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Pesquisa na quarentena

“No Japão as pessoas levaram a sério a necessidade de respeitar o distanciamento para conter o vírus”

O filósofo Pedro Erber fala sobre os impactos da pandemia em seu cotidiano no Japão, onde vive com a mulher e dois filhos

Pedro Erber em sua casa em Tóquio: livro publicado neste ano propõe reflexões sobre a pandemia

Arquivo pessoal

Aqui em Tóquio a virada da normalidade à anormalidade foi lenta. Começamos a ter notícias sobre a Covid-19 na China no final de 2019. Como o Japão já tinha sido afetado por outros vírus que também começaram naquele país, entre eles o da gripe aviária, ficamos em alerta, sabendo que mais cedo ou mais tarde o Sars-CoV-2 provavelmente chegaria aqui. Quando o Japão começou a registrar aumento de casos, em março de 2020, o governo decidiu atrasar a volta às aulas. Naquele mês, as universidades estavam de férias. O começo das aulas foi sendo adiado até que se definiu que elas aconteceriam somente de forma on-line. O trabalho da minha mulher, que é jornalista, também passou a ser remoto. Esse foi o impacto mais imediato da pandemia nas nossas vidas. 

Nosso filho mais velho tem 2 anos. Em Tóquio, a decisão de fechar escolas foi feita de acordo com a quantidade de casos da doença em cada bairro. Onde moramos, as creches do sistema público não fecharam em nenhum momento. Isso foi de grande ajuda, porque nosso filho não deixou de frequentar a escola. No começo, conseguimos trabalhar bem.  Escrevi um livro, A filosofia em quarentena, que publiquei no Brasil pela Zazie Edições. O governo pediu para as pessoas evitarem sair de casa e os restaurantes fecharem mais cedo. Era quase verão e o clima estava quente. Por causa disso, podíamos fazer programas ao ar livre, como passear de bicicleta. Porém, em julho, nossa situação de anormalidade aumentou. Tivemos um segundo filho, bem no meio da pandemia. Foi um período complicado. Não pude visitar minha mulher e o bebê durante os seis dias em que estiveram no hospital. Também não visitamos nem recebemos amigos e familiares do Brasil por vários meses. Por outro lado, a rotina de trabalho remoto permitiu que convivêssemos mais tempo em casa com o bebê.

As tarefas profissionais foram, de certa forma, facilitadas, porque deixamos de perder tempo para ir e voltar do trabalho e encontramos espaço para fazer outras atividades, como correr e nos exercitar entre uma aula e outra, no meu caso. Penso, porém, que perdemos qualidade no ensino. As aulas ficam muito diferentes no modelo on-line. Dar aulas olhando para uma tela dá menos satisfação do que presencialmente. No começo, eu me sentia frustrado. Agora penso que todos se acostumaram em certa medida. 

Hoje, o cotidiano está mais normalizado. Aqui, as pessoas já tinham o costume de usar máscara quando estavam com alergia ou resfriado. Agora usam todo o tempo. Antes da pandemia, eu ia para a academia, mas passei às atividades ao ar livre. Há muitos amigos que não posso encontrar, principalmente os mais velhos, que não estão saindo de casa. 

Logo no começo da pandemia, o governo japonês errou ao permitir que pessoas que estavam a bordo de um cruzeiro internacional com muitas infecções confirmadas desembarcassem no país sem controle e ao demorar para fechar as fronteiras de voos vindos da Europa e dos Estados Unidos. O país estava preocupado com as Olimpíadas, que seriam realizadas em Tóquio nos meses de julho e agosto. Algo que me impressionou foi como as pessoas aceitaram com boa vontade os pedidos do governo para respeitar o distanciamento, mesmo sem nenhum tipo de restrição legal ou multa. Houve um esforço grande de conscientização. E as pessoas sabiam dos riscos, pois já tinham lidado com outras epidemias. Depois que a situação começou a melhorar, o governo passou a incentivar as pessoas a gastar dinheiro, como forma de revitalizar o comércio. Esses estímulos acabaram priorizando certos setores empresariais e aliados políticos. Por exemplo, o governo fez uma promoção para incentivar as pessoas a comer em restaurantes, mas as reservas tinham de ser feitas em sites específicos. Foram tentativas que acabaram por deixar de lado pequenos comerciantes. Além disso, era cedo demais para essas medidas e, hoje, o governo de novo está pedindo para que as pessoas evitem sair de casa. Seguimos trabalhando remotamente. Minha mulher voltou da licença-maternidade. Não conseguimos vaga na creche para o bebê, mas a prefeitura local oferece um serviço de babá para famílias nessa situação. Então, temos um rodízio de babás cuidando do nosso filho menor, enquanto o mais velho passa o dia na creche. 

O livro que publiquei sobre a pandemia partiu das leituras de ensaios recentes de pensadores de quem conheço bem a obra. Tive a impressão de um descompasso na tentativa desses autores de compreender o momento atual a partir da tradição filosófica. Um deles foi o filósofo italiano Giorgio Agamben, que analisou as medidas para conter a pandemia como abuso do mecanismo de estado de emergência. É uma ideia que Agamben desenvolve a partir do conceito de soberania política do filósofo alemão Carl Schmitt [1888-1985], com o qual ele trabalha há muitos anos. No caso atual, penso que não foi um abuso do mecanismo de estado de exceção. Ao contrário, dessa vez acho que era necessário decretar estado de emergência. 

Já o filósofo Byung-Chul Han, que nasceu na Coreia do Sul e se naturalizou alemão, em suas discussões sobre a reação de diversos países frente à pandemia, delimitou as medidas tomadas na Europa e Ásia, como se toda Europa tivesse reagido da mesma forma e toda a Ásia também. Na verdade, o que aconteceu na Coreia, China ou Taiwan foi muito diferente. Penso que a interpretação de Han se apoiou em um modo de entender essas diferenças culturais a partir de uma visão bastante difundida e já muito criticada de uma separação radical que existiria entre Europa e Ásia. Por outro lado, também discordo da interpretação otimista de alguns pensadores de esquerda, que enxergaram na crise causada pela pandemia o começo do fim do capitalismo e a chance de inaugurar um sistema novo. 

Vivemos uma situação que afeta o mundo todo, uma catástrofe que já tinha sido antecipada pela ciência e até mesmo pela indústria cultural. As mudanças climáticas, os desastres naturais que decorrem dela e diversos problemas causados pela agropecuária em escala industrial estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano. Não dá para afirmar que estamos em uma situação inesperada. Sem mecanismos e instituições de cooperação política transacional como a Organização Mundial da Saúde, por exemplo, mas em escala mais ampla, estaremos expostos a outros estragos causados por pandemias e males afins no futuro. Além disso, a economia precisa ser gerenciada de modo a beneficiar todas as pessoas e não como algo que precisa ser protegido e blindado acima de tudo. 

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