Vitrais coloridos há séculos adornam palácios e igrejas, produzidos por artesãos altamente especializados que acrescentavam materiais como ouro, prata, cádmio, enxofre e selênio em busca das tonalidades perfeitas. Em sua transparência, eles ocultavam fenômenos quânticos produzidos por elementos minúsculos, na escala nanométrica: partículas de um mesmo tipo podem emitir uma fluorescência de cor diferente conforme o seu tamanho. A “descoberta e síntese dos pontos quânticos” rendeu o Nobel de Química a um trio radicado nos Estados Unidos: o físico russo Alexei Ekimov, da empresa Nanocrystals Technology, o químico norte-americano Louis Brus, da Universidade Columbia, e o químico franco-tunisiano Moungi Bawendi, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Eles dividirão em partes iguais o prêmio de 11 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 5 milhões), a ser concedido em cerimônia de gala em dezembro, em Estocolmo, Suécia.
Assim como a física do tempo ínfimo, celebrada no prêmio anunciado ontem (3/10), abre possibilidades eletroeletrônicas e uma variedade de aplicações, a ciência da compressão de nanopartículas pode ser aplicada em sensores ambientais e biomédicos. Essas propriedades já fazem parte da vida cotidiana por estarem em telas de televisão com cores especialmente vívidas e alta resolução, além de iluminação com LED com alto brilho e baixo consumo de energia.
Nos anos 1980, Ekimov identificou que a coloração de vidros se devia a pontos quânticos semicondutores de diferentes tamanhos, e Brus percebeu algo semelhante em partículas suspensas em líquido, cujas propriedades catalíticas ele estudava. “Tratava-se de conhecimento fundamental, entender a evolução do tamanho de partículas”, explicou o norte-americano em entrevista a Adam Smith, do site do Nobel. Bawendi, o terceiro ganhador, rendeu homenagem a Brus: “Ele é um gigante na área e me moldou como cientista”. O químico do MIT fundou seu grupo de pesquisa em seguida a um estágio de pós-doutorado com Brus. “Tentei copiar seu estilo com meus próprios estudantes.” Nos anos 1990, Bawendi descobriu como sintetizar pontos quânticos com alta precisão.
Moléculas diferentes podem produzir efeitos distintos conforme sua composição. Com os pontos quânticos é diferente: partículas com a mesma composição e configuração emitem fluorescência de cor diferente em consequência de variação apenas no seu tamanho. Com elétrons cada vez mais restritos a um espaço menor, o chamado confinamento quântico, as nanopartículas emitem luz vermelha quando são maiores, e azul quando menores.
“A luz azul é mais difícil de obter, tanto que já houve um Nobel concedido à produção de LED dessa cor”, lembra o físico Éder Guidelli, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se ao Prêmio de Física de 2014 dado aos pesquisadores japoneses Isamu Akasaki (1929-2021), Hiroshi Amano e Shuji Nakamura. Em 2017, o brasileiro passou um ano no MIT no laboratório do engenheiro químico dinamarquês Klavs Jensen, trabalhando em parceria com o grupo de Bawendi. Guidelli notou uma atmosfera intensa, um tanto competitiva, nesse laboratório que já tinha feito o trabalho que levaria ao Nobel. “Os alunos tinham muita garra, uma vontade de produzir mais e melhores resultados”, conta. O extremamente ocupado chefe do laboratório mostrava abertura e participava das reuniões do grupo. O resultado desse ano de trabalho foi a produção de nanopartículas de seleneto de zinco que emitem, justamente, luz azul.
Ao voltar para fundar seu laboratório na USP, Guidelli trouxe na bagagem a determinação – que repassa aos estudantes – de fazer sempre melhor do que foi feito anteriormente. Não continuou o trabalho com a partícula que desenvolveu por não ter os equipamentos necessários, mas mantém o foco no uso de nanopartículas na detecção de radiação para o desenvolvimento de terapias contra o câncer, com financiamento FAPESP. “Podemos ligar nanopartículas cintiladoras a drogas fotoativas, de maneira que uma dose menor de radiação seja suficiente para criar uma reação aumentada dentro do tecido tumoral”, explica. A limitação do uso de pontos quânticos é que sua composição costuma incluir metais pesados, tóxicos ao organismo. “Todos os grupos que trabalham com pontos quânticos estão em busca de nanopartículas sem esses materiais nocivos”, conta. A que resultou de seu trabalho nos Estados Unidos é um exemplo desse tipo de substância, mas ele não sabe se ela continua a ser pesquisada. “O trabalho feito no laboratório do MIT é muito sigiloso.”
A química peruana Maria del Pilar Sotomayor, do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), também tem interesse no uso para diagnóstico oncológico usando as propriedades dos pontos quânticos. “Buscamos, com apoio da FAPESP, produzir nanopartículas modificadas com materiais inteligentes que funcionem como detectores de biomarcadores tumorais para câncer de próstata”, descreve. Em amostras de urina ou sangue, seria possível detectar quantidades muito pequenas dessas moléculas indicadoras da doença. “Revestimos o ponto quântico com uma substância seletiva ao biomarcador e medimos a variação da fluorescência com um equipamento chamado fluorímetro.”
O mesmo princípio vale para a detecção de poluentes e drogas no ambiente e em alimentos, outro foco do trabalho da pesquisadora. “Os pontos quânticos permitem desenvolver análises rápidas usando dispositivos de baixo custo”, celebra. Visando a preservação ambiental, ela ressalta a importância do uso de materiais menos poluentes, como o grafeno.
“Esse campo de pesquisa continua a render, eu não tinha ideia de que seria assim”, avaliou Bawendi em entrevista ao site do Nobel. “A descoberta dos pontos quânticos foi revolucionária”, define o físico Marcos Pimenta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que frequentou o laboratório do franco-tunisiano nos anos 1990, durante um estágio de pós-doutorado no MIT. “O laboratório da física Mildred Dresselhaus, onde eu estava, não tinha um aparelho de laser importante necessário ao meu trabalho, então usava o do grupo do Bawendi”, conta. Mais recentemente, em 2015, ele trabalhou com Brus durante um ano sabático. “Ele já tinha mudado de tema e estava trabalhando com perovskitas orgânicas, um material com uma eficiência fotovoltaica grande”, explica. Da experiência na Universidade Columbia, trouxe a objetividade. “Em reuniões de laboratório, Brus não permitia muito falatório; quando algum estudante começava a entrar em detalhes, ele, que entendia tudo muito rápido, logo atalhava dizendo: ‘Siga em frente’.” Ao mesmo tempo que era sério e pouco tolerante ao que via como perda de tempo, o norte-americano também se mostrava simples – ia e voltava de trem da casa para o trabalho – e generoso, ao valorizar as pessoas. “Normalmente o chefe do laboratório assina as publicações com o nome em último, mas, em um artigo no qual tive uma contribuição importante, ele determinou que eu ocupasse esse lugar”, relata.
A pesquisa com pontos quânticos promete entregar uma série de aplicações além dos sensores biomédicos e ambientais. Células solares para a produção de energia e computação estão na lista.
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