Se o mundo da Ciência permitisse homenagens com maior freqüência, o químico francês Antoine Lavoisier poderia ser o patrono do Laboratório de Resíduos Sólidos e Compósitos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. Ali, nada se perde e tudo se transforma, de acordo com um dos princípios da Química, que trata da combinação entre átomos e moléculas, formulado por Lavoisier no século 18.
Mais do que arranjos microscópicos, porém, a equipe conduzida pelo professor Alcides Lopes Leão, do Departamento de Ciências Ambientais da Faculdade de Ciências Agronômicas, trabalha com as sobras e os problemas da civilização contemporânea. Os pesquisadores da Unesp misturam tanto os resíduos de origem urbana – por exemplo, os plásticos e as embalagens de leite longa vida – quanto os derivados do processamento agrícola – serragem e bagaço de cana, entre outros – com fibras naturais provenientes de vegetais, especialmente o coco, o sisal, o rami e o curauá.
As novas composições, os chamados compósitos, apresentam, do ponto de vista econômico e ambiental, características físicas e químicas mais vantajosas, quando comparadas às propriedades dos elementos isolados. Desde o ano passado, compósitos desenvolvidos desenvolvidos naquelelaboratório da Unesp de Botucatu vêm sendo usados na fabricação de revestimentos laterais, assoalhos, tetos e outros componentes para automóveis, como resultado do projeto de pesquisa Produção de Compósitos à Base de Fibras Naturais para Utilização na Indústria Automobilística, realizado em conjunto com a Toro Indústria e Comércio Ltda., uma indústria de autopeças de Diadema, na Grande São Paulo, no âmbito do Programa Parceria para Inovação Tecnológica, da FAPESP.
“Encontramos novos materiais e novos processos para a produção de autopeças”, afirma Nilton Tavares, gerente de projetos da Toro. A empresa já possuía um produto à base de fibras, chamado Tecnomix, mas desejava estabelecer novos parâmetros para o processamento de materiais desse tipo. “O trabalho da Unesp foi fundamental para atingirmos os objetivos traçados na pesquisa de compostos à base de fibras naturais”, diz Tavares.
A produção das peças – que já estão sendo usadas em veiculos de diversas linhas – encerra o estudo de viabilidade técnica da pesquisa, iniciada em 1994. A FAPESP financiou metade dos custos, estimados em R$ 539 mil, e a empresa a outra metade. No caso da Unesp, segundo Alcides Lopes Leão, os recursos foram usadosbasicamente na compra de equipamentos, como extrusora, injetora, prensa, analisador térmico, analisador de infra-vermelho e reatores para geração de plasma, que permitem que os resíduos já possam ser processados em escala industrial.
“As máquinas usadas em pesquisa dão conta, sem problemas, de uma produção em escala industrial”, diz o pesquisador. Segundo ele, a equipe da Unesp elaborou novas formulações de compósitos ou processos para 20 das 50 peças da linha de produção da Toro. Ao participar da pesquisa, a Toro, na verdade, está acompanhando uma tendência mundial da indústria de autopeças, de substituição do plástico pelos compósitos de fibras naturais e plástico.
Alcides Leão lembra que o assento e o encosto dos carros de luxo de grandes montadoras européias, como a Mercedes Benz e a BMW, são reforçados com fibra de coco misturada ao látex natural, que garante a maciez da peça e melhores condições de saúde e conforto aos motoristas e passageiros. O que caracteriza um compósito é o fato de ele ser um material resultante da mistura de dois outros materiais distintos, tendo propriedades iguais ou melhores do que as dos materiais que lhe deram origem. “Não se trata apenas da soma de propriedades dos materiais originais, já que elas são quimicamente modificadas, buscando a sua compatibilização”, explica o pesquisador. Nesse processo entram fibras plásticas, como carpete velho, embalagens plásticas de polietileno, polipropileno, poliestireno e caixas de leite (tetrapak), entre outras, resíduos e fibras vegetais.
O segredo tecnológico
A escolha do tipo de plástico e de fibra vegetal e a proporção de uso de cada uma delas varia de acordo com a rigidez, a flexibilidade ou a resistência a impacto desejada para cada peça. A proporção básica é 50% de fibras vegetais e 50% de fibras plásticas, retiradas de materiais descartados. Facilmente, porém, os compósitos assumem combinações variadas, à base de 80% de fibras vegetais e o restante de materiais plásticos – ou o contrário. “Para compósitos diferentes fazemos misturas diferentes, pois cada fibra vegetal tem uma característica, da mesma formaque os resíduos plásticos”, explica o pesquisador.
Esse, aliás, é um outro aspecto relevante das pesquisas feitas por Alcides Leão. Ele estudou as características de diversos resíduos plásticos e de dezenas de resíduos e fibras vegetais, testando-os e procurando a melhor maneira de compatibilizá-los. “O segredo tecnológico é conhecer as características de cada material e a sua compatibilidade química e os agentes compatibilizadores – lubrificantes e resinas – mais adequados para cada caso”, explica Alcides Leão, acrescentando que os agentes, como as resinas (uréia, isocianato, formaldeídos e tanino), são fundamentais para agregar materiais tão diferentes.
Para chegar a cada um dos compósitos, é necessário, de início, uniformizar os resíduos, separadamente. Depois, eles são agregados no misturador, indo, em seguida, para uma máquina onde passam pelo processo de termoformagem, quando são acrescentados os agentes químicos, as resinas e os lubrificantes, e dali, para uma prensa, uma injetora, ou para uma extrusora.
O pesquisador destaca um cuidado a ser adotado durante todo o processo: não se pode trabalhar as fibras vegetais com altas temperaturas, porque elas perdem suas propriedades, sofrendo degradação térmica. E mais: para ampliar e garantir a compatibilidade entre os dois materiais básicos – afinal, “o plástico e as fibras vegetais não se gostam, mas se toleram”, segundo o pesquisador – seu grupo desenvolveu um processo de utilização da tecnologia do plasma frio em fibras naturais, para modificar quimicamente a superfície desses materiais. “Uma das maneiras de tornar afins substâncias que são pouco compatíveis entre si é acrescentar uma substância química compatibilizadora, que os transforme e permita a ligação, por exemplo, entre um material hidrófobo (que não gosta de água) e um hidrofílico (que necessita de água)”, explica Alcides Leão.
A outra maneira é substituir o agente químico e realizar a transformação na superfície dos materiais via plasma, isto é, expondo-os a um gás. Essa é uma tecnologia utilizada em microeletrônica e na produção de filmes finos e que os pesquisadores adaptaram para uso em fibras naturais e plásticas.
Mais leves e econômicos
Os compósitos de fibras naturais com plástico substituem geralmente com vantagens evidentes as peças feitas inteiramente de plástico, assegura o pesquisador, enumerando as vantagens do uso desses compósitos: demanda menor de petróleo, utilização de matéria-prima nacional, aproveitamento econômico de matéria-prima (resíduos) sem mercado e, portanto, de menor custo.
Uma peça feita inteiramente de polipropileno, que custa R$ 2,00, pode ser fabricada por R$ 1,12 a partir de uma mistura de 50% de polipropileno e 50% de bagaço de cana. Além disso, o material pode ser reciclado novamente, até 9 vezes. Mas há outras vantagens. As novas peças são mais leves, já que a densidade média das fibras é 0,3 e a de resinas como o polipropileno, ao redor de 1. No caso da indústria automobilística, ganhos de custos e de leveza são particularmente bem-vindos.
No Brasil, os bancos dos automóveis são feitos normalmente com espuma expandida de poliuretano, que ainda é um material mais barato, sobretudo por causa de subsídios governamentais concedidos à indústria petroquímica nos anos 70. No entanto, comparada com as fibras naturais, a espuma esquenta, provoca hemorróidas e prostatites, assegura Alcides Leão, com base em estudos distintos realizados pela Mercedes Benz, na Alemanha, e por sua própria equipe, em Botucatu.
E mais: os resultados preliminares de um convênio entre a Mercedes Benz brasileira e a Unesp, comparando o ciclo de vida dos bancos feitos com espuma e com fibra de coco, pesam contra o material sintético, além de serem mais seguros. “Se um carro pegar fogo, o banco de espuma vai liberar vapores tóxicos, e não tóxicos, se for de fibra de coco”, afirma o pesquisador. Um outro exemplo de segurança: se um veículo que tiver as laterais de porta feitas de plástico sofrer uma batida, o plástico produz pontas, que podem ferir os passageiros. O mesmo não acontece com as laterais de porta feitas de compósitos reforçados com fibras naturais.
O especialista da Unesp acredita que a espuma tende a perder espaço, com as exigências crescentes das normas internacionais da série ISO 14000, que atesta a qualidade de um produto não só por seus custos, mas, sobretudo, por seu impacto ambiental, medido, entre outras formas, pelo ciclo de vida dos resíduos e sobre a saúde dos trabalhadores.
Atualmente, Alcides Leão estima que não deve ultrapassar 5 mil toneladas por ano o total de fibras naturais processadas no país. Ainda é pouco. No Brasil, as fibras naturais, em diversas aplicações, representam um mercado da ordem de 40 mil toneladas por ano na indústria automobilística. Seria o equivalente a 20 kg por automóvel por ano, considerando uma produção de 2 milhões de unidades.
Visão social da ciência
O interesse da equipe de Botucatu por fibras naturais não é apenas científico. “Temos de abrir novos mercados para essas fibras”, diz os pesquisador. Segundo ele, a concorrência com materiais sintéticos importados provocou a queda de produção do sisal, que afeta atualmente 1 milhão de trabalhadores, sobretudo na Bahia e na Paraíba.
O rami, produzido no Paraná, também perdeu mercado, especificamente por causa dos tecidos a custos inferiores importados da China e da Coréia do Sul. O uso mais intensivo de fibras naturais, com o apoio dos cientistas, poderia pelo menos amenizar esta situação. “Não dá mais para pensar pesquisa sem uma visão social”, diz Alcides Leão.
O curauá, uma ananácea, como o abacaxi, é outra fibra que poderia ganhar mais espaço, não só no mercado como em sua própria distribuição geográfica. Cultivado na ilha do Marajó e na divisa do Pará com o Amazonas, poderia também ser produzido em áreas de clima semelhante, a exemplo do Vale do Ribeira, em São Paulo.
Desse modo, representaria uma fonte de renda a mais para a população local e de matéria-prima para as indústrias. Segundo o professor Alcides, as fibras da folha do curauá são melhores do que todas as outras, podendo vir a substituir a fibra de vidro em algumas aplicações, e produz ótimos compósitos quando é picada e misturada, por exemplo, com carpete reciclado. “Estamos redescobrindo o uso industrial dessa fibra, usada pelos índios para fazer redes e cordas”. Suas potencialidades, no entanto, preocupam. “Temos medo que outro país leve essa cultura do Brasil, como aconteceu com a borracha”, comenta o pesquisador.
Aplicação diversificada
Alcides Leão começou a trabalhar com resíduos em 1989, quando fazia o doutorado no Laboratório Federal de Produtos Florestais, em Madison, Wisconsin, Estados Unidos. Quando voltou ao Brasil, em 1994, começou a pesquisar com matérias-primas brasileiras, com o apoio da Toro e da Copersucar. Não parou mais. Atualmente, ele coordena 15 pesquisas financiadas pela FAPESP. “Um projeto ajuda o outro”, diz, acrescentando que se pretende a criação de um núcleo de resíduos, procurando fazer com que eles tenham aplicação em diversos setores industriais, como a indústria eletroeletrônica, de construção civil, automobilística, etc.
Foi assim que ele já conseguiu produzir divisórias de ambiente com um compósito à base de papel de revista reciclado e bagaço de cana; cadeiras, a partir de pó de serra e resíduo plástico; briquetes para queima em caldeira industrial, feitos à base de casca de mandioca e fécula, além de componentes para o interior de veículos. “As pesquisas deste laboratório não ficam na prateleira”, conclui Alcides Lopes Leão, enquanto mexe discretamente com um pente feito com uma mistura de 50% de bagaço de cana e 50% de polipropileno reciclado, produzido no Laboratório de Resíduos Sólidos e Compósitos da Unesp em Botucatu.
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