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EVOLUÇÃO

Nos genes, marcas do comportamento

Seleção genética ajuda a entender adaptações ambientais de jaguatiricas, lobos-guará e espécies aparentadas

Apesar de subirem em árvores, as jaguatiricas se sentem mais à vontade no chão

Felipe B. Peters

O biólogo Eduardo Eizirik e seus colaboradores encontraram algo que evolucionistas raramente veem: traços genéticos de comportamentos que podem contribuir para a trajetória evolutiva de espécies. Um exemplo é o gato-maracajá (Leopardus wiedii), de olhos grandes, que costuma caçar animais pequenos que fogem pelos galhos das árvores. Sua aguçada visão noturna pode estar relacionada a mutações no gene POU4F2, que afeta o desenvolvimento e a função da retina, segundo estudo publicado em maio na revista Molecular Biology and Evolution. Os animais que não tinham essas mutações provavelmente não eram tão eficientes na caça noturna e desapareceram.

“A descoberta ajuda a entender como o gato-maracajá divergiu de sua espécie-irmã, a jaguatirica [Leopardus pardalis], a partir de um ancestral comum”, explica Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pesquisador do Instituto Pró-Carnívoros. Essas espécies coexistem em florestas da América Central e do Sul, mas têm hábitos distintos: a jaguatirica, um felino robusto de 1,3 metro de comprimento – o dobro do gato-maracajá – prefere o chão e, ao final da tarde, vai atrás de qualquer presa de até 2 quilogramas.

Entrevista: Eduardo Eizirik
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“Essa dieta generalista da jaguatirica permitiu que a espécie se multiplicasse rapidamente no último período interglacial, entre cerca de 139 mil e 116 mil anos atrás, quando as florestas se expandiram”, explica o biólogo Jorge Luis Ramirez Malaver, da Universidade Nacional Maior de San Marcos, em Lima, no Peru, primeiro autor do artigo realizado em parceria com o grupo de Eizirik e elaborado durante estágio de pós-doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) sob a supervisão do geneticista Pedro Galetti, outro coautor do trabalho. Nesse período, a população de jaguatiricas chegou a estimados 300 mil indivíduos, enquanto a do gato-maracajá não passou de 30 mil. Segundo o pesquisador, a abundância do grande gato no passado garantiu uma diversidade genética cerca de duas vezes maior do que a da espécie-irmã menor.

Quanto maior uma população de uma mesma espécie animal, maior a probabilidade de surgirem alterações genéticas, as chamadas mutações, que aumentem a diversidade. “E, quanto maior a diversidade genética, maior a capacidade de adaptação a mudanças no ambiente”, salienta Malaver. A jaguatirica tem, por isso, melhores perspectivas que o gato-maracajá, que poderá enfrentar problemas caso o ambiente ou o clima mudem.

Rogerio CunhaAs pernas longas do lobo-guará lhe permitem caminhar com facilidade nos campos do CerradoRogerio Cunha

Tão próximas, tão diferentes
Outro estudo, coordenado por Eizirik com colegas dos Estados Unidos e publicado na revista PNAS em agosto, fez uma análise semelhante em duas espécies-irmãs de canídeos silvestres sul-americanos: o lobo-guará e o cachorro-vinagre. Os pesquisadores descobriram no lobo-guará mutações em vários genes, em particular o chamado ADH4, que provavelmente lhe permite digerir frutos típicos do Cerrado, como os da lobeira (Solanum lycocarpum) e da gabiroba (Campomanesia spp.). Já no cachorro-vinagre chama a atenção uma mutação no gene MSX1, envolvido no desenvolvimento de dentes capazes de dilacerar carne e das extremidades, no caso desse canídeo caracterizadas por patas com membranas entre os dedos, o que facilita a escavação de tocas e a captura de presas como tatus.

Variações em uma série de genes, entre eles o B4GALT7, parecem ser responsáveis pelas pernas longas do lobo-guará, uma configuração útil para caminhar pelos campos de capins altos do Cerrado. Mutações nesse mesmo gene, entre outros associados ao comprimento dos membros, foram identificadas no cachorro-vinagre e podem estar na origem de suas pernas curtas.

“Esses animais são tão diferentes que inicialmente nem eram considerados aparentados”, conta o biólogo brasileiro Fabio Machado, da Universidade Virginia Tech, nos Estados Unidos, que não participou dos estudos. Segundo ele, as descobertas ajudam a entender como espécies tão aparentadas tomaram caminhos evolutivos divergentes a ponto de se tornarem tão distintas.

Felipe B. PetersCom seus olhos grandes, o gato-maracajá tem excelente visão noturnaFelipe B. Peters

Ocupação da América
O estudo do genoma também permitiu reconstituir a árvore genealógica das espécies e sua história evolutiva. Os ancestrais dos felídeos silvestres sul-americanos migraram da América do Norte para a América do Sul há cerca de 4 milhões de anos e se diversificaram rapidamente, dando origem a oito espécies pequenas e com padrões de pelagem semelhantes ao da jaguatirica ‒ membros do gênero Leopardus, os gatos-do-mato.

Há 3,7 milhões de anos, uma espécie parecida com uma raposa seguiu a mesma trilha e deu origem às 10 espécies atuais de canídeos sul-americanos. “Quando chegaram aqui, os primeiros canídeos colonizaram todos os biomas a leste dos Andes, como a Amazônia e o Cerrado, e se irradiaram em sete espécies”, relata Eizirik. Há 1 milhão de anos, as populações que viviam na Argentina atravessaram a Patagônia, contornaram a região mais baixa dessa cordilheira e ocuparam o lado oeste dos Andes chegando ao Peru, onde se diversificaram em três espécies, todas elas com feições de raposa.

“Esses trabalhos corroboram a ideia de que os gatos selvagens e os canídeos sul-americanos surgiram na própria América do Sul, a partir de ancestrais vindos da América do Norte”, avalia Machado. Ele ressalta que o registro fóssil desses grupos, embora escasso, corrobora os dados moleculares do estudo. O contrário também é verdade: dados moleculares ajudam a entender os achados paleontológicos ao indicarem a origem geográfica de espécies, as relações de parentesco entre elas e como elas mudaram ao longo do tempo.

Artigos científicos
CHAVEZ, D. E. et al. Comparative genomics uncovers the evolutionary history, demography, and molecular adaptations of South American canids. PNAS. v. 119, n. 34. 15 ago. 2022.
RAMIREZ, J. L. et al. Genomic signatures of divergent ecological strategies in a recent radiation of Neotropical wild cats. Molecular Biology and Evolution. v. 39, n. 6. jun. 2022.

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