A inserção da cultura popular contemporânea na grade curricular de escolas públicas pode ser a chave de alguns problemas estruturais no sistema brasileiro de educação, como tenta mostrar a professora Mônica do Amaral na pesquisa de políticas públicas Rappers, os novos mensageiros urbanos da diáspora afro-brasileira na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e que conta com apoio da FAPESP.
Sua argumentação teórica tem base em atividades desenvolvidas inicialmente na Escola Municipal de Ensino Fundamental José Alcântara Machado, na zona Sul de São Paulo, com continuidade na ONG Casa do Zezinho, onde ela ainda hoje coordena oficinas. Mônica pretende levar o resultado de suas pesquisas às secretarias ligadas à rede educacional do estado e do município de São Paulo.
O projeto envolve uma equipe de educadores coordenada por ela e busca rever fundamentos metodológicos do ensino básico e fundamental a partir da realização de oficinas de arte, em que se procura articular música, dança, poesias e desenhos ao letramento. A cultura hip-hop, no processo, toma posição fundamental, embora culturas populares mais antigas também entrem na roda.
Em um primeiro momento, as atividades realizadas com professores da escola José Alcântara Machado partiram de uma análise sobre a formação cultural e social da comunidade a que atendiam.
A região ocupa território na zona Sul da cidade, às margens do Morumbi, entre duas favelas, o Jardim Panorama e o Real Parque.
Seus primeiros habitantes foram migrantes pernambucanos que chegaram à cidade nos anos 1950. Eles vieram de uma região onde houvera, no passado colonial, uma política de aldea-mento forçado entre sertanejos, ex-escravos forros e índios. Muitos fugiram de condições de miséria e acabaram trabalhando como obreiros na construção do estádio do Morumbi.
A pesquisa sobre a origem da comunidade acabou alimentando três dissertações de mestrado, uma tese de doutorado, ainda em andamento, e a tese de livre-docência que ganhou o título A trama e a urdidura entre as culturas juvenis e a cultura escolar: a “eróptica” como método de pesquisa e de ruptura de campo.
No trabalho aponta-se que e a aplicação da metodologia tradicional europeia de ensino não funcionou com eficiência na periferia de São Paulo. Mais do que isso: pode contribuir com o agravamento das condições de miséria do Nordeste.
O “declínio da autoridade do professor”, expressão utilizada por Mônica, recorrendo às ideias da filósofa alemã Hannah Arendt, é questão central no debate. “Aquela autoridade tradicional, seja ela mais rígida ou mais liberal, caiu por terra˙há muito tempo. Mas, se escutarmos a história de vida daquelas crianças e de suas famílias, se valorizarmos a cultura deles, estaremos reunindo condições para restabelecer a autoridade do professor”, afirma.
Para conduzir essa aproximação, o projeto sugere, em sua segunda etapa, que está em andamento na Casa do Zezinho, articular o processo educacional ao conhecimento dessas raízes e à produção de obras artísticas que possam desvendar a realidade vivida pelos estudantes, bem como fazê-los refletir sobre ela. As linguagens ligadas ao movimento hip-hop, como o rap e o funk, pelo alcance que têm entre jovens, acabam ali ganhando força.
A base do projeto são as oficinas. Os educadores ensinam a fazer música, letras para canções e desenhos. Durante os exercícios, observam o comportamento dos alunos e, depois, os resultados. Produzem então relatórios, onde são descritas as experiências vivenciadas tanto por estudantes como por eles próprios.
Segundo Maria Cecilia Cortez, professora de Filosofia e História da Educação da USP, Mônica “envolveu os professores, abriu o olhar deles para manifestações culturais. Muitos estavam cegos, não tinham disponibilidade, tempo. Estavam enrijecidos por conta de seus hábitos”.
Embora a articulação entre educação e arte não seja algo exatamente novo, Cortez afirma que as experiências dos últimos anos ficaram isoladas em ONGs e não se estabeleceram em instituições de ensino médio e fundamental. “São trabalhos pontuais, que poderiam ser estendidos”, defende. “Quando a escola não leva em conta essas culturas, quando só traz a tradição escolar europeia, ela apresenta uma visão parcial e não realiza aquilo que a cultura brasileira fez e faz: integrar as diferentes percepções das origens indígenas ou negras no cotidiano.”
As administrações das escolas brasileiras se mantiveram “surdas” em relação a essas raízes, prossegue Cortez, e por isso caíram em uma inércia. “Você vê os alunos e os professores desinteressados com seus fazeres burocráticos. Eles não se enxergam como sujeitos capazes de participar, de elaborar”, conclui.
Também são desperdiçadas as oportunidades de conhecer mais profundamente os estudantes. Não raro, oficinas de arte fornecem rico material sobre a vida na periferia. As aulas para composição de letras, por exemplo, além de funcionarem como exercícios de “afirmação de identidade”, como diz Mônica, permitem ao professor conhecer um pouco mais os alunos envolvidos.
Trocas
Para exemplificar a troca firmada pela produção artística de meninos e meninas com vocação para o que Mônica chama de “cronistas”, a pesquisadora cita os versos de um menino chamado Renan, impressos em um folheto produzido em aula: “Eu era um pivete, neguinho de favela/ Meu pai é um bundão que vive vendo novela/Com medo de anão, escuta Belchior/ E eu no meio da rua aprendendo o que é pior”. “Veja como eles são rápidos”, diz Mônica.
Esse mesmo folheto é ilustrado com desenhos e, entre as imagens, chamou a atenção da pesquisadora a quantidade de figuras que representavam muros. “Estavam em grande número e simbolizam aquilo que os separa do resto de uma cidade bem servida pelo serviço público”, interpreta.
O contexto em que as criações se inserem, inclusive no campo da linguagem, também é debatido em aula. “Conversamos sobre quais as rupturas que aquele tipo de letra ou a quebra de ritmos permitem. E trabalhamos não só com mídias eletrônicas, mas com instrumentos afro-indígenas, tambores, instrumentos de sopro, chocalhos, para que os alunos comecem a construir novas bases”, conta.
Segundo Mônica, há experiências similares em instituições de ensino americanas.
Em janeiro deste ano, ela visitou o Hip-hop Education, centro de estudos que pertence à escola NYU Steinhardt School of Culture, Education and Human Development, em Nova York. Como complemento da grade curricular da escola, ali rappers e grafiteiros são convidados a ministrar oficinas de arte e educação.
Há um paralelo com a realidade de São Paulo. Em grandes cidades dos EUA, evasão escolar e desinteresse dos estudantes também são problemas que preocupam os administradores da rede pública de ensino. “Tanto lá como aqui, é importante partir para algo que os mobilize, que fortaleça a identidade deles e o respeito diante da sociedade. Por meio do rap, eles se impõem”, diz a pesquisadora. “Quando mostram sua potencialidade, para eles aquilo é tudo, e é assim que vão sofisticando seu trabalho, artístico, poético, estético”, defende.
Oficinas
A pesquisa de Mônica também se ampara em depoimentos. O jornalista Djalma Leite de Campos se encarrega de gravar entrevistas em vídeos com rappers e funqueiros, e o conteúdo é exibido em sala de aula. “Isso tem alimentado as nossas oficinas. Alguns depoimentos mostram o que motivou aqueles artistas a se inserir no rap. Outros trazem ensinamentos sobre como fazer bases e ritmos.”
Milton Santos foi um dos rappers que concedeu entrevista, gravada na favela do Moinho, depois de um incêndio criminoso que atingiu a comunidade. Na conversa, ele conta que já morou na Vila Madalena e em outros bairros do centro expandido da cidade, mas decidiu voltar para a região onde crescera. Não queria perder contato com a realidade que inspirou seu trabalho.
A proposição de trabalhar com o rap e com o funk, conta Mônica, causou, de início, alguma resistência dentro das instituições de ensino: “A reação foi terrível por causa de uma moralidade que condenava o rap por sua linguagem violenta e condenava o funk por conta da erotização do corpo feminino, das danças sensuais. Isso mexeu com os professores”, conta a pesquisadora.
Para ela, as análises que fundamentaram essa recusa são superficiais: Mônica diz que o funk defende o direito da mulher de falar sobre sua própria sensualidade; e o rap mimetiza a violência, o crime, a luta com a polícia, coloca o espectador no coração de uma ação, para então trazer à consciência sobre a violência que reina na periferia das grandes cidades.
“Não é pura imitação do discurso da violência e do crime. Essa é a linguagem deles. Adolescentes e jovens se identificam com a situação e a depois tomam consciência do que aquilo representa na vida deles.”
Nesse segundo ano de pesquisa, a equipe de Mônica conta ainda com o auxílio de uma professora de geografia, Lourdes Carril, e de Cláudia Florindo, de letramento. “Muitas vezes, encontramos jovens semianalfabetos que, motivados pelas oficinas, conseguem construir as letras. Meninos que não sabiam ler e meninos alfabetizados acabavam produzindo juntos”, conta.
A aposta no movimento hip-hop tem ainda outro fundamento. Estados Unidos, França, África do Sul, Angola, Portugal e muitos outros países participam de um movimento global em torno desse gênero estético. Assim como os Racionais, diz Mônica, rappers são cronistas, porque o que não sai nos jornais muitas vezes está dito nas músicas produzidas por eles. “Por isso a cultura do rap e do hip-hop conquistou respeito. É uma estética que trabalha com ritmos do passado e se combina com o que há de mais moderno em termos de técnica e mídias”, explica a pesquisadora. “Se há uma aproximação com os meios de massa alienantes, há também, em um momento seguinte, um afastamento crítico”, ela analisa.
A pesquisa conclui que a cultura hip-hop oferece ferramentas para uma revisão do sistema educacional, mas um outro problema permanece rigidamente sólido, muitas vezes dificultando a aprendizagem. A equipe coordenada por Mônica enfrentou dificuldades, principalmente porque parte das crianças e adolescentes ainda passa por problemas de violência e opressão, na rua ou em ambiente doméstico.
Houve o caso de um jovem que começou a chorar compulsivamente durante uma das oficinas. De estudantes que deixaram de prestar atenção à aula. De um aluno que perdeu a concentração porque teve amigos assassinados.
Salários de professores são um capítulo à parte.
O Projeto
Rappers, os novos mensageiros urbanos da diáspora afro-brasileira na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa (nº 2010/52002-9); Modalidade Programa de Pesquisa em Políticas Públicas; Coordenadora Mônica G. Teixeira do Amaral – USP; Investimento R$ 54.814,86