Os vencedores do Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2020 foram dois norte-americanos e um britânico, agraciados por suas contribuições para a identificação do vírus da hepatite C, inflamação no fígado que pode causar sérios problemas de saúde, como cirrose hepática e câncer. O anúncio, feito pelo Instituto Karolinska, na Suécia, deu-se nesta segunda-feira, 5 de outubro, abrindo a temporada de premiações nas categorias científicas deste ano.
Os norte-americanos Harvey J. Alter, de 85 anos, dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, Charles M. Rice, de 68 anos, da Universidade Rockefeller, em Nova York, e o britânico Michael Houghton, de 70 anos, da Universidade de Alberta, no Canadá, dividirão o prêmio de 10 milhões de coroas suecas — o equivalente a US$ 1,1 milhão.
O trio receberia a honraria em cerimônia formal em Estocolmo, capital sueca, no dia 10 de dezembro, data da morte do químico Alfred Nobel (1833-1896), criador da premiação. Cancelado por conta da pandemia, o evento presencial será substituído por cerimônia televisionada com os laureados recebendo os prêmios em seus países de origem.
Este ano havia certa expectativa de que a academia sueca pudesse agraciar pesquisadores atuando em estudos sobre o Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19. Ocorre que, de modo geral, os trabalhos ganhadores levam anos para se consolidarem no meio científico. “Ainda assim, o fato de o prêmio ter reconhecido pesquisadores responsáveis pela elucidação de um agente patológico responsável por uma doença que, assim como a Covid-19, acomete milhares de pessoas no mundo, ajuda a conectá-lo à situação atual”, destacou o virologista Maurício Lacerda Nogueira, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), interior paulista.
O vírus da hepatite C infecta atualmente cerca de 70 milhões de pessoas no mundo, das quais 400 mil morrem por ano por conta de complicações subsequentes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). “O desenvolvimento de câncer de fígado associado à cirrose é a causa primeira de indicação de transplante desse órgão”, destaca o hepatologista Flair José Carrilho, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
Desde os anos 1940 se sabia da existência de dois tipos de hepatite. A primeira, causada pelo vírus da hepatite A, identificado somente em 1973 pelos virologistas norte-americanos Stephen Feinstone, Albert Kapikian e Robert Purcell, dá-se pelo contato com alimentos e água contaminados, mas não gera complicações mais graves. A segunda, a hepatite B, causada por um vírus transmitido por transfusão de sangue e relações sexuais, era mais insidiosa e, por isso, representava uma ameaça mais séria. Os indivíduos infectados viviam anos sem se darem conta do patógeno até a manifestação dos primeiros sintomas no fígado e outras complicações mais graves.
Nos anos 1960, o biólogo Baruch Blumberg (1925-2011) identificou o vírus responsável pela hepatite B. A descoberta abriu caminho para o desenvolvimento de testes sorológicos e uma vacina eficaz, o que rendeu ao pesquisador o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1976.
Mais ou menos na mesma época, Harvey Alter estudava casos de hepatite adquiridos por transfusão sanguínea nos Estados Unidos. Ele e sua equipe constataram que nem o vírus da hepatite A nem o da B apareciam nos testes sanguíneos da doença misteriosa, que passou a ser chamada de hepatite não A, não B. Entre 1972 e 1978, Alter publicou vários artigos, nos quais determinou que o sangue de pacientes com esse tipo de hepatite poderia transmitir a doença para chimpanzés — únicos hospedeiros suscetíveis conhecidos além dos humanos.
Os estudos empreendidos por Alter e sua equipe levaram cientistas no mundo a buscarem o agente responsável pela moléstia desconhecida. “Sabíamos que existia uma terceira forma de hepatite, mas ninguém conseguia encontrar o vírus responsável por ela”, lembra Carrilho. “Várias técnicas tradicionais apresentaram-se como candidatas para identificar o vírus. Nenhuma, contudo, teve sucesso”, explica Nogueira.
Vários anos se passaram até que a equipe de Houghton, à época atuando na empresa farmacêutica Chiron, na Califórnia, pudesse usar novas estratégias moleculares que despontavam para investigar o vírus desconhecido. Em fins dos anos de 1980, ele e seus colegas criaram uma coleção de fragmentos de DNA de ácidos nucleicos a partir de amostras de sangue de chimpanzés infectados com a doença desconhecida, teorizando que alguns deles viriam do vírus desconhecido. Em seguida, usaram o soro de pacientes infectados — com base na hipótese de que ele carregaria anticorpos contra o vírus — para identificar fragmentos de DNA clonado que codificava proteínas virais. Identificaram um clone positivo, que passou a ser chamado de vírus da hepatite C. Publicaram a descoberta em 1989.
Apesar dos avanços, ainda não se sabia se o vírus, sozinho, era capaz de causar hepatite C. Para responder a essa pergunta, era preciso analisar se o vírus clonado conseguia se replicar e desencadear a doença. À época na Universidade Washington em Saint Louis, Rice, em colaboração com outros grupos, identificou uma região não caracterizada no final do genoma do vírus da hepatite C que o pesquisador suspeitava ser importante para sua replicação. Ele também observou que o patógeno era altamente variado, teorizando que algumas dessas variações poderiam impedir sua replicação.
Com base em técnicas de engenharia genética, Rice gerou uma variante com alto poder de infecção, que incluía a região recém-descoberta do genoma viral sem as variações genéticas de inativação, e a injetou no fígado de chimpanzés. Em meados da década de 1990, ele e sua equipe encontraram o vírus no sangue dos animais e observaram uma deterioração do órgão semelhante à dos casos inexplicados relacionados à transfusão relatados anos antes pela equipe de Alter. Divulgaram o achado em 1997.
As contribuições desses três cientistas, assim como de suas equipes e parceiros, levaram ao desenvolvimento de testes de sangue com grande sensibilidade para o vírus e praticamente eliminaram a possibilidade de transmissão do patógeno por transfusão sanguínea. “Todos esses achados propiciaram a geração de enorme carga de conhecimento, resultando na elucidação dos mecanismos de replicação dos vírus das hepatites C. Estabeleceram-se, assim, as bases do desenvolvimento de drogas antivirais de ação direta em diversos sítios essenciais dos vírus”, afirma o médico patologista Venancio Avancini Alves, da FM-USP. O tratamento da hepatite C hoje envolve uma combinação de medicamentos antivirais, administrados ao longo de várias semanas com o objetivo de eliminar o vírus do organismo do paciente.
“É um privilégio ter vivido tempo suficiente para poder testemunhar todo o processo de elucidação de uma doença, da descoberta de seu agente patológico à elaboração de estratégias de tratamento”, comenta Carrilho. O médico esclarece que hoje, graças aos trabalhos de Alter, Rice e Houghton, a taxa de cura da doença é de 95%. “O principal desafio é o diagnóstico”, ele diz. “A hepatite C costuma ser descoberta em sua fase crônica. Como os sintomas são escassos e inespecíficos, a doença pode evoluir durante décadas sem suspeição clínica.” Normalmente, o diagnóstico ocorre após teste sorológico de rotina ou quando o doador de sangue é testado.
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