brasil há 11 anos, Kalala é um dos vários imigrantes que trabalham no Crai. Ele imigrou da República Democrática do Congo para se juntar a parentes que já viviam na cidade. Formado em engenharia da computação, fala sete idiomas, como suaíli, francês, inglês e espanhol. A exemplo de León, Kalala avalia que seus maiores desafios no Brasil são a dificuldade de acesso à educação superior e as barreiras para revalidação do diploma universitário. Enquanto León demorou três anos para ter seu diploma reconhecido, Kalala não conseguiu ainda revalidar seu documento. Isso porque o procedimento é custoso e exige a apresentação de comprovantes que precisam ser solicitados pessoalmente nos países de origem. “Em muitos casos, é mais fácil fazer uma nova graduação do que reconhecer o diploma no Brasil”, lamenta o engenheiro.
Nesse sentido, a historiadora Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, presidente da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, gerida pela Unicamp e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), lembra que algumas universidades brasileiras possuem políticas específicas para o ingresso de pessoas em situação de refúgio e risco. De acordo com o relatório da Cátedra, 13 instituições no país contavam em 2020 com esse tipo de política, a exemplo da Unicamp. “Em 2025, o processo seletivo para refugiados da universidade recebeu mais de 300 inscrições de estudantes da Ucrânia, Síria, Colômbia, Venezuela, Angola, Cuba, Gana e Irã”, relata a pesquisadora.
Junto com o antropólogo francês Michel Agier, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, Maciel prepara um documentário, que deve ser lançado em 2025. O filme faz parte de pesquisa financiada pela FAPESP que investiga o percurso de refugiados. “Nosso projeto combina pesquisa acadêmica e oficinas de formação, com a entrega de câmeras para 14 refugiados da Síria, Ucrânia, Afeganistão, Venezuela e República Democrática do Congo radicados no Brasil e na França”, detalha a pesquisadora. “A ideia é que eles próprios registrem suas vivências. A narrativa pessoal é uma das poucas coisas que essas pessoas carregam consigo quando precisam fugir dos países de origem. Queremos dar visibilidade a essas histórias.”
Em São Paulo, o desconhecimento em relação aos próprios direitos e o preconceito são outros problemas enfrentados pelos imigrantes. Para entender essa realidade, a socióloga Jaciane Pimentel Milanezi Reinehr, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), realizou pesquisa, financiada pela FAPESP, para investigar o acesso de mulheres imigrantes haitianas a serviços públicos de saúde. O trabalho de campo, que aconteceu em uma unidade básica de saúde (UBS), constatou que essas pessoas eram vistas de forma estigmatizada. “O comportamento delas ou a falta de conhecimento que tinham sobre o funcionamento dos serviços públicos no Brasil eram criticados por parte dos profissionais da saúde”, afirma.
Com reflexão similar, Jameson Vinicius Martins da Silva identificou na pesquisa de doutorado realizada na Faculdade de Saúde Pública da USP, com apoio da FAPESP, que alguns imigrantes não conseguem acessar serviços de saúde por uma série de barreiras linguísticas, culturais e burocráticas, além de práticas discriminatórias por parte de profissionais da saúde. “Por outro lado, há unidades na cidade de São Paulo mais acostumadas com fluxos migratórios, que desenvolvem práticas inclusivas. No entanto, esse cenário não é homogêneo”, diz Silva, que defendeu a tese em 2024.

Paulo Pinto / Agência BrasilNa capital paulista em 2024, casa de acolhimento recebe refugiados afegãosPaulo Pinto / Agência Brasil
Além de São Paulo, outra cidade com política voltada a imigrantes é Corumbá, em Mato Grosso do Sul. Elaborada a partir de trabalhos conjuntos realizados com o Observatório Fronteiriço das Migrações Internacionais (Migrafron), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), uma deliberação de 2022 do Conselho Municipal de Educação da cidade passou a regulamentar a matrícula de crianças, adolescentes e adultos migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio na educação básica do sistema municipal.
Outro equipamento central dessa política é a Casa do Migrante, vinculada ao serviço de assistência social da prefeitura, que acolhe imigrantes independentemente de sua situação legal. Em 2024, o espaço realizou quase 2 mil atendimentos, segundo a professora Patrícia Teixeira Tavano, coordenadora do Migrafron. “Além de abrigo, o local oferece alimentação, orientação para obtenção de documentos e encaminhamento para serviços de saúde”, informa.
Localizada na fronteira com o Paraguai e a Bolívia, Corumbá tem moradores de 28 nacionalidades, sobretudo bolivianos, mas também venezuelanos, colombianos, equatorianos, haitianos e palestinos. “Devido à sua posição geográfica, o município é um ponto estratégico de acesso ao território brasileiro”, explica Tavano.
De acordo com ela, além de imigrantes que fixam residência na cidade, há um movimento de bolivianos que trabalham, estudam ou utilizam serviços de saúde no Brasil, retornando diariamente ao país vizinho. O trânsito na fronteira é igualmente intenso em sentido contrário, ou seja, de brasileiros que vão à Bolívia fazer compras e acessar o ensino superior, especialmente cursos de medicina.
Assim como Corumbá, a cidade de Dourados (MS) está próxima da fronteira com a Bolívia e o Paraguai. Segundo Hermes Moreira Junior, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, da Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD) e do Acnur, comunidades indígenas de diferentes etnias costumam se deslocar entre essas fronteiras com frequência, sendo que muitos não têm documentos de identificação.
Dados da Defensoria Pública do estado indicam que mais de 200 indígenas cruzam diariamente as fronteiras entre Brasil, Bolívia e Paraguai, sem registro formal. “Essa invisibilidade jurídica os coloca em situação de vulnerabilidade extrema, dificultando acesso a direitos básicos”, diz Moreira Junior. “Além disso, muitos deles não falam português”, acrescenta a jurista Juliana Tomiko Ribeiro Aizawa, coordenadora do grupo de pesquisa Mobilidade, Integração e Direitos Humanos, da UFGD.

Marcelo Camargo / Agência BrasilImigrantes venezuelanos na cidade de Boa Vista (RR), em 2018, em busca de moradia e trabalhoMarcelo Camargo / Agência Brasil
Moreira Junior e Aizawa relataram em artigo publicado no ano passado a história de Inocente Arevalo Orellana. Nascido na Bolívia em 1979, ele pegou carona em um caminhão e cruzou a fronteira com o Brasil, chegando a Dourados, sem registro civil, em 2008. Em razão de sua condição psiquiátrica, passou semanas em situação de rua até ser acolhido por uma instituição religiosa de caridade.
Por mais de 40 anos, Orellana viveu como apátrida, ou seja, sem ter sua nacionalidade originária reconhecida por nenhum país. “Ele não possuía nenhum registro civil ou documento oficial, apenas uma certidão de batismo”, conta Aizawa. “No Brasil, não recebeu diagnóstico nem tratamento médico adequado por não contar com os documentos exigidos para acessar regularmente o SUS.”
A partir de setembro de 2023, Moreira Junior conduziu o processo de reconhecimento formal da condição de apátrida de Orellana, que se desenrolava há quase dez anos. Ele não foi identificado como boliviano por não ter registro oficial que comprovasse o seu país de nascimento. Realizada em parceria com o Ministério Público, a Polícia Federal e o MJSP, a iniciativa envolveu também instituições bolivianas, como o Consulado Plurinacional da Bolívia em Corumbá.
A condição de apátrida de Orellana foi finalmente reconhecida no final de 2023. Segundo Aizawa, a lentidão aconteceu pelo fato de Orellana não possuir qualquer registro formal e em razão dos desafios trazidos pela condição de sua saúde mental, que dificultou a comunicação com outras pessoas. Outro motivo é o ineditismo do caso: Orellana foi a primeira pessoa em Mato Grosso do Sul a ser reconhecida pelo governo brasileiro como apátrida. Desde então, outros dois casos no estado foram concluídos.
A reportagem acima foi publicada com o título “As novas faces da imigração no Brasil” na edição impressa nº 355 de setembro de 2025.
Projetos
1. Cidades de direitos: As políticas de saúde para migrantes internacionais nas cidades de São Paulo (Brasil) e Barcelona (Espanha) (nº 18/22974-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Deisy de Freitas Lima Ventura (USP); Bolsista Jameson Vinícius Martins da Silva; Investimento R$ 230.082,84.
2. Trajetórias sem fronteiras/ trajectoires sans frontières: Memória e trauma de refugiados do mundo contemporâneo (nº 23/16222-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ana Carolina de Moura Delfim Maciel (Unicamp); Investimento R$ 205.430,65.
3. Raça e saúde em trânsito: A governança da saúde de migrantes internacionais na Região Metropolitana de São Paulo (nº 19/13877-4); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Marcia Regina de Lima Silva (Cebrap); Bolsista Jaciane Pimentel Milanezi Reinehr; Investimento R$ 649.615,40.
Artigos científicos
AIZAWA, J. T. R. e JUNIOR, H. M. Fronteiras marginais e o primeiro apátrida de Mato Grosso do Sul. Brasília, DF, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Revista Tempo do Mundo. n. 35. 2025.
MILANEZI, J. Distinções, mediações excludentes e desigualdades: A governança da saúde reprodutiva de “cadastradas difíceis”. Dados ‒ Revista de Ciências Sociais, 67 (2). 2024.
MILANEZI, J. “O problema é cultural: Estigmas, comportamentos e vigilâncias reprodutivas de mulheres haitianas.” In: REIS, Elaine et al. (orgs.). Justiça reprodutiva: Desafios interseccionais na saúde coletiva. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2025.
Livros
BAENINGER, R. et al. (orgs.). Atlas temático: Observatório da emigração brasileira – Observatório das migrações dos países de língua portuguesa ‒ Migrações internacionais. v. 3. Campinas: Núcleo de Estudos de População Elza Berquó da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp). 2025.
MAGALHÃES, L. F. A. et al. (orgs). Migrações e refúgio: Temas emergentes no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População Elza Berquó da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp). 2024.
Relatório
JUNGER, G. et al. Refúgio em números 10ª edição. Brasília, DF: Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública / Departamento das Migrações. 2025.
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