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Literatura

Nova edição dos diários e pesquisas revigoram figura de Lúcio Cardoso

Dono de personalidade contraditória, escritor também se dedicou ao cinema e ao teatro

Autor não identificado / Arquivo Otto Lara Resende / Acervo Instituto Moreira Salles O escritor mineiro Lúcio Cardoso na década de 1940, no Rio de Janeiro, cidade em que viveu por 45 anosAutor não identificado / Arquivo Otto Lara Resende / Acervo Instituto Moreira Salles

“Meu movimento de luta, aquilo que busco destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais.” Era 25 de novembro de 1960 quando, nas páginas do Jornal do Brasil, o escritor Lúcio Cardoso (1912-1968) vociferava contra seu estado natal, em depoimento concedido ao jornalista e crítico literário Fausto Cunha a respeito do Diário I (Editora Elos), que acabava de lançar.

Àquela altura, Cardoso era já o autor de Crônica da casa assassinada (Livraria José Olympio Editora, 1959), romance que atraiu grande atenção da crítica na época do lançamento. A história narra a derrocada da tradicional família Meneses em Vila Velha, localidade inventada da Zona da Mata mineira. Possivelmente motivado pelo sucesso do livro no meio literário, Cardoso animou-se em fazer algo que havia muito sonhava: reuniu os escritos íntimos datados de 1949 a 1951 em Diário I, anunciando que consistiam apenas no primeiro volume de uma série de cinco. O projeto, entretanto, nunca foi concluído. Cardoso teve um acidente vascular cerebral (AVC), em 7 de dezembro de 1962, que paralisou seu lado direito e atingiu gravemente sua fala. Depois disso, desenvolveu uma carreira de pintor, usando a mão esquerda; a escrita se limitou a esboços e fragmentos.

Agora, contudo, chega às livrarias a versão mais próxima do que ele imaginou. Com ares de edição definitiva desde o título, Todos os diários (Companhia das Letras) reúne a maior parte da prosa de não ficção do escritor. A organização é de Ésio Macedo Ribeiro, que desenvolveu na Universidade de São Paulo (USP) pesquisas de mestrado e doutorado sobre a poesia do escritor. A dissertação (2001) foi um dos primeiros estudos acadêmicos a tratar dos versos do autor mineiro. Em 2006, o trabalho saiu em livro, em coedição da Edusp e da Nankin Editorial. Nesse mesmo ano, Ribeiro defendeu sua tese, publicada em 2011 pela Edusp, com o título Poesia completa.

ReproduçãoCapas dos livros O desconhecido (1940) e O enfeitiçado (1954)Reprodução

Pesquisador independente, Ribeiro vem se dedicando ao longo das quatro últimas décadas à obra de Cardoso. Ele já havia feito uma primeira tentativa de cumprir os desígnios do escritor quanto aos diários, em 2012. Naquela ocasião, porém, admite que “ficaram algumas falhas”. Ele aponta, por exemplo, problemas no índice remissivo, nas notas e algumas lacunas decorrentes da dificuldade de localizar certos textos jornalísticos. Para estar pronta para o centenário de nascimento do autor, a publicação encomendada pela editora Civilização Brasileira “foi feita muito às pressas”, diz. O que não impediu que fosse um sucesso, esgotando-se a primeira edição em quatro dias.

Composto de dois volumes, Todos os diários engloba não apenas o “Diário I”, que o escritor publicou em vida, e o “Diário II” – ambos reunidos em Diário completo, lançado postumamente em 1970, pela editora José Olympio. A organização de Ribeiro inclui também escritos pessoais anteriores. Batizados na compilação de “Diário 0”, esses registros de 1942 a 1947 mostram um Cardoso leitor de Dostoiévski (1821-1881) e da Bíblia, da qual analisa e comenta trechos. Integram ainda a obra os textos deDiário não íntimo”, coluna que manteve no jornal A Noite de 30 de agosto de 1956 a 14 de fevereiro de 1957. As lacunas que Ribeiro lamentou deixar em 2012 dizem respeito a essa seção. Naquela ocasião, o pesquisador teve acesso a uma coleção completa da coluna logo após o livro ter sido finalizado. Por fim, a coletânea abarca textos dispersos, que haviam sido publicados em outros periódicos.

Mais do que uma versão ampliada, os dois volumes buscam corrigir uma sucessão de erros e imprecisões que nublaram por décadas os estudos cardosianos. Cássia dos Santos, docente da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), foi quem levantou o alerta. Na pesquisa de mestrado, realizada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela se debruçou sobre a recepção crítica de romances e novelas do escritor mineiro anteriores a Crônica da casa assassinada: de Maleita (Schmidt Editor, 1934), seu livro de estreia, a O enfeitiçado (Livraria José Olympio Editora, 1954). A dissertação foi defendida em 1997 e publicada com o título Polêmica e controvérsia em Lúcio Cardoso (Mercado de Letras, 2001), com apoio da FAPESP.

Ruy Santos / Acervo da Cinemateca Brasileira Cardoso dirigiu o filme A mulher de longe (1949), com a atriz Maria Fernanda no elencoRuy Santos / Acervo da Cinemateca Brasileira

Naquele momento, Santos já se dedicava ao doutorado, concluído em 2005, na Unicamp – no ano passado a tese transformou-se no livro Um punhal contra Minas (Mercado de Letras). Para essa pesquisa, que teve bolsa da FAPESP, visitou a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), depositária do arquivo pessoal do escritor. Lá, encontrou uma pasta com recortes de jornal. Um desses era a entrevista concedida a Fausto Cunha, porém sem a data. Ela recorreu então aos microfilmes da coleção de periódicos da Biblioteca Nacional, também no Rio, e descobriu que a entrevista era de novembro de 1960. Portanto, o Diário I não havia sido publicado em 1961, como todos pensavam até então.

Esse foi o primeiro erro que Santos achou na edição do Diário completo feita pela José Olympio. A pesquisadora percebeu que, pelo fato de ter se baseado nessa versão, havia sido vítima de outras falhas presentes na obra que comprometeram os resultados de sua pesquisa de mestrado. Isso porque, mais que “completo”, aquele diário lançado em 1970 era, em alguns aspectos, ficcional. Santos contou essa história em um artigo publicado na Revista do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2008. No texto, escrutina a edição lançada pela José Olympio, que abrangia os períodos de 1949 a 1951, correspondendo à edição feita por Cardoso, e também de 1952 a 1962.

A lista das impropriedades descritas no artigo de 2008 é longa. A pesquisadora mostra, por exemplo, que todas as anotações de 1952 a 1955 tiveram suas datas alteradas no livro publicado pela José Olympio, bem como algumas dos anos de 1956 a 1958 e de 1960. Além disso, anotações que já haviam estado na edição feita em vida por Cardoso ressurgem em anos posteriores. Erros que Santos encontrou em um datiloscrito de 145 páginas guardado na FCRB estão refletidos na edição feita em 1970 pela José Olympio. Esse conjunto seria, “aparentemente, a primeira reunião dos fragmentos que iriam dar origem ao texto do Diário completo”, escreve a pesquisadora no artigo.

A confusão prejudicou o entendimento de aspectos importantes do processo de composição da obra do escritor, na avaliação de Santos. Por causa do vaivém de datas, até seu cotejo depreendia-se que Cardoso havia alternado a escrita da novela O viajante, que ficou incompleta, com a de Crônica da casa assassinada. Além da miscelânea temporal que estabelece, o datiloscrito que originou o Diário completo é coalhado de anotações e rasuras variadas. Entre as mudanças introduzidas nesse documento, está a omissão de nomes, como o de Graciliano Ramos (1865-1953), a quem Cardoso faz “duras críticas”, conta Ribeiro. De acordo com as pesquisas realizadas por ele para a edição atual dos diários, essas interferências teriam sido feitas pela escritora Maria Helena Cardoso (1903-1977), possivelmente preocupada em não ferir suscetibilidades com notas pouco lisonjeiras redigidas pelo irmão. Em relação ao autor de Memórias do cárcere, livro que o exasperou, Lúcio Cardoso anotou em 7 de junho de 1958: “A modéstia do autor é falsa e o que ele viu e aprendeu durante o período de sua prisão, restrito e superficial”.

Acervo da Cinemateca BrasileiraCena de Porto das caixas (1962), filme dirigido por Paulo Cezar Saraceni a partir de argumento de CardosoAcervo da Cinemateca Brasileira

Nos diários sobressai a personalidade contraditória do escritor. Conservador em política, Cardoso era liberal nos costumes. Homossexual, vivia um embate com sua fé católica. Embora tenha abandonado a Igreja, não podia deixar de crer em Deus, como atesta em vários momentos nos relatos pessoais. “O grande drama existencial de Lúcio reside no choque entre a sexualidade e o universo de formação católica de Curvelo, cidade onde nasceu no interior de Minas, que o persegue até o final da vida, inclusive e principalmente nos diários”, diz Leandro Garcia Rodrigues, professor de teoria da literatura e literatura comparada da UFMG.

Organizador de Lúcio Cardoso, 50 anos depois (Relicário, 2020), resultado de colóquio realizado em 2018, na UFMG, Rodrigues trata em um dos artigos da compilação da breve e pouco conhecida troca de missivas entre Cardoso e Mário de Andrade (1893-1945). A relação com o intelectual paulista é objeto de um segundo texto de Rodrigues, presente na coletânea. Em “Mário de Andrade leitor de Lúcio Cardoso”, ele traz as anotações do crítico sobre as oito obras do escritor mineiro que reunia em sua biblioteca. É o caso de O desconhecido (Livraria José Olympio Editora, 1940), livro “cheio de lugares comuns”, na opinião de Andrade. A respeito de “Rosa vermelha”, de Poesias, lançado em 1941, pela mesma editora, registrou: “Um dos mais perfeitos e belos poemas brasileiros”. Em conjunto, os dois trabalhos ajudam a iluminar a recepção dos escritos de Cardoso pelo modernista.

Ferdy Carneiro / Acervo da Cinemateca Brasileira Cartaz do filme A casa assassinada (1971), de Saraceni: adaptação do romance mais conhecido de CardosoFerdy Carneiro / Acervo da Cinemateca Brasileira

Em tese de doutorado defendida em 2022, na Escola de Comunicações e Artes da USP, a editora Lívia Azevedo Lima analisa os longas-metragens que o diretor de cinema Paulo Cezar Saraceni (1932-2012) fez a partir de três histórias de Cardoso: Porto das caixas (1962), com argumento do escritor mineiro, A casa assassinada (1971) e O viajante (1998), a partir do romance homônimo inacabado e póstumo, publicado em 1973. “Infelizmente, a parceria iniciada em Porto das caixas foi interrompida pelo derrame de Lúcio, mas isso não impediu que Saraceni continuasse os projetos”, diz Lima.

Além disso, a pesquisadora trata das incursões cinematográficas do escritor, como cronista de cinema, roteirista e cineasta. Em 1949, ele filmou A mulher de longe. Por muito tempo esse filme inacabado foi considerado desaparecido, até o cineasta Luiz Carlos Lacerda, filho do produtor de Cardoso, João Tinoco de Freitas (1908-1999), localizar um copião na Cinemateca Brasileira. Em 2012, realizou um documentário homônimo sobre o projeto. A interrupção das filmagens de A mulher de longe se deveu à falta de orçamento e de experiência, além do temperamento impaciente, como Cardoso justificaria nos diários: “O cinema é, de todas as artes, a mais trabalhosa. […] Um filme é um mundo que se recria […]. Ao contrário do romance, não são leis e códigos de ordem subjetiva […] e sim imperativos da ordem imediata, princípios de uma realidade tangível, objetiva, agressiva como uma rocha cheia de arestas”.

Cardoso também foi dramaturgo e diretor teatral. Dentre outras peças, escreveu O filho pródigo (1943) para o Teatro Experimental do Negro (TEN), de Abdias do Nascimento (1914-2011). Essas experiências de cinema e de teatro, bem como sua poesia, pouco difundida, mereceriam ser tema de novos estudos acadêmicos, na opinião de Ribeiro. Até hoje, diz, grande parte das pesquisas gira em torno de Crônica da casa assassinada. Para Lima, o romance continuará a ser manancial de novos estudos, sobretudo a partir de questões de gênero e sexualidade. “O personagem Timóteo, por exemplo, ao mesmo tempo compartilha de valores conservadores da oligarquia rural à qual pertence e se veste com as roupas e joias de sua falecida mãe”, cita a pesquisadora.

O escritor não anteviu o sucesso duradouro do romance, que foi lançado em países como França, Estados Unidos e Holanda. Uma anotação de 1959 em seu diário mostra que ele se via assaltado por “uma grande melancolia”. Estava convencido de que, como outros, o romance tombaria “no silêncio e no desinteresse”. O silêncio não se abateria sobre sua obra, mas sobre ele. O escritor caiu doente menos de dois meses após a última nota de seu diário, em 17 de outubro de 1962, quando registrou: “Quero amar, viajar, esquecer – quero terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada de mais belo e nem de mais terrível do que a vida. E aqui estou: tudo o que amo não me ouve mais, e eu passo com a minha lenda, forte sem o ser, príncipe, mas esfarrapado”.

Projetos
1.
Crônica da casa assassinada: Recepção crítica e análise de um romance de Lúcio Cardoso (nº 98/11282-5); Modalidade Bolsas no Brasil ‒ Doutorado; Pesquisadora responsável Vilma Sant’Anna Areas (Unicamp); Bolsista Cássia dos Santos; Investimento R$ 89.568,37.
2. Trilogia da paixão: Saraceni leitor de Lúcio Cardoso (nº 18/14804-8); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado Direto; Pesquisador responsável Mateus Araujo Silva (USP); Bolsista Livia Azevedo Lima; Investimento R$ 56.699,32.

Artigos científicos
SANTOS, C. dos. Vicissitudes de uma obra: O caso do Diário de Lúcio Cardoso. Revista do Centro de Estudos Portugueses. v. 28, n. 39, 2008.

Dossiê
AMORIM, A. M. et al. Dossiê: 60 anos da Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. Revista Opiniães n. 17, 2020.

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