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Nobel da Paz

Nobel da Paz reconhece luta contra a violência de gênero

Ativista iraquiana e ginecologista congolês deram visibilidade ao sofrimento de vítimas de violência sexual em períodos de conflito armado

Denis Mukwege e Nadia Murad

Niklas Elmehed / Nobel Media

Ex-escrava do grupo jihadista Estado Islâmico na Síria, a ativista yazidi iraquiana Nadia Murad, de 25 anos, e o ginecologista Denis Mukwege, de 63 anos, que atende vítimas de estupro na República Democrática do Congo (RDC), são os vencedores do Nobel da Paz deste ano. Responsável pela premiação, o Comitê Norueguês destacou que a trajetória de ambos dá visibilidade à forma como a violência sexual é utilizada em guerras e conflitos armados e permite combatê-la. Nadia e Mukwege já tinham sido reconhecidos com o Prêmio Sakharov de Direitos Humanos, concedido pelo Parlamento europeu, em 2016 e 2014, respectivamente. Os dois dividiram o prêmio de 9 milhões de coroas suecas, cerca de US$ 1 milhão.

Nos últimos 10 anos, Mukwege e sua equipe atenderam mais de 30 mil mulheres vítimas de violência sexual em um hospital em Bukavu, cidade congolesa com cerca de 700 mil habitantes, mantido com recursos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e de outros doadores. Os crimes sexuais registrados no Congo ocorreram no âmbito da guerra civil que já deixou mais de 6 milhões de mortos. O médico também criou um sistema de microcrédito destinado a auxiliar as vítimas de violência a reestruturarem suas vidas, retomando os estudos, por exemplo. Em relato à rede de notícias BBC, Mukwege contou como muitas das vítimas, após serem violadas, tiveram seus órgãos genitais queimados com abrasivos químicos. Na mesma reportagem, o médico compartilhou registros de estupros coletivos nas aldeias, algo que ele qualificou como estratégia sistemática de guerra.

Nomeada a primeira embaixadora para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), Nadia faz parte da minoria étnico-religiosa yazidi e, antes do sequestro, vivia com sua família em uma pequena aldeia no norte do Iraque. Em agosto de 2014 a região, originária de grande parte dessa população, sofreu um ataque do Estado Islâmico, que resultou no assassinato de grande parte dos moradores, muitos deles homens – incluindo 18 membros da família de Nadia –, e no sequestro de meninas e jovens, mantidas em cativeiro ou vendidas como escravas sexuais. Submetida à escravidão sexual, Nadia sofreu violações e abusos como parte de estratégia de guerra que vitimou outras cerca de 3 mil mulheres, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU). Depois de três meses, ela conseguiu fugir do cativeiro com a ajuda de uma família muçulmana.

Eva Alterman Blay, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do USP Mulheres, lembra que foram poucas as vencedoras do Nobel da Paz até hoje: das 130 premiações, apenas 18 foram entregues para mulheres. “Mulheres de todo o mundo enfrentam os mesmos problemas, com posições hierárquicas inferiores no mercado de trabalho e muitas sendo vítimas de violência moral e psicológica”, destaca a professora. Eva explica que, em situações de guerra, os corpos femininos têm sido usados como armas, ou como forma de destruir etnias ou religiões. “Isso porque quando elas engravidam após um estupro o filho acaba sendo considerado do homem vencedor do conflito”, afirma.

Além disso, após sofrer violência sexual, muitas se sentem envergonhadas e escondem o ocorrido, diferentemente da atitude de Nadia, que usou sua própria experiência trágica para dar visibilidade ao tema. “A trajetória de movimentos que buscam denunciar os abusos sofridos pelas mulheres teve início em meados dos anos 1960, mas apenas em 1993 a ONU elaborou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, que procurou engajar a comunidade internacional”, lembra. Em 2008, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução 1.820, que tipifica como crime de guerra o uso de violência sexual durante conflito armado. E, desde 1998, o Estatuto de Roma, que regulamenta a atuação da Corte Penal Internacional, considera grave violação do Direito Internacional o uso de violência sexual nessa situação. “Espero que a premiação de Nadia ajude os países a reconhecer os direitos das mulheres em situações de guerra e também colabore com o combate à violência em nossas vidas cotidianas”, enfatiza Eva.

Paulo Sérgio Pinheiro, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), fundador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e presidente da Comissão de Inquérito sobre a Síria na ONU, avalia que, nos últimos anos, a comunidade internacional negligenciou a situação de escravidão sexual a que foram submetidas cerca de 3 mil mulheres yazidi, capturadas pelo Estado Islâmico em países como Iraque, Síria, Armênia, Geórgia, Turquia e Irã. Segundo Pinheiro, um relatório produzido no âmbito da ONU denunciou o genocídio da população yazidi nesses países, bem como a violência sexual praticada contra mulheres pertencentes ao grupo, muitas delas vendidas como escravas ao Estado Islâmico na Síria. “Com exceção do Canadá e da Alemanha, a reação dos estados-membros da ONU foi nula”, lamenta.

De acordo com Pinheiro, esses dois países foram os únicos a elaborar programas de suporte às cerca de mil mulheres que conseguiram ser libertadas. O paradeiro das outras 2 mil segue desconhecido. “O Nobel da Paz permitirá lembrar à comunidade internacional que há responsabilidade compartilhada entre os estados-membros em relação à guerra na Síria”, avalia. Pinheiro explica que a religião praticada pelos yazidi é sincrética, envolvendo aspectos do islã, cristianismo e judaísmo e, por isso, é considerada herética pelo Estado Islâmico.

No total, 331 indivíduos e organizações foram indicados à edição deste ano do prêmio, entregue em Oslo, na Noruega. Em 2017, a campanha internacional para proibir as armas nucleares (ICAN, na sigla em inglês) foi a vencedora do Nobel da Paz.

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