ALBERTO TAKAOKA/FOTOREPORTER/AEA ideia partiu do governador Sérgio Cabral Filho, no final de outubro: legalizar o aborto como forma de combater a violência no Rio de Janeiro. “Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”, disse ele em entrevista exclusiva ao site G1. Para fundamentar sua afirmação, Cabral Filho recorreu aos norte-americanos Steven Levitt e Stephen J. Dubner, autores do livro Freakonomics, no qual defendem a tese que liga aborto com a redução da criminalidade nos EUA.
Se a interrupção da vida no útero costuma provocar debates enfurecidos num país de maioria católica como é o Brasil, sugerir que a violência está relacionada à pobreza e pode ser combatida na “origem” deu ainda mais o que falar. Na universidade, então, especialistas da área alertam para que se tenha cuidado ao tomar esse tipo de posição. Mestre pela Faculdade de Educação e advogado, Edison Prado de Andrade avalia que tratar dois graves problemas da sociedade contemporânea dessa forma é uma interpretação reducionista da realidade social e seu efeito mais nefasto é impedir que se compreendam os verdadeiros motivos pelos quais existem nas proporções que se tem observado.
Autor da dissertação Gestão pública municipal e o problema do ato infracional, Andrade afirma que “seguramente” essa abordagem representa uma forma ideológica, no sentido marxista do termo, de explicar a realidade e propor mudanças sociais, pois é um meio de ocultação do real. Assim como acontece com a redução da maioridade penal que, para parte significativa da sociedade brasileira, seria uma forma extremamente eficaz para reduzir drasticamente os índices de criminalidade. O binômio criminalidade-aborto, prossegue ele, também está eivado de conteúdo ideológico e desvia o foco para as análises e mudanças que se fazem necessárias.
Uma vez que a sociedade atual capitalista “é extremamente complexa”, explica ele, não existem respostas fáceis para solucionar seus problemas. “Apenas se nos debruçarmos com vontade para as verdadeiras causas de nossas mazelas e desenvolvermos a coragem e determinação para seu enfrentamento, seremos capazes de fazer com que a criminalidade subsista apenas dentro de seus parâmetros aceitáveis e normais.” Na opinião do pesquisador, dentre os aspectos que devem ter relevância na discussão estão o tráfico de entorpecentes e o desemprego. “E muitos outros que são temas que só podem ser analisados sob uma perspectiva real se compreendermos a crise fundamental existente.”
Para Andrade, o problema do ato infracional e da criminalidade – que se dá não apenas entre os mais pobres, como geralmente se pensa ou afirma, mas também entre os provenientes de classes mais privilegiadas da população – não pode ser reduzido a uma fórmula jurídica pura que o concebe apenas em termos de vontade de praticar o ato contrário ao direito e à lei, e que exclui inteiramente os fatores sociológicos e psicológicos ligados ao problema. “O preconceito existe na medida em que é fruto do desconhecimento, mas, na verdade, há mais do que preconceito.”
ALBERTO TAKAOKA/FOTOREPORTER/AEA criminalização da pobreza, acrescenta ele, é um fenômeno tradicional e reacionário da sociedade brasileira. “Esta vive comprometida com a manutenção das estruturas sociais vigentes e que argumentam em favor das políticas retributivas do tipo lei e ordem fundadas na repressão dos crimes e na aplicação rigorosa das leis penais, e fazem vista grossa para a quase que total ausência de reais políticas redistributivas.”
Aborto e criminalidade devem ser discutidos separadamente para a socióloga e doutora em saúde pública Kátia Cibelle Machado Pirotta, autora de uma tese de doutorado sobre o comportamento reprodutivo e de seu universo simbólico entre jovens universitários da Universidade de São Paulo (USP). “A proposta de legalização do aborto para diminuir a criminalidade não ajuda no debate sobre essas questões”, enfatiza. Do ponto de vista histórico, a descriminalização do aborto, lembra ela, é uma demanda do movimento feminista e de alguns setores da saúde, que vem sendo defendida através de uma extensa agenda de mobilização.
Um dos pilares dessa mobilização, afirma Kátia, é o tratamento do aborto provocado como uma questão de saúde pública. “A interrupção da gravidez não é um fato novo, essa prática sempre existiu nas sociedades em diferentes tempos históricos. Os estudos sobre a magnitude do aborto provocado estimam em mais de 1 milhão o número de abortos por ano, no Brasil. No entanto, realizados clandestinamente, sem nenhum tipo de responsabilização sobre as condições das clínicas ou sobre danos à saúde da mulher.” Assim, as seqüelas do aborto realizado em condições inadequadas incluem infecções, infertilidade e até a morte de milhares de mulheres todos os anos. “São as mais pobres as que mais se sujeitam a essa situação, pois contam com menos recursos para realizar um aborto em melhores condições.”
Discutir a legalização do aborto como forma de diminuir a criminalidade, destaca Kátia, é o mesmo que tratar da esterilização de mulheres para diminuir a pobreza. Esse tipo de discurso, na sua opinião, está sempre presente no imaginário social – a ideia era que se as mulheres pobres tivessem menos filhos a pobreza reduziria. “Ora, a taxa de fecundidade na sociedade brasileira caiu fortemente nas últimas décadas, sendo hoje de dois filhos por mulher. Estamos próximos do nível de reposição da população. Se a pobreza reduziu, é outra história. Dependendo-se do que se considera como pobreza, que afinal é uma construção social e não pode ser definida por critérios fixos e imutáveis.”
ALBERTO TAKAOKA/FOTOREPORTER/AEEm vez de ligar aborto com criminalidade, Kátia sugere que seja dada ênfase à questão dos direitos reprodutivos. Trata-se, observa ela, de um conjunto de direitos e princípios que orientam o tratamento das questões ligadas à vida reprodutiva, formulados na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, em 1994, e na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres: Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz, em Pequim, em 1995. “Essas conferências representam um importante avanço para o tratamento das questões ligadas à reprodução e sexualidade, considerando-se o princípio do Estado laico, a defesa da cidadania e o aprofundamento das relações democráticas.”
Os direitos sexuais e reprodutivos, ressalta a pesquisadora, são uma conquista da humanidade e representam um marco ético nas questões ligadas a gênero, reprodução, aborto, planejamento familiar, entre outros. “O reconhecimento da autonomia da pessoa para tomar decisões sobre as questões relativas à sua vida reprodutiva e sexual é o ponto-chave das Plataformas do Cairo e de Pequim. Essas plataformas foram reconhecidas pela comunidade internacional e o Brasil é um dos países signatários – que se comprometeram a incorporar esses princípios na sua agenda social e política, e no seu ordenamento jurídico.”
A questão da criminalidade envolve variáveis importantes, muitas das quais relacionadas como a ineficácia de ações estatais diversas, na opinião da socióloga e professora Maria Inês Caetano Ferreira, que fez doutorado sobre homicídios na região do bairro de Santo Amaro, São Paulo. “O discurso do governador carioca, infelizmente, contribui para a disseminação do preconceito contra populações residentes em favelas e bairros de população empobrecida. Fato que não procede, pois a maioria dos moradores dessas localidades não é criminosa”, avalia.
Para Maria Inês, é difícil e perigoso estabelecer também uma conexão direta entre desemprego e/ou pobreza com a criminalidade. A pobreza tradicional, diz ela, bastante comum no Brasil rural décadas atrás, por exemplo, não remete a cenários de violência como atualmente se nota em metrópoles como a do Rio de Janeiro e de São Paulo. “Há variáveis que devem ser consideradas nesse tema. Porém, não parece difícil concluir que o combate ao tráfico de armas e drogas, por exemplo, remete diretamente ao fenômeno da violência nos tempos atuais.”
Luiz Paulo Lima/Folha ImagemViolência e criminalidade são temas muito próximos, mas não idênticos, segundo ela. Em sua tese, buscou compreender os motivos das elevadas taxas de homicídio na região da periferia da Zona Sul da capital paulista. Investigou as mortes entre família, amigos, vizinhos. Enfim, os vários tipos de motivos que provocam o homicídio. Concluiu que o o modo precário de inserção material e legal dessa população contribui para as altas taxas de homicídio. “Isso porque a inserção precária resulta em um viver instável e vulnerável, contra o qual a população tem como alternativa a organização de redes de solidariedade ancoradas em uma ordem incapaz de responder aos prejuízos dessa precariedade.”
A pesquisadora ressalta que a interpretação sobre a violência se relaciona com a posição dos grupos na sociedade. Porém, no caso do governador carioca, ele não representa apenas um grupo mas toda a sociedade do estado do Rio de Janeiro. “A sua posição é bastante conservadora, atribuindo ao uso da força como a estratégia mais eficaz no combate ao crime. Uso da força, claro, contra as populações de determinadas regiões. Talvez a defesa dessa posição agrade a uma ampla população. O problema é se o uso da força implicar abuso de poder e desrespeito à lei.”
Como sugestão para reduzir a criminalidade, Maria Inês prefere indicar “o mínimo”, que talvez já contribuiria bastante: o emprego eficaz da força policial, dentro dos limites da lei, no combate ao tráfico e, sobretudo, estabelecer uma relação positiva do Estado com a população. Desse modo, justifica a pesquisadora, busca-se que espaços, como favelas, por exemplo, não se tornem lugares onde grupos que usam da força se tornem “donos”, impondo as suas próprias “leis”, uma ordem hierárquica, desigual e violenta para os moradores em geral. “Para tanto, a oferta de serviços e equipamentos públicos é essencial.”
Autor de uma tese sobre mulheres encarceradas, o sociólogo Hélio Roberto Braunstein teme que a proposta de legalização do aborto feita pelo governador carioca possa desencadear uma política pública aos moldes da eugenia, “em que a lógica subliminar estaria calcada no controle de natalidade das famílias pobres, talvez encaradas como ameaçadoras, criminogênicas, segundo o pensamento positivista, e atualmente em alta no Brasil e no mundo, diga-se de passagem”. Portanto, algo que poderia ser adequado enquanto política de saúde e respeito aos direitos das mulheres na verdade pode revelar e desencadear uma estratégia de dominação sobre as famílias e as mulheres cariocas mais pobres.
Luiz Paulo Lima/Folha ImagemBraunstein observa que existe “claramente” uma confusão nessa proposta de debate, pois a questão da legalização do aborto está ou deveria estar em discussão no âmbito das políticas públicas de saúde e dos direitos das mulheres, e não da segurança pública. Em sua pesquisa, observa ele, não há nenhum dado específico em relação à questão do aborto, porém existe um dado quantitativo relacionado à questão que acredita ser importantíssimo numa análise qualitativa e que indica o número de filhos das 353 mulheres da amostra (então, encarceradas).
O estudo revela que 46,17% das presidiárias ouvidas têm apenas até dois filhos, e que 21,25% não têm filhos. Somente 13,03% das entrevistadas tinham quatro ou mais filhos. Outros dados considerados por ele importantes apontam que 61,48% delas já haviam exercido alguma atividade profissional antes de ir para a prisão, e que 25,21% trabalharam precocemente antes dos 14 anos.
A experiência profissional por mais de 15 anos de atuação em instituições penais para adultos e adolescentes e, principalmente, a pesquisa por ele realizada indicam para Braunstein que as maiores causas da criminalidade no Brasil estão relacionadas às ausências consistentes e permanentes de políticas públicas integradas nas esferas da educação, da saúde, da cultura, do esporte, da justiça, da economia, do trabalho, do bem-estar social e da segurança pública. “Como no caso do governador do Rio, as propostas são pontuais e emergenciais, fragmentadas e inconsistentes.”
O combate à criminalidade, explica ele, deve ser feito em dois níveis. Primeiro, remediativo e emergencial, precisa conter políticas públicas consistentes e permanentes de repressão ao tráfico, ao porte de armas e à corrupção nas mais diferentes esferas. Depois, o de policiamento. Além disso, é preciso uma política adequada de punibilidade com vistas à reintegração social, e não meramente punitiva e reprodutora da violência.
Outro aspecto importante que deve ser priorizado, destaca Braunstein, seria o tratamento de dependentes químicos como parte de uma política pública de saúde além de ações de empregabilidade para a população. Deve-se também, num segundo nível, que ele coloca como principal, buscar algo preventivo, de médio e longo prazo, que se faz com políticas públicas de Estado consistentes, permanentes e integradas. Nesse discurso não cabe falar em aborto.
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