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Física

Neurônios Artificiais

Computador substitui células nervosas de siris e lagostas

Durante meia hora o siri-azul permanece coberto por gelo em uma caixa de isopor no laboratório do físico Reynaldo Daniel Pinto, da Universidade de São Paulo (USP). Quando é retirado de lá, já está anestesiado pela temperatura baixa. Sobre a bancada, o pesquisador abre a carapaça desse crustáceo chamado de Callinectes sapidus e o examina por dentro. Entre os olhos está o cérebro e, logo abaixo, o estômago. Daniel Pinto identifica os 30 neurônios que controlam o sistema de digestão e de mastigação do siri, isola-os cuidadosamente e inicia uma operação delicada: com o auxílio de um microscópio, implanta em uma dessas células nervosas um eletrodo de vidro preenchido com uma solução de cloreto de potássio, cuja ponta é mais fina que um fio de cabelo. Fios de cobre conectam esse eletrodo a um circuito eletrônico que converte os impulsos nervosos em números digitais, que podem ser entendidos por um computador comum, que agora cumpre um papel especial: substitui uma das células extraídas e atua como um neurônio artificial. Eis um siri biônico.

Nesse experimento, o físico avalia a capacidade do computador de executar a mesma função de um neurônio chamado disparador anterior, uma das 14 células nervosas que compõem o circuito pilórico, que comanda o transporte de alimento do estômago para o intestino. Se um desses neurônios é destruído ou se interrompe a comunicação com os centros nervosos no cérebro, os demais passam a emitir sinais elétricos desordenados e a digestão pára. É aí que o computador entra no jogo: devidamente programado, transforma-se em um neurônio virtual que se comporta como seu similar biológico, de modo semelhante a um marca-passo.

Outro eletrodo espetado no neurônio injeta uma corrente com íons – partículas atômicas carregadas eletronicamente – de potássio e de cloro que migram para a célula. Recria-se assim na célula o ambiente químico necessário à transmissão do impulso nervoso. Tão logo recebe o estímulo, a célula nervosa do siri reage e transmite a informação para os neurônios seguintes. Em menos de dois segundos, uma mensagem chega ao estômago e os movimentos da musculatura voltam a empurrar o alimento rumo ao intestino.

Com essa mesma técnica é possível estudar como diferentes tipos de sinapses, as conexões entre os neurônios, atuam no processamento de informação, como relatado em um artigo publicado em junho na Neuroscience. “É um jogo de perguntas e respostas em que tentamos compreender a linguagem usada pelos neurônios”, diz Daniel Pinto. O desenvolvimento desses neurônios artificiais é um desdobramento do Projeto Temático coordenado pelo físico Iberê Luiz Caldas, que já resultou em um modelo de previsão do comportamento das bolsas de valores (veja Pesquisa FAPESP nº 65).

Se ainda não compreendem a linguagem dos neurônios, os físicos conseguem ao menos decifrar algumas de suas respostas. Em outro experimento, a equipe da USP simulou o funcionamento de um grupo de neurônios que integra o conjunto de 30 células nervosas do circuito nervoso ligado à mastigação e digestão do siri-azul, espécie encontrada no litoral brasileiro e apreciada por sua carne saborosa. Associados ao controle da mastigação, 11 desses 30 neurônios transmitem as informações em um ritmo muito mais lento que os do circuito pilórico. Quando se interrompe a comunicação entre essas células e o gânglio central, o grupo todo de neurônios pára de funcionar: os músculos que movimentam os dentes, localizados no estômago do siri, ficam paralisados. Dessa vez o computador não age apenas como um marca-passo que dispara sinais elétricos num ritmo constante: também recebe e interpreta sinais emitidos pelas células nervosas antes de enviar outro pulso elétrico.

As quatro equações
Devidamente programado, o computador envia estímulos elétricos para um neurônio específico do circuito desligado – o gástrico lateral – e volta a ficar silencioso. Ao ser provocado, o gástrico lateral reage com um rebote e devolve o impulso elétrico ao neurônio artificial, antes de ficar novamente inativo. Cria-se um ciclo de estímulos, rebotes e silêncios que afeta os demais neurônios do grupo. O resultado final é que o ritmo de funcionamento do circuito é recuperado – e a mastigação volta a se manifestar. “A simples presença do rebote e o ciclo de respostas e ausências de atividade que ele acaba criando parecem ser suficientes para que o circuito volte à normalidade, sem a necessidade de um neurônio marca-passo”, diz Daniel Pinto.

Ele não imaginava que teria de estudar o comportamento dos neurônios. Durante o doutorado, trabalhou com a Teoria do Caos e explicou os comportamentos de gotas d’água que pingam de uma torneira semi-aberta. A convivência com equações que procuram prever o desdobramento de fenômenos complexos foi fundamental para a guinada em sua carreira. Durante seu pós-doutoramento na Universidade da Califórnia, em San Diego, Estados Unidos, Daniel Pinto aplicou a física ao estudo da atividade dos neurônios de outro crustáceo, as lagostas espinhosas californianas (Panulirus interruptus), que medem até 40 centímetros. Foi quando desenvolveu o programa que faz um computador comum atuar como um neurônio.

Daniel Pinto resgatou um modelo matemático de neurônio que trabalha com três equações da Teoria do Caos e acrescentou uma quarta equação. Pôde assim construir um circuito eletrônico capaz de emitir sinais elétricos e atuar como um neurônio artificial. Mas havia limitações. Quando queria mudar a mensagem enviada às células biológicas, tinha de recomeçar do zero e construir outro circuito. Com o aumento da velocidade e da capacidade de memória dos computadores, criou um programa baseado naquelas quatro equações que permite à máquina atuar como um neurônio digital. Agora ele consegue alterar as variáveis das equações e fazer uma mesma máquina enviar ordens diferentes para os neurônios verdadeiros.

Esse programa poderia levar à produção de próteses anatômicas contendo neurônios artificiais. Aprimorado, poderia também auxiliar no tratamento de pessoas com paralisia nos braços e nas pernas. Mas ainda é futurologia. O físico Antonio Carlos Roque da Silva Filho, da USP de Ribeirão Preto, mistura otimismo e cautela ao explicar o estágio atual das pesquisas nessa área. “Nas últimas três décadas produziu-se grande quantidade de informações sobre o funcionamento do cérebro humano”, diz ele. O desafio ainda é construir modelos matemáticos e computacionais que interpretem os dados gerados. “Fenômenos ligados à percepção e às emoções, como a memória e a consciência”, afirma Silva Filho, “ainda permanecem ilustres desconhecidos”.

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