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Ficção

Nós quem, cara pálida?

MIGUEL BOYAYANEles são muitos. Eles estão em toda parte. Eles têm negócios espalhados pelo país, carregam pastas de couro, viajam de avião. Eles têm milhas promocionais e sazonalmente fazem falir empresas sólidas. Eles transformam a falência de empresas sólidas em um negócio rentável. Eles são altamente rentáveis. Eles se fecham em salas de aula e inventam línguas que só eles entendem. Eles escrevem para si mesmos e torcem o nariz para jornais, revistas e publicações mensais. Eles não acreditam no que se vende nas bancas, porque são desconfiados e bem-informados. Ninguém sabe muito bem de onde vem a boa informação deles, que, de qualquer modo, é balizada nas pesquisas mais recentes. Eles freqüentam livrarias e fazem um grande espalhafato disso. Eles falam alto nas bibliotecas, são levemente míopes e usam óculos de aros grossos.

Eles dão nomes complicadíssimos para as coisas mais simples (eles recorrem muito ao inglês, depois que superaram o latim e o francês). Mas não vivem só de complexidades: eles simplificam conceitos intrincados e não perdem muito tempo com temas (antes) grandiosos: Deus, o tempo, suas crias, seus medos. Eles julgam o belo e o feio sem jamais ter experimentado a beleza. Eles acham que a feiúra é um bairro distante.

Eles rezam escondido e cultuam suvenires. Eles acreditam piamente na nanotecnologia e mantêm uma crença cega no colesterol, nos transgênicos e na engenharia genética. Eles não assumem, mas têm uma lista de ídolos que gostariam de ver clonados. Eles financiam viagens espaciais e falam confortavelmente sobre coisas que não entendem. Eles costumam achar que o que fazem (seja lá o que for) também é um tipo de ciência, e assim justificam suas bolsas de estudo, suas viagens, suas pequenas bibliotecas e suas vidas intelectuais.

Eles se alimentam de comida indiana, mas têm um pouco de nojo da Índia. Eles têm pena das vacas, mas devoram sanduíches gordos e misturam proteína e carboidrato no self service da esquina pra otimizar o tempo. Eles otimizam o tempo.

Eles têm bom gosto e torcem o nariz para o mau gosto. Eles gostam muito de falar “mau gosto”. De tempos em tempos, eles mergulham no popular e enquadram uma batucada, um acarajé, um golpe de capoeira no seu repertório. Eles têm um olhar estrangeiro para o próprio sangue e se divertem bastante imitando o samba furioso que os outros levantam contra eles. Eles comem feijoada light.

Eles prezam o conforto, apartamentos de dois ou três dormitórios (quatro vagas na garagem), shopping centers, clubes e academias de ginástica. Mas eles vão à Bolívia carregando mochilas de trinta quilos para expiar seus pecadilhos pequeno-burgueses (para eles, a expressão “pequeno-burgueses” perdeu todo sentido há, pelo menos, trinta anos).

Eles passaram do casamento aberto aos condomínios fechados e hoje prezam a tradição, a família e a propriedade, brandamente. Eles naturalizaram a tradição, a família e a propriedade e não se sentem nem um pouco culpados por isso: eles chamam isso de “curso da história”.

Eles lançam livros profundíssimos e falam bobagens nos coquetéis, inundados de vinho (branco e doce). Eles acham a poesia uma grande bobagem, mas dizem isso como se fosse uma confidência bem-humorada. Eles aproveitam todas as ocasiões para destilar seu veneno franco, elucidado, crítico. Eles nunca, nunca deixam de ser críticos.

Eles são politicamente corretos e coram quando deixam escapar pequenas crueldades. Eles sofrem um pouquinho quando vêem garotos no farol, mas nunca dão trocado. Eles chamam isso de “assistencialismo”. Eles se permitem ligeiras crueldades, mas se perdoam, porque têm, afinal, engajamento e consciência política e costumam fazer pequenos escândalos por isso. Eles tratam todos cortesmente, adoram os garçons submissos (chamam isso de “simpatia”) e pedem sempre mais um chope depois que a conta está paga. Eles são extremamente generosos. E eles quase sempre deixam o troco.

Eles têm a consciência tranqüila, passeiam com seus cães e recolhem suas sujeiras em sacos plásticos recicláveis. Eles não vivem sem produtos recicláveis. Sobretudo, eles acreditam em produtos recicláveis. Eles fazem sua parte para um planeta mais saudável.

Eles dormem e acordam cedo, são regrados, exatos e cumprem os horários na  medida do possível. Às sextas-feiras, eles se permitem a vigília até as três horas da manhã e entopem ruas estreitas com seus carros grandes. Eles se vestem bem, são cheirosos e sorriem muito, com seus dentes brancos, nos jantares e bares e boates. Eles dançam de maneira contida, ouvem música inglesa e bebem líquidos coloridos. Eles nunca perdem a pose.

Eles têm medo do câncer, da violência urbana, do tráfico de drogas, de acidentes de carro e de assalto a mão armada. Por outro lado, são absolutamente destemidos quanto a doenças sexualmente transmissíveis, revolução armada, autocrítica e animais selvagens. Eles vivem em locais seguros e são limpinhos.

Eles vão ao analista de uma a duas vezes por semana, resolveram seus problemas com os pais e hoje se sentem psiquicamente saudáveis. Acreditam na medicina alopática e recorrem a calmantes para um sono tranqüilo. Eles nunca se viciam.

Eles se sentem bem nos seus condomínios fechados, constroem torres de vigilância e contratam, a  preços módicos, pretensos futuros inimigos, mantendo-os sob controle. Eles se sentem muito bem quando mantêm o controle. Passeiam pelos centros urbanos com desenvoltura, porque confiam, não na polícia (que eles acham corrupta), mas em si mesmos: eles são fortes, sinceros, e têm o cabelo cortado rente.

Eles alugam casas de veraneio, descobrem praias paradisíacas (que o deixarão de ser assim que outros deles também as descobrirem), tiram fotos coloridas e batem palmas para o pôr-do-sol. Eles não deixam lixo na areia e levantam casas integradas à natureza. Eles passam dias tranqüilos, apesar de, de vez em quando, sentirem falta de “pegar um cineminha”.

Eles não acreditam em distribuição de renda, reforma agrária e igualdade social. Mas eles não têm nada a ver com isso.

Eles são asseados, puros e coloridos. Suas roupas não esgarçam e trazem sempre os sapatos lustrados. Eles não têm vergonha de parecer ridículos: eles têm bastante orgulho em ter personalidade.

Eles têm bons empregos e uma carreira promissora, imprimem um toque de arte em tudo que fazem e se realizam pessoal e financeiramente. Eles são levemente ambiciosos, mas nunca deixam que o sucesso lhes suba à cabeça. Eles são modestos e pregam certa honestidade, com alguma moderação. Eles são espertos e têm jogo de cintura.

Eles fazem sexo seguro, eles não aceitam empecilhos morais, eles respeitam as opções alheias, eles se beijam em portas de banheiro. Quando acasalam, formam pares aceitáveis e procriam seres de nomes simples e sonoros. É assim que ocupam o mundo.

Eles estão em toda parte.Eles são muitos.

Eles são broncos, eles que se entendam.

                                                                   

Flora Fajardo é formada pela Faculdade de Letras pela USP, tem 32 anos, e hoje é professora primária.

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