Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade Stanford, nos Estados Unidos, sintetizaram em laboratório uma molécula capaz de reestabelecer a morfologia e a função mitocondrial do coração de ratos com insuficiência cardíaca, melhorando as contrações do órgão. A molécula SAMβA – acrônimo de Selective Antagonist of Mfn1- βIIPKC Association – abre caminho para o desenvolvimento de fármacos que possam tratar esse tipo de doença.
Doença crônica que pode ter origem em um infarto, mas também na hipertensão, doença de Chagas e outras enfermidades, a insuficiência cardíaca ocorre quando o coração não se contrai com força adequada para bombear sangue suficiente para o corpo. O tratamento deve ser feito por toda a vida e inclui remédios, fisioterapia e boa alimentação. “Ainda assim, como a insuficiência cardíaca é a via final comum de várias doenças que afetam o coração, a maior parte dos pacientes vai a óbito em decorrência dela: em média 50% deles morrem em uma janela de cinco anos”, diz Julio Cesar Batista Ferreira, professor do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, especialista em fisiologia cardiovascular.
Ferreira é o principal autor do artigo que relata a descoberta, publicado hoje (18/1) na Nature Communications. Nele, os pesquisadores mostram o papel decisivo que a interação entre duas proteínas durante um infarto tem no desenvolvimento da insuficiência cardíaca. “Trata-se de uma doença multifatorial e sistêmica, afetando diferentes células do coração e tendo efeitos diversos em outros órgãos, como os pulmões e os rins”, explica a bióloga israelense Daria Mochly-Rosen, do Departamento de Biologia Química e de Sistemas da Escola de Medicina da Universidade Stanford, coautora do trabalho. “A pergunta inicial foi: será que existe um único mecanismo responsável por iniciar todo esse processo? A ideia era conhecer a fundo o suposto mecanismo para, então, desenvolver uma molécula que o desarmasse”, relata.
No coração do coração
O primeiro passo foi investigar os problemas que afetam a célula cardíaca durante o estresse provocado pelo infarto. De acordo com Ferreira, um dos mais importantes é a queda da produção de energia para bombear o sangue. “Primeiro descobrimos por que as mitocôndrias das células do coração, responsáveis pela produção de energia das células, não funcionam bem durante a insuficiência cardíaca: elas se dividem descontroladamente após o infarto. Como resultado, produzem menos energia, prejudicando todos os processos que ocorrem dentro da célula cardíaca.”
A chave está no “desentendimento” entre duas proteínas: a β2PKC, imersa na substância que preenche as células, o citossol; e a mitofusina 1, presente na mitocôndria. Ambas funcionam muito bem quando separadas, mas o estresse provocado pelo infarto faz com que a proteína do citossol migre para a mitocôndria e desligue a proteína que reside nela e é responsável pelo controle da divisão das mitocôndrias. “Nós já sabíamos que a mitocôndria, considerada o coração do coração, tem seu funcionamento prejudicado na insuficiência cardíaca em decorrência da divisão excessiva, mas é a primeira vez que se detalha o mecanismo pelo qual isso ocorre”, explica Ferreira. “A interação entre essas duas proteínas é a chave para iniciar a divisão mitocondrial descontrolada e o consequente enfraquecimento da organela, podendo resultar na morte da célula.”
O mesmo mecanismo foi observado em experimentos com corações de pacientes transplantados. Desvendada a interação entre as proteínas, os pesquisadores sintetizaram a partir delas uma molécula capaz de impedir que a β2PKC faça a fosforilação da mitofusina 1 – ou seja, que adicione fosfato à molécula da mitocôndria e prejudique seu funcionamento.
Os testes foram feitos em ratos com insuficiência cardíaca induzida por meio da obstrução de uma artéria do coração, impedindo a passagem do sangue para o órgão e provocando um infarto. Em um mês, a insuficiência cardíaca resultante da parte avariada do coração foi detectada e, então, os pesquisadores passaram a administrar diariamente a molécula SAMβA, por meio de uma bomba osmótica introduzida debaixo da pele para liberar a substância sistematicamente. Os animais foram tratados por dois meses, o suficiente para não só barrar a progressão da degeneração do coração como melhorar a função cardíaca.
“O tratamento com a SAMβA também diminuiu o diâmetro diastólico final do ventrículo esquerdo em comparação com o grupo controle. A melhora da função cardíaca após o tratamento provavelmente se deveu à melhora da integridade dessas estruturas cardíacas, evidenciada pela microscopia eletrônica. A molécula também evitou o acúmulo de mitocôndrias afetadas pela ação da proteína PKCβ2, observado nos ratos com insuficiência cardíaca do grupo controle”, conta Mochly-Rosen. “Além disso, é muito auspicioso imaginar que ‘samba’ pode aliviar o sofrimento dos corações”, brinca a pesquisadora.
De acordo com Ferreira, a ideia agora é disponibilizar a SAMβA para que outros pesquisadores testem seus efeitos em modelos distintos. E, em seguida, tentar firmar parcerias com a iniciativa privada e o poder público para iniciar o processo de desenvolvimento de um novo fármaco.
Projetos
1. Regulação intermolecular da proteína Dicer pelo aldeído 4-hidroxinonenal: Uma abordagem translacional (nº 17/16694-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Julio Cesar Batista Ferreira (USP); Investimento R$ 189.946,00.
2. Controle de qualidade de proteína na disfunção/atrofia muscular esquelética: papel do receptor β2-adrenérgico (nº 15/20783-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Julio Cesar Batista Ferreira (USP); Investimento R$ 251.423,05.
3. Contribuição da enzima aldeído desidrogenase 2 na progressão da insuficiência cardíaca (nº 12/05765-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Julio Cesar Batista Ferreira (USP); Investimento R$ 1.224.447,01.
Artigo científico
FERREIRA, J. et al. A selective inhibitor of mitofusin 1-βIIPKC association improves heart failure outcome in rats. Nature Communications. 18 jan. 2019.