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Resenha

A numerosa galeria dos vencidos*

Martinha versus Lucrécia – Ensaios e entrevistas | Roberto Schwarz | Companhia das Letras, 320 páginas, R$ 47 ,00

Resenhas_SchwarzEduardo CesarMartinha versus Lucrécia – ensaios e entrevistas produziu uma intensa e barulhenta polêmica quando foi lançado em 2012. Tudo culpa de uma das grandes peças de resistência do livro, um ensaio de 52 páginas, “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. No texto de 2011, com olhar extremamente aguçado e ferramentas críticas que maneja com mestria incomparável, Roberto Schwarz embrenha-se pelas páginas do que chama a “autobiografia quase-romance” de Caetano Veloso, publicada em 1997, para nelas explorar os marcos estéticos de uma narrativa cheia de vigor literário, os pilares do tropicalismo, movimento que chacoalhou a música brasileira no encontro dos anos 1960/1970, e, em especial, os meandros de um percurso individual – artístico/ político – assombrado por incongruências, recuos e inflexões conservadoras, por vezes recobertos e apresentados como rupturas estético-políticas.

O trajeto pela intimidade da obra literária do compositor baiano, nela iluminando dobras que permaneciam protegidas pelas sombras, permite a Schwarz ir, ao mesmo tempo, abrindo passo a passo janelas que remetem com grande força e engenho o olhar do leitor para um tempo e um ambiente tempestuosos, terríveis, instaurados pelo golpe de 1964 – este, sim, uma ruptura, um corte profundo e definitivo num percurso democrático de modernização vivido por muitos com justificada euforia. “A euforia foi desmanchada em 1964 pelo golpe, um momento estelar da Guerra Fria, quando se uniram contra o ascenso popular e a esquerda, quase sem encontrar resistência, os militares pró-americanos, o capital e o imenso fundo de conservadorismo do país, tudo com ajuda dos próprios americanos”, resume o autor (p. 75), articulando num só lance frustração individual, processo político local e movimento internacional do Capital.

Soa ligeiramente injusto, embora compreensível, o fato de a polêmica em torno de Martinha versus Lucrécia ter se concentrado só no ensaio sobre Verdade tropical. Afinal, não foi apenas em relação a Caetano que Schwarz evidenciou consequências estéticas decorrentes de mudanças de posição política. Por exemplo, em “Um jovem arquiteto se explica” (p. 223), é o respeitado Vilanova Artigas, com sua experiência também de prisão e exílio, quem vai para a berlinda em determinado instante. “Aí está um homem que apostou a fundo no funcionalismo dos arquitetos como metodologia para chegar a uma sociedade justa”, observa o autor. “Quais os resultados? Curiosamente, ou dialeticamente, a primeira vitória que o novo padrão moderno e vanguardista lhe proporcionou teve como vítima os trabalhadores, cuja competência tradicional ficava desqualificada. Na mesma direção, a racionalidade que deveria conduzir à sociedade sem classes assumia como a sua tarefa inicial reeducar – logo quem? – a burguesia, e convertê-la à sobriedade das casas de concreto, sem ornamentação” (p. 224).

Roberto Schwarz comenta em seguida que fora e dentro da arquitetura, com o golpe de 1964, o projeto dos desenvolvimentistas de esquerda aparentemente ficava inviabilizado. Mas o modernismo arquitetônico logo pareceu ter mais chances que antes. Os arquitetos eram bem aceitos, “uma parte do programa da casa popular foi posta em prática, ao mesmo tempo que a industrialização da construção avançava um pouco” (p. 225). “Você nota”, diz Schwarz, dirigindo-se ao jovem arquiteto, “que, abalado pela derrota histórica da esquerda, o arquiteto naquele projeto e naquele momento [Artigas ao projetar a Casa Berquó] admitiu a hipótese de ver todo o seu passado como uma espécie de fantasia (…) A incerteza foi breve e logo ele retomava as coordenadas anteriores, do racionalismo progressista dogmático, para chegar à conclusão final de que tudo é desenvolvimento, desde que haja progresso de alguma espécie que seja”. Conclusão do autor: “no momento da ditadura não deixava de ser uma posição complicada”.

A memória avassaladora da ditadura, quando o golpe de 1964 completa 50 anos, foi a razão de uma espécie de relançamento de Martinha versus Lucrécia durante o seminário “O golpe de 1964 e a cultura brasileira”, realizado na USP de 17 a 19 de setembro. E esse acontecimento, ou seja, o golpe, inflexão de profundidade ainda por compreender na história do país, encaixado na dinâmica mundial do Capital e nos desencontros da experiência de esquerda no século XX, é praticamente onipresente no livro do respeitado crítico e professor de teoria literária, especialista reconhecido na obra de Machado de Assis.

Ele aparece em quase todos os 16 textos que compõem o livro, elaborados entre 2000 e 2011, dos quais nove são, a rigor, ensaios, quatro são originalmente palestras e três, entrevistas. Por meio deles, o autor nos faz transitar da literatura, do cinema e do teatro à filosofia e à arquitetura, entre outros campos, sempre alternando planos, múltiplos planos e contraplanos, num ir e vir cujo efeito mais notável é produzir uma visão rica, multifacetada – dialética, talvez.

Por um instante, detendo-se ainda no ensaio sobre Verdade tropical, é interessante notar como uma cena crucial de Terra em transe, ponto-chave na narrativa de Caetano Veloso, torna-se também um lance decisivo na crítica de Roberto Schwarz ao livro. O escritor destaca as palavras que marcam a primeira reação do compositor ao golpe, no qual este via “a decisão de sustar o processo de superação das horríveis desigualdades sociais brasileiras e, ao mesmo tempo, de manter a dominação norte-americana no hemisfério” (p. 75). Nas palavras de Schwarz, “ficava interrompido um vasto movimento de democratização, que vinha de longe, agora substituído pelo país antissocial, temeroso de mudanças, partidário da repressão, sócio tradicional da opressão e da exploração, que saía da sombra e fora bisonhamente subestimado”. Para ele, “as desigualdades internas e a sujeição externa deixavam de ser resíduos anacrônicos em via de desaparecimento, para se tornarem a forma deliberada, garantida pela ditadura, do presente e do futuro”. Em seguida, ele propõe que “as consequências estéticas tiradas por Caetano, que fizeram dele uma figura incontornável, custaram a aparecer” (p. 76). É então que emerge a cena do filme de Glauber Rocha em que seu protagonista, o poeta e jornalista Paulo Martins, “originário da oligarquia, agora convertido à revolução social e aliado ao Partido Comunista e ao populismo de esquerda”, tapa a boca de um líder sindical que o chamara de doutor, berrando para o público: “Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado!”.

Em Verdade tropical Caetano Veloso dissera que viveu da plateia do cinema esta cena como o núcleo de um grande acontecimento. “Era a própria fé nas forças populares – e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo – o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si.” Era uma “hecatombe” que, ele diz, estava preparado para enfrentar e antever as consequências. “Nada do que veio a se chamar ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem esse momento traumático”, afirma (p. 77-78).

Para Roberto Schwarz, quando Caetano torna suas as palavras de Paulo Martins, o que deseja marcar é o começo de um novo tempo em que “a dívida histórico-social com os de baixo – talvez o motor principal do pensamento crítico brasileiro desde o abolicionismo – deixou de existir”. Caetano, na análise do crítico, “dissociava-se dos recém-derrotados de 64, que nessa acepção eram todos populistas”. E ele vai mais fundo: “A desilusão de Paulo Martins transformara-se em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo” (p. 79).

É irônico, e talvez fruto de deliberada ironia, que esse ensaio contundente da primeira à última linha esteja separado de outra peça de resistência, “Leituras em competição”, que fornece o mote para o título do livro, apenas por uma entrevista concedida pelo autor sobre Adorno. Veja-se: o lugar-cenário da crônica de Machado de Assis, “O punhal de Martinha” (apêndice, p. 307), que alimenta o primeiro ensaio do volume (p. 9) – no qual Schwarz compara explicações nacionais e estrangeiras a respeito da grandeza de Machado de Assis –, é a cidade baiana de Cachoeira, a apenas 28 quilômetros de Santo Amaro, a cidade natal de Caetano. Lucrécia em Roma, sexualmente ultrajada, usou um punhal para matar-se. A Martinha, franzina rapariga cachoeirana que Machado, em sua genial ironia, opõe a Lucrécia, usa o punhal para matar seu agressor. Ela age e define seu destino.

Vale ao menos um breve registro, dada a falta de mais espaço, para informar ao leitor que os ensaios de Martinha versus Lucrécia voltam-se também para trabalhos de Chico Buarque, Francisco Alvim, José Arthur Giannotti, Francisco de Oliveira, Sérgio Ferro e Gilda de Mello e Souza*, de quem, pela beleza e involuntária adequação, tomei uma frase para título desta resenha (ela se referia aos ex-integrantes do mundo da fazenda que transitam em A moratória, de Jorge Andrade (p. 201). E por último, é um prazer registrar que a entrevista nas últimas páginas do livro (p. 280) na qual Roberto Schwarz expõe seu percurso acadêmico, ideias fundamentais e filiações intelectuais, foi originalmente publicada por Pesquisa FAPESP em abril de 2004.

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