O porto cearense de Pecém, a 60 quilômetros de Fortaleza, será o primeiro ponto da costa brasileira a abrigar uma usina piloto de geração de energia elétrica pelas ondas do mar. Quando ela estiver completa, em escala comercial, será capaz de gerar inicialmente 500 quilowatts (kW), suficientes para suprir as necessidades de consumo de 200 famílias. A principal inovação tecnológica em relação a usinas de ondas desenvolvidas em outros países, muitas ainda em estágio de testes, é o uso de uma câmara hiperbárica – um recipiente de aço que armazena água comprimida e simula as pressões existentes no fundo o mar – para produzir energia.
A câmara hiperbárica já vem sendo usada no Laboratório de Tecnologia Submarina da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável pela coordenação do projeto, para estudar o comportamento de estruturas utilizadas na produção de petróleo em águas profundas. Foi essa experiência que levou os pesquisadores da instituição, coordenados pelo professor Segen Stefen, do Programa de Engenharia Oceânica, a conceber um dispositivo para a usina funcionar de forma semelhante a uma hidrelétrica.
No mar, a uma distância de aproximadamente 3 quilômetros da praia, sobre o quebra-mar do porto, ficam instalados flutuadores, ligados a uma estrutura metálica em forma de viga de 22 metros de comprimento. Com a passagem das ondas, os flutuadores se movimentam para cima e para baixo e atuam como uma espécie de bomba, impulsionando a água armazenada em um tanque por um tubo até a câmara hiperbárica de alta pressão. A câmara simula a pressão de uma queda-d’água, similar à de uma usina hidrelétrica, que movimenta turbinas para gerar energia.
A hidrelétrica, depois de represar a água do rio, tem uma queda-d’água de 100 a 200 metros, responsável por girar a turbina que está embaixo. No caso da usina de ondas, a água do mar é armazenada na câmara hiperbárica. “A potência da hidrelétrica é dada pela vazão de água multiplicada pela pressão. A nossa vazão está armazenada na câmara, que mantém água sob pressão equivalente a uma queda-d’água de 300 metros”, diz Stefen. Depois da câmara hiperbárica, tudo funciona de forma convencional, como se fosse uma hidrelétrica. A água em forma de jato aciona a turbina, que, acoplada ao gerador, produz eletricidade. Essa seqüência de movimentos ocorre continuamente enquanto houver ondas, mas pára se elas cessam”, relata Stefen. Por isso a escolha do local para instalar a usina é estratégica para o sucesso do empreendimento.
Vento contínuo
No caso do porto cearense, ela se beneficia de um fenômeno que ocorre praticamente em todo o Nordeste, chamado de ventos alísios, responsável pela brisa que sopra continuamente. “Essa região não tem ondas muito grandes, mas elas são constantes”, diz o coordenador do projeto, que começou a pensar nessa usina em 2001, na época em que no Brasil se discutiam possíveis alternativas energéticas para a crise do apagão. “Naquele ano, nós organizamos e sediamos uma conferência internacional em que o tema central da discussão era o mar”, conta Stefen. Ele se refere à International Conference on Offshore Mechanics and Arctic Engineering (Omae), ou Conferência Internacional de Mecanismos Costeiros e Engenharia Ártica, evento promovido anualmente pela Associação Americana de Engenheiros Mecânicos, da sigla em inglês Asme, sediada nos Estados Unidos. Como a crise energética brasileira era um assunto que estava em todas as rodas de discussão na época, um dos temas tratados na conferência, além das estruturas para produção de petróleo, foi o aproveitamento da energia das ondas para gerar eletricidade.
O primeiro passo para levar adiante a ideia de aproveitar a energia do mar começou com um levantamento do que estava sendo feito naquele momento em outros países. Após um seminário sobre o potencial da energia das ondas no Brasil, apoiado pelo Ministério das Minas e Energia e realizado em 2002 no Rio de Janeiro, o projeto começou efetivamente a tomar forma, com estudos sobre tamanho, público-alvo e modelo de funcionamento. Vários outros levantamentos foram feitos pelos pesquisadores para avaliar a viabilidade de desenvolver a primeira usina de ondas das Américas. Um deles mostra que o litoral brasileiro tem potencial para suprir 15% do total de energia elétrica consumida no país, hoje em torno de 300 mil gigawatts por ano. “Com 8,5 mil quilômetros de costa e cerca de 70% da população ocupando regiões até 300 quilômetros da costa, o país apresenta condições propícias para obter vantagens com essa fonte de energia abundante, renovável e não-poluente”, diz Stefen. Estimativa do custo de energia das ondas aponta que deverá ficar entre os custos da hidrelétrica – US$ 1 mil o kW – e o da eólica – US$ 1,4 mil o kW. “Somente a versão comercial trará o valor exato”, ressalva Eliab Ricarte Beserra, aluno de doutorado participante do projeto.
Tanque oceânico
Modelos em escala reduzida da usina de ondas foram testados no tanque oceânico da Coppe, que simula ambientes marinhos em profundidades de até 5 mil metros, para avaliar a resistência do produto a condições adversas. Já foi feito também o dimensionamento do protótipo em escala real. Dentro de um mês serão feitas as medições do local, e a previsão é que até o final de 2005 comecem a ser instalados os dois primeiros módulos do protótipo, que vão gerar 50 quilowatts, energia suficiente para iluminar e fazer funcionar uma pequena fábrica. A usina foi concebida de forma modular para facilitar a ampliação quando houver necessidade de gerar energia adicional. “Durante dois anos será feito um monitoramento do protótipo da usina para avaliar como se melhora o desempenho e otimiza a máquina até chegar ao produto final”, explica Stefen. Só depois disso é que a energia no modelo comercial será fornecida para a rede de energia elétrica convencional. Nessa fase entrarão inicialmente em funcionamento 20 módulos da usina.
Para que as pesquisas fossem estendidas até chegar à usina piloto foi assinado um convênio no início do ano passado entre Coppe, Eletrobrás e governo do Ceará. A universidade ficou encarregada do desenvolvimento do equipamento e monitoramento do protótipo. Para a etapa de implantação do protótipo, a empresa dará metade do valor necessário para o projeto, com custo estimado em R$ 3,5 milhões. A outra metade depende da aprovação de um pedido feito à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) pela própria Eletrobrás, cujo resultado deve sair até setembro. O governo do Ceará cuidará da infra-estrutura e do apoio logístico, para viabilizar a monitoração das condições do mar.
A energia das ondas, na atual fase, não tem como objetivo substituir as outras fontes hoje utilizadas, mas sim complementá-las. Não existe ainda uma tecnologia única para fazer funcionar uma usina desse tipo. Um dos modelos mais estudados é o da planta piloto instalada nas ilhas dos Açores, em Portugal. Ele se baseia em um sistema conversor de energia chamado de OWC (coluna de água oscilante, da sigla em inglês Oscillating Water Column) para aproveitamento das ondas. Em terra fica uma câmara de ar, que também contém água, ligada com o mar através de uma boca submersa. A elevação das ondas provoca uma diferença de pressão do ar na câmara. Essa diferença funciona num sistema de compressão e descompressão que faz a turbina girar e produzir eletricidade por meio de um gerador.
Os possíveis impactos ambientais relativos à instalação de uma usina de ondas são descritos como mínimos pelos pesquisadores. Como a experiência na utilização desses projetos ainda é pouca, não é possível avaliar em toda a extensão os efeitos que poderá causar ao ambiente circundante. “O principal impacto será sentido durante o período de construção, com todo o aparato de montagem à beira-mar”, ressalta Beserra. De qualquer forma, no modelo real que será montado no porto cearense a água que passa pela câmara hiperbárica e movimenta a turbina fica dentro de um circuito fechado, para evitar que seja devolvida ao mar com qualquer tipo de contaminação.
O interesse em obter energia das ondas ganhou impulso a partir da década de 1970 com a crise do petróleo e um reforço, principalmente entre os países da Europa, com a assinatura do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução de emissões de gases poluentes em até 12% entre 2010 e 2012. Uma das formas de atingir essa meta é aumentar a participação das energias renováveis na geração de eletricidade. Mas a ideia de aproveitar essa matriz energética é bem antiga. Em 1799 a França já registrava o primeiro pedido de patente de uma usina de ondas. A primeira a efetivamente funcionar por meio dessa energia foi a do porto de Huntington, na Grã-Bretanha, em 1909, que a utilizava para iluminação do cais. “Essa usina foi destruída pelas próprias ondas, pois o conhecimento técnico era incipiente na época”, diz Eliab Ricarte Beserra, da UFRJ.
Estudos realizados no Reino Unido sobre o potencial energético disponível nos oceanos indicam valores da ordem de 1 terawatt (TW), o que significa a possibilidade de suprir toda a demanda do planeta. “Embora o aproveitamento de toda a energia disponível nos oceanos é praticamente impossível, a conversão em eletricidade de uma pequena fração pode ter grande significado para os países que dominarem essa tecnologia”, diz o professor Segen Stefen.
Vários países têm feito pesquisas nesse sentido, como Estados Unidos, Canadá, Noruega, Suécia, Dinamarca, Reino Unido, Holanda, Espanha, Portugal, Índia, China, Coréia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia. Já possuem instalações no mar em operação comercial a Holanda, com o projeto AWS, de 2 megawatts (MW) de potência, Portugal, com o OWC, de 400 quilowatts (kW), e o Reino Unido, com o Limpet, de 500 kW. A Dinamarca instalou recentemente no mar a Wave Dragon, com 4 MW de potência, e o Reino Unido um protótipo, que já possui proporções comerciais, chamado de Pelamis, com 750 kW (veja Pesquisa Fapesp nº 112). O Japão tem o maior número de protótipos e fez uma série de adaptações para fins específicos, como para barcos que fazem dragagem utilizando a energia das ondas.
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