O Brasil tenta, enfim, conhecer o tamanho da pandemia do novo coronavírus, cujo primeiro caso foi notificado há mais de três meses, em 26 de fevereiro. Nas últimas semanas, foram iniciados programas de testagem em massa e começaram a ser divulgados os primeiros resultados de estudos epidemiológicos que podem ajudar o país a compreender a dinâmica da doença e a traçar estratégias para combatê-la. Entre os principais projetos destacam-se a pesquisa nacional Evolução da Prevalência de Infecção por Covid-19 (Epicovid19-BR), coordenada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, um estudo-piloto na capital paulista liderado pelo Grupo Fleury e um programa de testes em larga escala promovido pelo governo de São Paulo.
Especialistas são unânimes em afirmar que essas iniciativas são importantes porque o Brasil é um dos países que menos testa sua população. Segundo o Ministério da Saúde, a taxa de testagem no fim de maio era de 4,2 mil exames por milhão de habitantes, o menor índice entre as nações com mais casos. Na ocasião, 871,8 mil exames moleculares do tipo RT-PCR, que detectam fragmentos do RNA do vírus em amostras colhidas no fundo do nariz ou garganta, haviam sido realizados no país, sendo 460,1 mil processados em laboratórios da rede pública e 411,7 mil nos cinco maiores laboratórios privados. O órgão não informou o número de testes sorológicos rápidos que detectam a presença de anticorpos no sangue.
“O Brasil deveria testar em larga escala para reduzir o número reprodutivo efetivo [índice referente ao contágio entre pessoas], seguindo protocolos orientados a identificar os indivíduos infectados, isolá-los e permitir o rastreamento de seus contatos, com a adoção de medidas de distanciamento físico, isolamento social e quarentena”, diz o epidemiologista Hélio Neves, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. “Demorou muito para termos disponíveis no país, em volume razoavelmente adequado, os testes RT-PCR, o que ainda não foi plenamente resolvido.”
Outro gargalo apontado pelos especialistas é a lentidão no processamento dos exames. “Embora se divulgue a ampla capacidade das dezenas de laboratórios públicos e privados em realizar testes moleculares, na prática isso não ocorre. Muitos municípios ainda não estão habilitados e orientados para o uso de tais testes”, destaca Neves. No fim de maio, mais de 2 milhões de testes RT-PCR estavam na fila para serem processados na rede pública. Além disso, a falta de um insumo trivial, o swab, espécie de cotonete para coleta das amostras de indivíduos suspeitos, também contribui para o baixo número de exames no país.
O programa paulista
Na tentativa de imprimir um novo ritmo de testagem, o Ministério da Saúde lançou em maio a estratégia Diagnosticar para Cuidar, que prevê a aplicação de 46,2 milhões de testes até o mês de setembro. Desse total, 24,2 milhões são diagnósticos de biologia molecular RT-PCR e 22 milhões de exames rápidos por sorologia. Nas primeiras semanas do programa, 8 milhões de testes haviam sido repassados aos estados. O plano do ministério é que os exames moleculares sejam aplicados em até sete dias do início dos sintomas, quando o vírus está agindo no organismo do paciente. Já os testes rápidos, que identificam em poucos minutos a resposta imunológica do organismo à infecção, devem ser realizados após o oitavo dia de aparecimento dos sintomas.
A estratégia adotada em São Paulo segue linha similar. A intenção do governo paulista é realizar até agosto 1,3 milhão de exames RT-PCR e 2 milhões de testes rápidos. Segundo declaração do hematologista Dimas Tadeu Covas, diretor do Instituto Butantan e coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo, com a ampliação do diagnóstico o estado deverá atingir um índice de 27 mil exames por milhão de habitantes, próximo ao verificado em alguns países europeus – em meados de maio, o Ceará era o estado com a maior taxa de testagem, de 5,4 mil exames por milhão de pessoas.
Com o programa paulista, pessoas com sintomas leves da doença passaram a ser testadas com o exame RT-PCR, que, até então, só era destinado a pacientes internados e a profissionais de saúde com sintomas. Já os testes sorológicos rápidos foram direcionados numa primeira fase a agentes de segurança pública e seus coabitantes, começando pelos que atuam na capital paulista. Em seguida, será a vez de profissionais da saúde e familiares de pessoas que tiveram contato com doentes.
O senão dos testes sorológicos – cuja coleta de sangue é feita com uma perfuração na ponta do dedo por uma lanceta – é que, se forem aplicados nos primeiros dias da infecção, quando o organismo ainda não está produzindo os anticorpos IgM e IgG, apresentarão resultado negativo, quando, na verdade, a pessoa já estaria doente. A produção de IgM começa a partir do sétimo ao décimo dia de infecção, enquanto a de IgG, de efeito mais permanente, que, supõe-se, deve proteger a pessoa de futuras infecções, se dá depois de cerca de 15 a 20 dias de contaminação.
Além disso, especialistas advertem para a baixa confiabilidade de alguns kits de diagnostico rápido em uso no país. Estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, liderado pelo hepatologista Hugo Perazzo, revelou que os 16 testes analisados no fim de março apresentavam baixa sensibilidade – ou seja, sua capacidade de identificar corretamente os indivíduos doentes era reduzida.
“Esses testes podem ser úteis na emergência médica durante a pandemia de Covid-19 no Brasil”, apontou o estudo, publicado na revista The Brazilian Journal of Infectious Diseases. “Entretanto, é importante destacar que a taxa de resultados falsos negativos dos testes que detectam anticorpos IgM para Sars-CoV-2, utilizados para diagnóstico da Covid-19 na fase aguda, variou de 10% a 44%.” A equipe analisou todos os 16 testes aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) até aquele mês – hoje já são mais de 100.
O estudo foi feito a partir dos dados de sensibilidade e especificidade (a capacidade do teste de identificar corretamente os indivíduos que não têm a doença, evitando falsos positivos), informados pelas empresas quando solicitam a liberação do produto na Anvisa. Isso porque os testes estão sendo analisados e liberados para comercialização apenas a partir da análise das informações fornecidas pelos solicitantes dos registros, sem avaliação laboratorial prévia.
“A Anvisa flexibilizou algumas regras para permitir a avaliação mais célere dos pedidos de registro de produtos destinados ao enfrentamento da Covid-19. Isso inclui os testes, que não são previamente analisados em laboratório, mas que estão sendo monitorados em parceria com o INCQS [Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, da Fiocruz] e o Ministério da Saúde”, informou Leandro Rodrigues, gerente-geral de Produtos para Saúde da Anvisa. No fim de maio, dois dos 20 testes monitorados pelo INCQS haviam sido considerados “insatisfatórios”.
Estudos epidemiológicos
Um dos kits analisados pela Fiocruz é fabricado pela empresa chinesa Wondfo. O governo federal adquiriu um lote de 5 milhões de unidades do teste. Sua sensibilidade é de 86%, o que representa um risco de falso negativo de 14%, índice elevado para emprego na clínica médica. Por isso, especialistas afirmam que os exames sorológicos rápidos não são ideais para a realização de diagnósticos, apontando quem teve ou não Covid-19, nem servem para liberar pessoas da quarentena por, supostamente, já terem adquirido anticorpos contra o vírus – o propalado passaporte de imunidade, sobre o qual ainda restam muitas dúvidas.
Desde o final de abril, as farmácias estão autorizadas a fazer testes rápidos na população para detectar anticorpos do vírus Sars-CoV-2. A decisão da Anvisa visou ampliar a oferta e a rede de testagem e reduzir a demanda em serviços públicos de saúde. A medida foi criticada por especialistas. “Por causa da baixa acurácia, exames sorológicos rápidos não devem ser utilizados em farmácias. Eles confundem a população”, pondera a bióloga Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora colaboradora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).
De acordo com a pesquisadora, esses testes são indicados apenas para uso em estudos epidemiológicos, em que a taxa de falsos negativos pode ser corrigida por ferramentas estatísticas. É isso que está sendo feito pela equipe da UFPel que coordena a pesquisa de prevalência nacional Epicovid19-BR. Previsto para ser realizado em 133 municípios brasileiros, o levantamento usa o kit de diagnóstico do laboratório Wondfo. No total, 99.750 pessoas serão testadas por equipes do Ibope, em três etapas, com um intervalo de 21 dias entre elas.
“No início, uma de nossas maiores preocupações foi a escolha do teste. Embora os testes sorológicos rápidos não sejam tão precisos quanto os processados em laboratório, eles são a escolha óbvia para estudos em larga escala, como o nosso”, disse a Pesquisa FAPESP o epidemiologista Aluísio Barros, do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel e um dos coordenadores do projeto Epicovid19. “A questão operacional do campo em uma pesquisa de cobertura nacional é fundamental. Por isso, optamos por um teste fácil de aplicar. No balanço entre a logística e a validade, o teste é muito bom.”
Os resultados da primeira fase da pesquisa, feita em maio, mostraram uma prevalência de Covid-19 na população das localidades visitadas de 1,4%, índice sete vezes maior do que as estatísticas oficiais apontavam. Extrapolando para o conjunto dos brasileiros, a estimativa da Epicovid19-BR sugere que o número de contaminados no país deve ser de cerca de 2,5 milhões de pessoas, bem mais do que os 365 mil casos confirmados à época. O estudo também mostrou que o país ainda estava longe de atingir a imunidade coletiva ou de rebanho, quando 70% da população teria que ter contraído o vírus. Quando isso ocorre, o elevado número de pessoas imunes bloqueia a transmissão do vírus, por haver pouca gente suscetível, e a epidemia fica sob controle.
Radiografia do momento
Epicentro da pandemia no país, a capital paulista também iniciou um levantamento por amostragem para saber o número de pessoas com anticorpos contra o novo coronavírus. Liderado pelo Grupo Fleury, o mapeamento foi realizado em seis bairros da capital – os três com mais óbitos e os três com maior incidência da doença. Os resultados da primeira fase mostraram que 5,2% da população dessas regiões já tiveram contato com o vírus.
“Um diferencial do nosso estudo é que as equipes colhem sangue na veia – e não na ponta do dedo, como no caso dos testes rápidos”, informa o infectologista Celso Granato, diretor clínico do Grupo Fleury e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “O exame que usamos para a detecção de anticorpos, da empresa chinesa Snibe, é analisado por uma metodologia de quimioluminescência, com sensibilidade e especificidade ao redor de 90%.”
Granato explica que os resultados da pesquisa dão uma radiografia momentânea da imunidade da população nos bairros visitados. Com a realização da segunda etapa de visitas, agendada para meados de junho, que prevê a coleta de sangue em todas as regiões da cidade, será possível calcular a velocidade de disseminação do vírus. “É assim que vamos conhecer a dinâmica da epidemia entre nós”, afirma Granato.
Especialista em modelagem teórica e computacional em saúde, o físico Domingos Alves, pesquisador do Centro de Informação e Informática em Saúde (Ciis) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP-USP), destaca a importância dos estudos epidemiológicos, como os realizados pela UFPel e pelo Grupo Fleury. “Eles revelam um cenário mais realista da pandemia. Hoje, não temos noção do que ocorre no país, pois testamos apenas os casos que requerem internação. A subnotificação é alarmante”, afirma Alves. “Testar em massa permite acompanhar a evolução da epidemia, isolar quem está doente e reduzir a circulação de pacientes sintomáticos e assintomáticos. E pode ajudar a definir o relaxamento das medidas de quarentena.”
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