Quando terminou o ginásio na primeira metade dos anos 1940, o paulista Fulvio Pileggi deixou sua terra natal, São Carlos, e foi fazer o antigo curso científico na capital do estado. Estudou no conhecido Colégio São Bento e de lá saiu em 1947 para perseguir uma carreira que não contava com nenhum representante na família: a medicina. “Entrei em terceiro lugar na USP”, relembra Pileggi, hoje com 82 anos, que se aposentou em 1997, depois de ter sido professor titular de cardiologia na universidade por duas décadas e diretor geral do prestigiado Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas (HC) por 17 anos, mas continua ativo em seu consultório particular. “Naquela época, o vestibular durava um mês, com provas orais e escritas.” Ao tomar contato no quarto ano do curso com trabalhos na área de eletrocardiografia, o então jovem aspirante a médico logo pendeu para a especialidade clínica que o consagraria como um dos mais respeitados cardiologistas do Brasil. Em 1952 concluiu a faculdade e iniciou uma longa e produtiva carreira de sucesso, marcada pela associação íntima entre a prática médica, a ciência e a administração hospitalar.
Depois de graduado, Pileggi fez internato e residência médica no próprio HC, mas, patrocinado por uma bolsa da Fundação Rockefeller, especializou-se no exterior. Seu destino foi o Instituto Nacional de Cardiologia do México, um dos mais importantes centros dessa especialidade médica nos anos 1950, que reunia dois expoentes da crescente área de eletrocardiografia, os professores Demetrio Sodi Pallares e Enrique Cabrera. “A eletrocardiografia era difícil, mas eu gostava de física e matemática, o que me ajudava nesse campo”, conta Pileggi. O brasileiro permaneceu quatro anos em terras estrangeiras e ganhou a confiança de Cabrera, com quem publicou artigos científicos de extrema relevância para a eletrocardiografia em importantes revistas internacionais. “Eles ficaram tão amigos que, quando Cabrera viajava, quem tomava conta do serviço de cardiologia era Pileggi, e não os alunos e os assistentes do mexicano”, comenta o oncologista Ricardo Renzo Brentani, amigo do cardiologista. “Pileggi é um cardiologista completo e foi ele quem estabeleceu as bases da eletrocardiografia no Brasil.”
De volta a São Paulo, foi trabalhar com a equipe do professor Luiz Venere Décourt, chefe do então Serviço de Cardiologia Clínica do HC, um centro que atraía médicos de toda a América Latina em busca de especialização nas doenças do coração, um campo que começava a ganhar corpo na medicina. Ao lado de Euryclides de Jesus Zerbini, na época chefe do Serviço de Cirurgia Cardíaca do HC, Décourt, que tinha um perfil mais discreto e morreria em maio de 2007 aos 95 anos, foi um dos artífices da criação em 1963 do embrião do InCor, denominado inicialmente Instituto de Doenças Cardiopulmonares. O próprio Pileggi – discípulo de Décourt, de quem herdou os traços de austeridade – e outros cardiologistas de peso como Radi Macruz e Delmont Bittencourt não só assistiram, mas também participaram do processo de unificação das áreas clínica e cirúrgica do InCor. “Naquele tempo contávamos com cerca de 40 leitos na cardiologia e já achávamos que a universidade deveria ter um centro de excelência nessa área, juntando ensino, pesquisa e a parte de atendimento à população”, afirma Pileggi, que também em 1963 concluiu seu doutorado. Desde então a cardiologia brasileira não parou de crescer – e o InCor, hoje com 535 leitos, tornou-se o maior expoente da área e uma inspiração para outros centros que foram sendo criados pelo país.
eduardo cesarNão seria exagero dizer que a consolidação do InCor como centro de referência em cardiologia ocorreu durante a longa passagem de Pileggi pelo comando da instituição. Depois de obter todos os títulos de professor de cardiologia na Faculdade de Medicina da USP, inclusive o de titular da especialidade em 1977, ele se tornou diretor-geral do InCor em 1981, posto que deixou apenas em 1997. Sem abrir mão de ser um cardiologista clínico de primeira linha e também um pesquisador invejável (publicou 488 artigos em revistas científicas nacionais e 233 em periódicos internacionais), Pileggi se notabilizou como um homem de grande visão administrativa. “Considero-o o maior responsável pela formação da notável instituição que é hoje o InCor”, diz o cardiologista Protásio Lemos da Luz, que trabalhou com Pileggi por mais de 20 anos e é hoje diretor da Unidade de Aterosclerose do instituto. “Era um líder natural, um grande médico, tanto pelo conhecimento como pelo humanismo. Ele teve uma visão administrativa avançada para a instituição. Estimulou a criação de equipes técnicas de excelência. Trouxe ciência para o InCor, através da contratação de pesquisadores em áreas básicas. Formou vários médicos e pesquisadores da maior qualidade.” Brentani complementa o comentário de Protásio: “Sua grande capacidade administrativa tinha a ver com o fato de estar sempre presente no InCor. Ele sabia o que o médico estava falando e o que era necessário para a instituição”.
A habilidade gerencial de Pileggi implementou de fato a missão da Fundação Zerbini, uma entidade de direito privado criada em 1978 para dar suporte financeiro ao InCor. Inaugurada em 1977, a sede da instituição fez com que o setor de cardiologia do HC ganhasse vida própria, sem, no entanto, deixar de atuar em sinergia com todo o hospital universitário da FMUSP. Mas era preciso garantir bons médicos em tempo integral, aparelhar de forma moderna todo o instituto e ter verba para a pesquisa e o ensino. “Começamos a pagar os médicos e funcionários tão bem quanto os melhores hospitais privados como forma de mantê-los no InCor”, conta Pileggi, que nunca se furtou a manter contatos estreitos com autoridades em nível estadual e até federal em busca de respaldo material e financeiro ao grande centro de cardiologia. Com o suporte econômico e a agilidade burocrática propiciafotos dos pela Fundação Zerbini, o InCor pôde destinar 10% dos leitos para pacientes de convênios privados ou clientes particulares, que pagavam pelos bons serviços prestados pelos cardiologistas da instituição, e atender 90% de sua clientela de forma gratuita, por meio do sistema público de saúde. O flexível modelo gerencial, que sofreu duras críticas quando começou a ser implantado, hoje se tornou uma referência para fundações e mantenedoras de hospitais pelo Brasil afora.
Talvez mais do que ninguém, Pileggi sabe que o InCor é uma obra coletiva, que alcançou seu padrão de qualidade porque muitos homens, cardiologistas como ele, sonharam o mesmo sonho antes e depois de sua passagem pelo comando da instituição. Mas ele não esconde uma ponta de orgulho ao lembrar que deixou a direção geral do InCor em 1997 com 280 leitos (quando assumira as rédeas do instituto havia 40) e um caixa superavitário. “Muitos no exterior, como a revista (médica) The Lancet, reconheceram a excelência do InCor”, comenta Pileggi. Apesar do enorme prestígio no meio acadêmico e médico, o veterano cardiologista sempre foi avesso a badalações. “Nunca gostei de aparecer em televisão, de fazer marketing”, afirma, com severidade.
Mesmo aposentado da faculdade, com todo o seu tempo de trabalho, geralmente as tardes, dedicado ao consultório particular na capital paulista, Pileggi não perde os antigos hábitos. Ainda estuda cardiologia com afinco, sempre em busca das mais recentes novidades e pesquisas do setor. Cotidianamente lê trabalhos científicos publicados nas revistas especializadas. Também encontra tempo para reler livros de autores que o encantaram na juventude, como Dostoiévski e H.G. Wells, e obras sobre a Segunda Guerra Mundial, uma de suas paixões. “Gosto muito de estudar a vida dos grandes generais, como MacArthur, Patton e Rommel”, afirma o cardiologista, que também é um grande apreciador de vinhos. Fora da medicina, outro tema que o entusiasma é falar do Palestra Itália, denominação que ainda usa para se referir ao Palmeiras, seu clube do coração. Casado, Pileggi teve quatro filhos, dois homens e duas mulheres, mas nenhum deles seguiu a profissão do pai. Até o time de futebol é outro. Os homens torcem para o Santos.
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