A mata atlântica tem sido palco dos principais ciclos econômicos brasileiros nos últimos 500 anos. Desde a colonização portuguesa, a região passou por longos períodos de uso intensivo e desregulado voltado à extração ou à produção agrícola para exportação. É o caso do pau-brasil e da cana-de-açúcar, cuja exploração contribuiu para a ocupação da região da Zona da Mata no Nordeste. No decorrer dos séculos, esse uso passou pelos ciclos do ouro e do café, pela expansão urbana sobre a floresta a partir da década de 1920 e, mais recentemente, pelo corte ilegal de madeira, a caça e captura de animais e a extração de plantas como o palmito-juçara (Euterpe edulis), fonte de alimento para várias espécies de aves. Todos esses processos transformaram a paisagem do ecossistema. Mas quem assistiu às palestras do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação no dia 22 de agosto viu que, apesar de degradado, o que resta da floresta atlântica ainda abriga grande diversidade de espécies de plantas e animais.
“São cerca de 5 mil variedades de plantas encontradas somente na mata atlântica, das quais as bromélias, as orquídeas e as palmeiras são as mais abundantes”, disse o botânico Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Joly, coordenador do Programa Biota-FAPESP, dirigia-se a um auditório repleto de estudantes e professores universitários e do ensino médio de São Paulo. Segundo ele, à época da chegada dos portugueses a mata atlântica era a segunda maior floresta tropical da América do Sul; estendia-se por pouco mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados (km²), ou 15% do território nacional, ao longo da costa brasileira e do interior de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, abrangendo área em que atualmente estão 17 estados. Hoje, porém, restam apenas 7% (95 mil km²) de sua cobertura original, sendo os índices de desmatamento mais elevados nos estados do Nordeste, onde o total de áreas remanescentes não passa dos 2%. Também devido à sua dimensão territorial, o domínio atlântico reúne diferentes tipos de ambientes, constituídos por vegetações de dunas, restingas e mangues, além de matas de araucária e florestas úmidas de porte mais denso, conhecidas como matas de encosta. Isso sem contar pequenos enclaves próximos a outros ecossistemas, como os campos dos pampas e as planícies do pantanal (ver Pesquisa FAPESP n° 207).
Dentre as espécies que compõem esses ambientes, as que fazem parte das vegetações de dunas e mangues são as que enfrentam as condições ambientais mais adversas, em parte devido à alta salinidade e à instabilidade do solo em que nascem. “São poucas as espécies que sobrevivem nesse tipo de ambiente”, disse Joly. “Áreas de mangue, por exemplo, são inundadas pela água do mar, com altos índices de salinidade. Assim, essas espécies de plantas desenvolveram mecanismos adaptativos específicos para sobreviver a essas condições.” Segundo ele, os manguezais de todo o mundo são caracterizados por apenas três gêneros arbóreos: Rhizophora, Avicennia e Laguncularia. Esse ambiente hostil para árvores é berçário para centenas de espécies de peixes e crustáceos, por isso sua degradação leva a uma perda de US$ 1,6 bilhão por ano, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
Os remanescentes de mata atlântica são importantes na formação de rios e cachoeiras, cujas águas são responsáveis pelo abastecimento dos 125 milhões de pessoas que atualmente vivem no domínio atlântico. “Trata-se de um serviço ambiental da mais alta relevância para os seres humanos”, disse Joly. A densidade populacional nessas áreas tem aumentado de modo acelerado nos últimos anos, dando origem a um novo problema, agora de ordem pública. É que além de ácido, arenoso e muito pobre em nutrientes, o solo da mata atlântica é raso e bastante instável. Vêm justamente dessa característica, agravada pela ocupação de vertentes e sopés das serras, os episódios de deslizamento como os que afetaram a região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, matando mais de 900 pessoas.
O alto grau de endemismo verificado entre as espécies de plantas também se estende à fauna da mata atlântica. De acordo com o biólogo André Freitas, também do Instituto de Biologia da Unicamp, 45% das espécies de borboletas presentes na floresta atlântica são exclusivas desse ecossistema. Ele explica que a origem dessa diversidade biológica começou a se diversificar há milhares de anos, a partir de rotas migratórias bastante distintas. “Existe uma nítida divisão norte-sul no que diz respeito à origem dessa diversidade”, disse. “Da metade norte do Espírito Santo aos limites da mata atlântica no Nordeste, a fauna é repleta de elementos amazônicos. Mais ao sul, esses elementos estão mais associados às espécies da cordilheira dos Andes.” Essa divisão se deu ainda no período Mioceno, há 23 milhões de anos, quando a placa tectônica de Nazca, no Pacífico, se chocou com a da América do Sul, dando origem aos Andes, uma cadeia de montanhas de cerca de 3.500 metros de altura que se estende do Chile à Venezuela.
Passado dividido
O surgimento desse enorme paredão mudou completamente a biogeografia da região. Até então, os rios que hoje formam a bacia amazônica corriam para o oceano Pacífico. As montanhas, contudo, interromperam seu fluxo e deram forma à bacia atual, com águas escoando para o oceano Atlântico. Enquando isso, variações periódicas no clima originaram corredores naturais, com matas frias e úmidas, que permitiram a migração de espécies andinas para a mata atlântica. “Chegando lá, essas espécies começaram a se diversificar”, disse Freitas. Um exemplo é a formiga Leptanilloides atlantica, espécie recém-descrita da serra do Mar – as formigas desse gênero só era conhecido na região dos Andes e na América Central. Também a borboleta Hyalenna pascua é a única representante na mata atlântica de um gênero andino. “Esses animais são de montanhas altas, com clima frio. Por isso não chegaram à porção norte da floresta atlântica.”
Quem alcançou a parte norte da mata atlântica foram as espécies amazônicas, quando a floresta no Nordeste se uniu à vegetação amazônica das Guianas e do Pará, perto da ilha de Marajó, além das regiões dos rios Xingu, Tocantins e Araguaia (ver Pesquisa FAPESP n° 210). Um dos resultados dessa união é a saíra-prateada (Tangara velia cyanomelaena), ave presente na mata atlântica que tem como parente mais próximo a amazônica Tangara velia iridina, além de diversas espécies de borboletas, besouros, lagartos e anfíbios.
Também as variações climáticas do passado têm um papel importante nessa história, já que fizeram com que a floresta aumentasse e diminuísse de tamanho em determinadas épocas. Sabe-se que a manutenção contínua da mata atlântica depende de certas condições climáticas e de solo. “Mas no passado, quando o clima era mais frio e boa parte da floresta estava mais seca, é possível que ela tenha sido reduzida a poucas áreas, onde os requisitos mínimos necessários para sua manutenção permaneciam intactos”, disse Freitas. Essas florestas ficaram, então, isoladas, favorecendo esse processo de diferenciação regional entre espécies do mesmo gênero. Essas regiões são conhecidas como centros de endemismo. Na mata atlântica existem três centros importantes: nos estados de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro. Além desses há outros dois centros secundários, um em Santa Catarina e outro mais ao centro do país, conhecido como Araguaia. “Para muitos grupos de animais típicos de florestas úmidas, é bastante clara a diferenciação entre as populações dos centros de endemismo do ecossistema atlântico, confirmando um processo histórico de diferenciação regional no passado.”
Um caso bastante conhecido, e que evidencia a existência desses centros de endemismo, diz respeito aos micos-leões (Leontopithecus). São quatro espécies na mata atlântica, uma de cada um desses centros; todos com padrões de cor diferentes. “A grande diversificação e o alto grau de endemismo da fauna da mata atlântica podem ser explicados por diferentes processos atuando em conjunto.” Assim, concluiu Freitas, a grande diversidade biológica encontrada ao longo desse ambiente se deve à interação entre as tolerâncias ambientais dos diferentes grupos animais, à heterogeneidade de hábitats, como florestas, restingas e campos, e aos processos históricos, como variações climáticas.
O que há para conservar?
O fato de a mata atlântica estar bastante degradada, mas abrigar muitas espécies endêmicas, fez com que ela fosse inserida no mapa dos hotspots de biodiversidade no mundo: áreas que já perderam ao menos 70% de sua cobertura vegetal original, mas que, juntas, abrigam mais de 60% de todas as espécies terrestres do planeta. Hoje essas regiões ocupam 2% da superfície terrestre, abrigando mais de 1,1 bilhão de pessoas. Muitas das atividades econômicas desenvolvidas nelas dependem dos produtos de ecossistemas sadios, a partir da exploração de plantas e animais silvestres. Para Joly, tais fatores fazem da mata atlântica uma área prioritária para conservação.
Mas isso não tem acontecido. Em junho, a SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgaram a versão mais recente do Atlas de remanescentes florestais da Mata Atlântica. Segundo ele, após três anos em queda, o desmatamento na floresta atlântica voltou a subir entre 2011 e 2012, chegando ao maior valor desde 2008. De acordo com o pesquisador do Inpe Flávio Jorge Ponzoni, um dos palestrantes convidados, o aumento em 2012 foi liderado por Minas Gerais, responsável por metade do desmatamento no período. Ponzoni participou da elaboração do Atlas e explicou que o monitoramento inclui áreas de até 3 hectares, aproximadamente três campos de futebol. “Tudo é feito a partir da interpretação visual de imagens geradas via satélite. Trata-se de uma análise subjetiva. Assim, para garantir que as informações sejam comparáveis, nós atualizamos, anualmente, o banco de dados.” Foi a quarta vez consecutiva que Minas Gerais liderou o ranking de quem mais desmatou. Isso levou a SOS Mata Atlântica a fazer uma denúncia ao Ministério Público de Minas, que respondeu à altura. “Impressionou a agilidade com que as autoridades se mobilizaram”, comentou Ponzoni.
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Efeitos globais
A não conservação da floresta atlântica pode desencadear outro problema: é sabido que o desmatamento contribui com o aquecimento global. Ocorre que se as temperaturas continuarem a aumentar, a tendência é que a floresta devolva à atmosfera mais dióxido de carbono (CO2) do que emitia antes. “Quando comparamos a floresta atlântica com a amazônica, verificamos que há uma diferença gigantesca em relação à quantidade de CO2 acumulado seja no tronco e nos galhos das árvores, seja no solo”, disse Joly. O mesmo acontece em relação à quantidade de nitrogênio (N) estocado no solo, cuja liberação deve se acelerar com o aquecimento.
O cenário parece não ser mesmo dos melhores. Até 2100, 30% da área hoje ocupada por 60 espécies de árvores na mata atlântica deve ser perdida. “Essa é uma projeção com base em cenários otimistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em que todos cumpram com os compromissos firmados no Protocolo de Kyoto e que a temperatura mundial não suba mais que 2 graus neste século”, alertou Joly. Na pior das hipóteses, em que a temperatura suba até 4 graus, a estimativa é que percamos 65% dessa mesma área.
O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação é uma iniciativa do Programa Biota-FAPESP, em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, voltada à discussão dos desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros (ver programação aqui). Até novembro, as palestras apresentarão o conhecimento gerado por pesquisadores de todo o Brasil, visando a contribuir com a melhoria da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio do país.
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