No final do ano passado, quando lia a edição de setembro da Immunity, o biólogo molecular Geraldo Passos Junior, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, quase caiu da cadeira. Num artigo publicado nessa revista, pesquisadores da Universidade de Colorado, Estados Unidos, davam conta de que a expressão alterada num gene de camundongo, o Ifi202, aumentava o risco de os animais desenvolverem o lúpus sistêmico, doença auto-imune crônica que provoca lesões na pele e órgãos internos. Não foi exatamente a notícia da descoberta do papel desse gene – importante, sem dúvida – que causou surpresa em Passos. Mas, sim, a coincidência de que ele e seus colegas da USP haviam acabado de obter dados interessantes ligando um gene humano ao lúpus.
Estudando linfócitos de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico, os pesquisadores de Ribeirão Preto conseguiram identificar a expressão alterada do human interferon stimulated gene, justamente o equivalente humano do Ifi202 de camundongos que a equipe norte-americana havia identificado estudando a doença nos animais. Com a ajuda da técnica de chips de DNA ou microarrays (literalmente microarranjos), que permite analisar simultaneamente o padrão de expressão (uso) de milhares de genes de células submetidas às mais variadas situações ou provenientes de patologias, levantaram evidências de que o human interferon stimulated gene se comporta de uma maneira em pacientes de lúpus que receberam tratamento com drogas imunossupressoras e de outra em doentes não tratados.
Em pessoas não medicadas, a expressão do gene é mais alta. É como se ele fosse mais intensamente utilizado pelas células do sistema imune dos pacientes. Em indivíduos tratados, sua expressão é mais baixa. É como se a terapia neutralizasse temporariamente a ação do gene. As comparações foram feitas com RNA mensageiro (molécula da maquinaria genética que dirige a síntese de proteínas nas células) obtido a partir dos linfócitos do sangue de três pacientes tratados e três não-tratados do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. “Esses dados ainda são preliminares”, comenta Passos. “Ainda estamos no início dos estudos.”
Não foi apenas o comportamento do equivalente humano do Ifi202 que chamou a atenção dos pesquisadores. Os experimentos realizados no laboratório de microarrays da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto indicaram que cerca de 60 outros genes parecem se expressar de forma mais acentuada durante a fase aguda, mais severa, do lúpus. Alguns desses genes são conhecidos e estão envolvidos em processos como a apoptose (a morte programada e natural das células) e a compatibilidade imunológica (genes do complexo HLA). Outros são completamente novos, de função ainda desconhecida.
O fato de 60 genes se mostrarem superexpressos não quer dizer, de forma alguma, que todos eles devem estar implicados na origem da enfermidade. “Esses dados precisam ser refinados”, diz o reumatologista Eduardo Donadi, também da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, responsável pelo subprojeto do temático que estuda a expressão de genes em doenças auto-munes. Recebem essa denominação as enfermidades, geralmente crônicas, que são desencadeadas por problemas no sistema de defesa celular, que, em vez de atacar elementos externos ao organismo, passa a combater os seus próprios tecidos sadios. Além do lúpus, a equipe de Donadi estuda a expressão de genes em mais duas doenças auto-imumes, a artrite reumatóide e o diabetes melito tipo 1.
Maturação imunológica
Em torno de Passos, trabalha um grupo de pesquisadores que tenta mapear, em camundongos, genes expressos pelo timo, órgão vital no desenvolvimento do sistema imunológico, situado sobre o coração. Produzidos na medula óssea, os linfócitos, um tipo de célula de defesa, migram para o timo, onde se reprogramam e se diferenciam em dois tipos de células T, CD4 ou CD8, cuja atuação é fundamental na defesa do organismo. Para descobrir genes ligados a esse processo de diferenciação, Passos estuda a expressão de 6 mil genes no timo de fetos de camundongos, num momento crucial da formação do sistema imunológico: entre o décimo quinto e o décimo sexto dia de gestação.
Com softwares que analisam os resultados dos experimentos com os chips de DNA e também com macroarrays (uma tecnologia um pouco mais antiga e dez vezes menos precisa do que os microarrays), os pesquisadores conseguiram identificar 152 genes (24 com funções conhecidas e 128 cujas funções ainda têm de ser atribuídas) cujo padrão de expressão se modificou de forma radical nesse intervalo de tempo. “Agrupamos os genes que apresentaram uma diferença de expressão da ordem de 50 vezes, para mais ou para menos entre o décimo quinto e o décimo sexto dia de gestação”, explica Passos.
Uma terceira linha de pesquisa procura apontar genes que são ativados ou reprimidos em linfócitos humanos expostos à radiação ionizante, um processo que freqüentemente provoca lesões e quebras no DNA humano, o que aumenta a incidência de, por exemplo, linfomas (tumor maligno que acomete os gânglios linfáticos) e outros tipos de câncer em populações expostas a fontes de contaminação radioativa. Compreender as alterações no padrão de expressão gênica de linfócitos expostos a radiação é, portanto, um passo importante para entender a origem de certas formas de câncer.
Esse subprojeto do temático é coordenado por Elza Tiemi Sakamoto-Hojo, que trabalhou com vítimas da contaminação por césio-137, ocorrida em Goiânia em 1987, num episódio que entrou para a história como o mais grave acidente com fontes radioativas do Brasil. Em linhas gerais, o trabalho da equipe da bióloga consiste em cultivar em laboratório diferentes tipos de tecidos humanos – células normais e células geneticamente modificadas, mais sensíveis aos efeitos da radiação – que serão submetidos a distintas doses de radiação gama, emitidas a partir uma fonte de cobalto-60.
Durante o processo de contaminação radioativa, com o auxílio da técnica de microarrays, o padrão de expressão de uma série de genes – ligados, por exemplo, ao reparo do DNA, ao controle do ciclo reprodutivo e à morte celular – será analisado em amostras das diversas linhagens celulares em estudo.Em estudos piloto Elza realizou experimentos com a metodologia de macroarrays, na qual os genes analisados são depositados numa membrana de náilon em vez de numa lâmina de vidro, como ocorre nos microarrays, fazendo uma triagem de genes expressos diferencialmente durante a irradiação de linfócitos em cultura in vitro.
“Estamos muito preocupados com os efeitos cumulativos da exposição contínua de pessoas, sobretudo de profissionais da saúde, a baixas dosagens de radiação”, comenta a pesquisadora. “Acreditamos que nosso trabalho pode ter impacto não só no campo da radiobiologia, mas também na oncologia.”
O Projeto
Projeto Transcriptoma: Análise da Expressão Gênica em Larga Escala Usando DNA-Arrays (nº 99/12135-9); Modalidade Projeto temático;
Coordenador Geraldo Aleixo da SilvaPassos Júnior – USP; Investimento R$ 358.461,98 e US$ 386.773,00