Minha linha de pesquisa, há 20 anos, é com malária e não pretendo mudá-la drasticamente. Durante a pandemia avançamos no que foi possível, usamos o ano passado para escrever e finalizar análises de dados e artigos pendentes. A partir de setembro de 2020 solicitei à Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] que parte do meu time trabalhasse com a Covid-19 – cerca de 40% da equipe – e por isso conseguimos retomar as atividades no laboratório, buscando fármacos que possam ser eficazes contra o Sars-CoV-2, com apoio da FAPESP.
O time foi vacinado durante os primeiros meses do ano com a permissão da prefeitura de Campinas, que abriu essa possibilidade para os profissionais da saúde. Não fiz nada sem o aval da equipe, perguntei se queriam trabalhar com a doença e pedi declarações por escrito. Eles são cientistas, têm vontade de contribuir. Elaboramos um protocolo de segurança para evitar aglomerações, de acordo com as normas da universidade, que incluía o uso de banheiros, a proibição do uso da copa e a obrigatoriedade de utilização de máscaras tipo N95. O laboratório, que compartilho com outros colegas, é espaçoso e dividido em várias salas. Praticamente só meu time voltou, o que facilitou enormemente a implementação das normas. Até hoje, não tivemos nenhum caso da doença.
Os alunos que não voltaram se concentraram em fazer disciplinas on-line. Houve uma estafa muito grande, era um grande volume de informação o tempo todo. Não é a mesma coisa fazer aulas remotas, os alunos podem ficar muito cansados e alguns professores também não se sentem estimulados.
Eu já tinha uma parceria de longos anos com a Fundação de Medicina Tropical e a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] Amazônia, ambas de Manaus, pelo trabalho com malária, e isso se fortaleceu durante a pandemia, em projetos sobre a Covid-19. Eu tinha uma rotina de viagem muito intensa: passava uma semana por mês em Manaus, fora as viagens internacionais para congressos. Quando parou foi um baque grande, agora me readaptei. Quando voltar a viajar, pretendo mudar a periodicidade.
As parcerias internacionais que eu já tinha também se intensificaram: com colegas de Singapura, das universidades de Glasgow, na Escócia, e de Gotemburgo, na Suécia. Com o Reino Unido, tenho reuniões semanais para dar andamento aos projetos. A cada vez um pesquisador em pós-doutorado fala sobre o andamento de sua parte. É muito bom, mas em um primeiro momento gerou uma carga muito intensa de trabalho, agravada pela variação de fusos horários. É importante sabermos o que está acontecendo com os colegas, até na parte pessoal. Tenho um colega que perdeu o pai, por exemplo.
Também faço parte das coordenações de área da FAPESP, de saúde. No começo eu tinha a percepção de que faríamos as mesmas reuniões, mas on-line. No entanto, reuniões on-line têm formatos distintos. Sendo assim, fomos amadurecendo para chegar a um novo formato que ficou bastante produtivo. On-line não é igual a presencial, isso foi uma das primeiras coisas que senti. Tive que organizar o horário de trabalho: estava fazendo reuniões à noite, acordando cedo. A cabeça precisa descansar para produzir, a qualidade de sono precisa ser boa. Então me organizei para fazer reuniões de manhã e análises à tarde. No início deste ano já tinha um formato virtual de reuniões muito mais palatável.
Também foi necessário repensar a parte experimental. Tivemos problemas com importações, pelo rearranjo mundial de distribuição de insumos. Às vezes, kits para fazer dosagens de anticorpos em pacientes não chegavam. A produção não foi redimensionada de maneira adequada, voos foram cancelados, aconteceu uma série de entraves. Precisamos entender e ter calma para não gerar muita expectativa na hora de começar os projetos. Em paralelo, temos feito análises do plasma de pacientes de Manaus. Em momentos em que havia uma janela ou a molécula não chegava, podíamos realizar outro tipo de atividade possível e todos os dias avançar em frentes distintas relacionadas à doença. O importante é manter a produtividade e se adaptar constantemente aos entraves. Isso na pandemia se tornou rotina.
Depois de algumas reuniões, combinamos fazer uma reestruturação na nossa planilha de decisão, que chamamos de Go / No-Go. Teríamos que ser tão assertivos quanto possível antes de ir para o NB3. Nos projetos de malária, a dinâmica para a descoberta de novas drogas é um pouco mais ativa. Existe um vaivém bastante intenso entre a parte de modelagem molecular (in silico), feita com minha colega da Universidade de Goiás, que usa algoritmos e inteligência artificial, e a fase de análises fenotípicas (ensaios in vitro nos parasitas). Isso permite redimensionar e prever quais moléculas são mais promissoras em inibir o patógeno e ao mesmo tempo aprimorar nosso algoritmo. No início é difícil encontrar moléculas boas, mas isso não é surpreendente, porque faz parte desse processo de aprimoramento. Não existe dado ruim: ele sempre ajuda a avançar, mesmo que não traga a resposta que estamos buscando.
Na procura por medicamentos contra a Covid-19, a logística utilizada nos projetos de malária não se mostrou eficaz porque é preciso dosar o uso do laboratório NB3. Por isso, trabalhar com Covid-19 não foi uma continuação direta do que faço. É como fazer um bolo: ainda uso ovo, farinha e fermento. Mas mudou a ordem em que os ingredientes entram e como eles estão hierarquizados na gestão do laboratório.
Publicamos dois artigos em que achamos até moléculas interessantes, mas o caminho ainda é bem longo e tortuoso. Quanto mais avançamos, mais me convenço de que não existe uma bala de prata para a questão, considerando o caráter multifatorial da infecção.
Agora que já criamos os mecanismos de redes colaborativas e financiamento, é preciso manter. Isso vai ser muito importante para responder a esse tipo de crise. A comunidade científica reagiu, se reestruturou para responder. Me surpreendeu também o quanto a comunidade acadêmica atendeu à mídia. As instituições de pesquisa estão saindo fortalecidas desse processo, espero que esse legado seja mantido.
Alterei muito o gerenciamento da equipe tentando ser mais compreensivo, sabendo o momento de cobrar um dado. Temos bolsistas que perderam avós, primos ou tios por Covid-19. Foi um impacto muito grande, inclusive no moral do time. Recomendei que fizessem curso de mindfulness ou procurassem ajuda médica. Deu para perceber, em várias reuniões, que ninguém estava bem, principalmente os pesquisadores em estágio de pós-doutorado, que têm a pressão de conseguir emprego. Expliquei que isso é mundial, muitas pessoas estão na mesma situação. Fiz uma abordagem individualizada, perguntando se os familiares estavam bem e uma série de questionamentos para mapear o estado de espírito de cada um.
Quando minha filha era pequena, às vezes fazíamos uma brincadeira: eu dizia que ela estava invisível e ficava procurando. Ela achava que estava invisível, porque faltava o retorno do outro. A pandemia faz isso: sem interação, não tenho feedback e me pergunto se estou invisível. Isso gera ansiedade, transtornos, insegurança. Explico à minha equipe que todas as pessoas estão passando pela mesma coisa, mas eles não sabem por que estão isolados. Não é a mesma coisa interagir sem a presença.
Recentemente eu e minha família saímos de uma casa e fomos para um apartamento. Em confinamento o espaço da casa faz falta, mas em uma coisa acertei: cada um tem seu quarto. Reorganizamos a estrutura de trabalho, cada um no seu canto, fazendo as atividades. Assim um não interfere muito no outro e não é tão grave se preciso fazer alguma reunião tarde da noite. Refiz o plano de dados da internet, mas, às vezes, ainda temos dificuldade quando estamos todos on-line. Também fiz uma rotina de exercício diário que me ajudou a manter a saúde mental. Agora no inverno ainda está de noite quando acordo, mas continuei e às 6h30 já estou correndo.
Tenho duas filhas. Em um momento, a mais nova estava sentindo muito medo, não conseguia dormir. Uma amiguinha tinha perdido o pai por causa da Covid-19. Eu faço 50 anos no próximo ano, mas expliquei que estou com boa saúde, vacinado, faço exercícios, estou com os exames em dia. Claro que não posso prometer nada, mas fazemos tudo o que podemos para evitar que algo grave aconteça, nos baseamos nas evidências científicas. Ela entendeu e se acalmou, percebe que é uma informação sólida, que não estou inventando. Vejo muita ansiedade na mais velha, que está no ensino médio. Pedi orientação a um colega da psiquiatria e ele me perguntou vários parâmetros, se ela estava interagindo com colegas, se falava com o pai e a mãe. Me aconselhou a ficar de olho e não forçar. Eu disse a ela que está ruim para todo mundo, que ela não precisa ter pressa para entrar na universidade e pode fazer como achar melhor, por exemplo tirar um ano sabático. Expliquei que o que ela está sentindo faz parte da situação atual, é um ser humano.
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