Além de belos, os campos de dunas de areia encantam os pesquisadores por seu comportamento, que desafia a intuição. Por exemplo, um vento soprando forte por um longo período pode fazer as dunas se tornarem mais altas, em vez de desgastá-las e diminuir seu tamanho, como seria de se imaginar. Para conhecer melhor como esses sinuosos montes de areia se movimentam e interagem uns com os outros, o engenheiro mecânico Erick Franklin, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), criou em laboratório um pequeno aparato que tenta reproduzir a dinâmica natural de alguns tipos de dunas e identificar propriedades de seu deslocamento e evolução.
O sistema artificial consiste em um canal de acrílico com 5 metros de comprimento por 16 centímetros (cm) de largura e 5 cm de altura. Em seu interior, os pesquisadores costumam depositar duas pilhas de grãos esféricos de vidro ou cerâmica, com formato e peso precisamente controlados. Cada miniatura de duna tem cerca de 100 mil partículas de uma mesma cor, diferente do tom das do monte vizinho. Essa distinção facilita o rastreamento do movimento dos grãos. Com câmeras de vídeo de alta resolução, Franklin e seus colaboradores registram o deslocamento das esferas, arrastadas por uma corrente de água com velocidade ajustável, e depois o analisam em câmera lenta com o auxílio de programas de computador.
Usando essa estratégia, o grupo mapeou como cada grão migra de uma colina de areia para outra e identificou cinco padrões de interação entre duas dunas do tipo barcana, aquelas em forma de meia-lua, comuns em desertos, no fundo de rios e mares e até na superfície de outros planetas, como Marte. Em outro experimento, os pesquisadores verificaram que o movimento do fluido, no caso a água, é capaz de separar grãos de dimensões diferentes inicialmente misturados e criar barcanas estratificadas, o que pode influenciar a interpretação de achados geológicos. Nas dunas estratificadas, cada camada é formada por grãos de tamanho homogêneo e diferente do encontrado nos outros estratos.
Especialista em mecânica dos fluidos e transporte de materiais granulares, Franklin começou a instalar em 2012 um sistema artificial de dunas em seu laboratório na Unicamp. Ele é fascinado pelas formas que essas montanhas móveis de areia assumem na natureza e queria entender como elas evoluem com o tempo, algo nem sempre possível de acompanhar pela mensuração direta na natureza.
Dunas eólicas, esculpidas pela ação do vento, como as encontradas nos Lençóis Maranhenses ou no deserto do Saara, levam dezenas de anos para se formar e se deslocar. Só nas últimas duas ou três décadas passaram a ser acompanhadas com regularidade por imagens aéreas ou de satélite. Em Marte, onde o ar é mais rarefeito, o surgimento das barcanas pode levar milênios, e os pesquisadores dependem de simulações computacionais para estimar como elas se comportam. Mesmo em condições especiais de laboratório, como em um túnel de vento, uma barcana não apareceria em menos de um ano.
Na natureza, as dunas esculpidas pelo vento levam dezenas de anos para se formar e se deslocar
Diante dessas limitações e partindo do princípio já estabelecido de que as dunas são o resultado do transporte de um material granular por um fluido (água nas aquáticas e vento nas terrestres), Franklin decidiu trabalhar em laboratório, sob condições controladas, com dunas que se formam embaixo d’água, cuja evolução é extremamente rápida. Menores que as barcanas de origem eólica, que podem alcançar algumas dezenas de metros de altura, as dunas subaquáticas não passam de 10 cm, e surgem e se deslocam em minutos. Na natureza, tanto em terra como na água, as barcanas colidem, fundem-se ou sobrepõem suas extremidades, formando corredores de dunas. “O que muda são as escalas de tamanho e tempo”, afirma o pesquisador, para quem os principais mecanismos físicos que governam a formação das dunas em terra ou sob a água devem ser muito semelhantes.
Franklin e um aluno de doutorado, o engenheiro mecânico Willian Righi Assis, iniciaram os testes usando a composição mais simples possível – duas pilhas de grãos no canal de água – e realizaram cerca de 150 experimentos. Eles variaram o tamanho inicial dos pares de dunas, a posição de cada uma no começo dos testes, a velocidade da água e as características (diâmetro, densidade e rugosidade da superfície) de cada grão. Em um artigo publicado em setembro de 2020 na Geophysical Research Letters, eles descrevem as cinco formas principais de interação entre barcanas: perseguição, fusão, intercâmbio, fragmentação-perseguição e fragmentação-intercâmbio.
Como os nomes explicitam, as três primeiras interações são simples e as duas últimas mistas. Na perseguição, as duas dunas se deslocam no mesmo sentido sem que uma alcance a outra. Na fusão, o material da duna a montante (mais perto da origem do fluxo de água) se mistura com o da duna a jusante (mais distante), resultando em uma única duna. No intercâmbio, os grãos da duna a montante se incorporam aos do monte vizinho, que, por sua vez, libera parte de seu material para gerar uma nova duna. Na fragmentação-perseguição, a duna a montante persegue aquela a jusante, que se fragmenta em duas. A fragmentação-intercâmbio, porém, é mais complexa. A duna a jusante no fluxo começa a se dividir antes que aquela a montante a alcance e se funda com parte dela. Como na interação anterior, também essa termina com três dunas, sendo uma delas formada pela mistura de grãos dos dois montes iniciais (ver imagens).
Com base nos resultados dos experimentos, Franklin e Assis montaram uma espécie de mapa que, a partir das condições iniciais, permite estimar o tipo de interação que ocorrerá entre duas barcanas. Segundo os pesquisadores, ao menos em teoria, ele poderia ser aplicado a dunas de qualquer tamanho e em qualquer escala de tempo. “O mapa permite estimar interações entre barcanas na Terra ou em Marte”, afirma Franklin. Ele espera que essas conclusões sejam úteis para o desenvolvimento de modelos mais sofisticados de evolução de dunas, que podem auxiliar no combate ao avanço do processo de desertificação, ou na manutenção dos montes de areia ameaçados pela atividade humana.
Em experimentos descritos em julho de 2021 na revista JGR Earth Surface, Assis e Franklin repetiram os testes com barcanas utilizando grãos em um esquema de cores diferente. Eles usaram em cada duna uma mistura de grãos brancos (97% do total) e pretos (3%) e seguiram o movimento individual dos últimos. A análise estatística das trajetórias dos grãos pretos permitiu aos pesquisadores deduzir o deslocamento dos demais. Assim, eles determinaram quantos grãos chegam ou saem de cada duna nos diferentes tipos de interações. Em conjunto com o “mapa de interações”, esses dados devem permitir estimar aproximadamente a quantidade de areia trocada entre dunas eólicas na Terra ou em Marte.
“O grupo da Unicamp está fazendo um trabalho muito bonito de medições detalhadas de dunas subaquáticas, decifrando a transferência de massa ao nível do grão”, comenta o físico Hans Herrmann, da Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista na modelagem computacional de dunas. Ele, entretanto, discorda de que os cinco tipos de interação das barcanas subaquáticas possam ser aplicados às dunas eólicas. Para Herrmann, diferenças nas propriedades do meio fluido (água ou ar) em que os grãos se movem não podem ser ignoradas. Na água, os grãos em geral rolam sobre o leito, enquanto no ar se deslocam principalmente por meio de saltos de grande distância, segundo o físico. Além disso, argumenta, a diferença entre o tamanho do grão e a dimensão da duna é menor na água do que em terra firme, o que poderia alterar o padrão de evolução das dunas eólicas.
“Nem tudo o que foi observado para as dunas subaquáticas pode ser aplicado às eólicas”, diz Eric Parteli, físico da Universidade de Duisburg-Essen, Alemanha, que trabalha com modelos de geomorfologia para combater a desertificação. Ele, no entanto, observa que o comportamento das que se formam sob a água podem ser úteis para investigar o impacto de mudanças na direção do fluxo sobre a forma das dunas. “Se os experimentos do grupo de Campinas incorporarem alterações na direção do fluxo, talvez ajudem a responder dúvidas que existem sobre dunas de Marte”, diz.
Como a maioria dos experimentos e das simulações em computador assume que as dunas são formadas por um único tipo de grão (um grão “médio”), Franklin e outros dois alunos de doutorado, os equatorianos Carlos Alvarez e Fernando Cúñez, decidiram explorar o que ocorreria em condições mais semelhantes às naturais. Misturaram grãos com dois tamanhos e densidades distintos nas pilhas e repetiram os experimentos.
Os resultados, apresentados em maio de 2021 na revista Physics of Fluids, mostraram que o escoamento da água separa os grãos e gera barcanas estratificadas. Ao contrário do esperado, os grãos mais pesados tendem a ficar por cima dos mais leves, algo que ainda não tinha sido observado em laboratório. Franklin especula que esse processo de separação é uma explicação adicional (além de outras teorias existentes) para a formação de dunas estratificadas vistas no polo Norte marciano.
A estratificação também pode ser importante para entender a origem de rochas sedimentares formadas a partir do soterramento de campos de dunas que existiram há centenas de milhares de anos. “Diferentes tipos de dunas deixam padrões geométricos distintos de estratificações”, explica o geólogo Paulo Giannini, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP). “Por meio de medidas da inclinação dos estratos, é possível inferir para onde uma duna antiga se deslocou e, consequentemente, para onde o vento ou a corrente de água se dirigia no passado.”
Projeto
Modelagem de escoamentos granulares densos: experimentos, simulações numéricas e análises de estabilidade (nº 18/14981-7); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Erick de Moraes Franklin (Unicamp); Investimento R$ 1.983.410,31.
Artigos científicos
ASSIS, W. R. e FRANKLIN, E. M. Morphodynamics of barchan-barchan interactions investigated at the grain scale. JGR Earth Surface. 19 jul. 2021.
ASSIS, W. R. e FRANKLIN, E. M. A comprehensive picture for binary interactions of subaqueous barchans. Geophysical Research. Letters. 23 set. 2020.