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Neurociência

Novas rotas cerebrais

Caminhos alternativos permitem o funcionamento neurológico normal de pessoas que nascem sem conexão entre os hemisférios do encéfalo

Vias cerebrais alternativas na Disgenesia do Corpo Caloso. (A) Feixe inter-hemisférico aberrante (amarelo) e córtico-espinhal normal (roxo) reconstruídos por fascigrafia e sobreposto em uma imagem anatômica em uma visão coronal (superior) e sagital em um paciente com Disgenesia do Corpo Caloso. (B) Conectividade inter-hemisferica funcional (setas) preservada em pacientes que nascem sem o corpo caloso. As setas indicam regiões cerebrais conectadas funcionalmente mesmo na ausência do corpo caloso.

TOVAR-MOLL et al. / PNASNo alto, feixe inter-hemisférico alternativo em cérebro sem corpo caloso (amarelo) e córtico-espinhal normal (roxo). Embaixo, conectividade inter-hemisférica funcional (setas) preservada em pacientes que nascem sem o corpo caloso. As setas indicam regiões cerebrais conectadas funcionalmente mesmo na ausência do corpo calosoTOVAR-MOLL et al. / PNAS

Um mistério que há quase meio século persiste sem explicação na neurociência pode ter sido esclarecido agora por um grupo de pesquisadores brasileiros e ingleses. Pessoas que nascem sem um importante feixe de fibras nervosas que conecta os hemisférios cerebrais, conhecido como corpo caloso, em princípio, teriam dificuldade de associar o aprendizado e a memória armazenados em lados opostos do cérebro. Acontece que o cérebro de algumas delas parece preservar essa habilidade. Agora, em um estudo publicado na edição desta segunda-feira, 12, da revista PNAS, os pesquisadores relatam uma possível explicação para esse paradoxo. Eles verificaram que o cérebro de pessoas que nascem sem o corpo caloso parece ser capaz de criar caminhos alternativos, garantindo a comunicação entre os dois hemisférios. No estudo, coordenado pelos médicos Fernanda Tovar-Moll e Roberto Lent, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o grupo afirma ter identificado e descrito morfologicamente esses caminhos, que parecem compensar a ausência dessa estrutura cerebral.

Usando métodos de neuroimagem e testes neuropsicológicos, eles identificaram em pessoas que haviam nascido sem o corpo caloso um conjunto de substância branca — fibras nervosas — formando um feixe compacto que conecta regiões responsáveis pela transferência de informações táteis entre os dois hemisférios. O grupo acredita que esses circuitos cerebrais alternativos, no caso das pessoas que nascem sem o corpo caloso, são gerados pela plasticidade do cérebro, que durante seu desenvolvimento é capaz de desviar o crescimento dos axônios, parte do neurônio responsável pela condução de impulsos elétricos do cérebro a regiões mais distantes, para outros caminhos.

Ainda nos anos 1960, pesquisadores verificaram que a remoção do corpo caloso poderia prejudicar a capacidade de pessoas de perceber e interpretar o mundo. Isso porque esse feixe, com suas 200 milhões de fibras nervosas, é responsável pela transferência de informações táteis complexas entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro. À época, os pesquisadores constataram que a capacidade de transferir informações entre hemisférios é seriamente comprometida em pessoas que têm o corpo caloso retirado cirurgicamente para o tratamento de transtornos mentais, como a esquizofrenia, ou neurológicos, como a epilepsia. A remoção do corpo caloso interrompe a troca de informações entre os dois hemisférios cerebrais, condição conhecida como síndrome de desconexão inter-hemisférica.

Essas pessoas, uma vez vendadas, tornam-se incapazes de dizer o nome de um objeto, dependendo da mão com a qual o seguram. O mesmo já não acontece com quem nasce sem o corpo caloso. Até agora, não se sabia ao certo por quê. Agora, os resultados obtidos pelo grupo de Tovar-Moll e Lent não só esclarecem esse antigo paradoxo como também sugerem que mesmo as longas ligações formadas no cérebro durante seu desenvolvimento podem ser modificadas, provavelmente por fatores ambientais ou genéticos, abrindo caminho para uma melhor compreensão de uma série de doenças humanas resultantes de conexões neuronais anormais formadas durante o desenvolvimento embrionário.

Artigo científico
TOVAR-MOLL, FERNANDA. et al. Structural and functional brain rewiring clarifies preserved inter-hemispheric transfer in humans born without the corpus callosum. PNAS. abr. 2014.

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