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Resenhas

O Brasil político das entrelinhas

A política do Brasil lúmpen e místico | José de Souza Martins | Contexto, 256 páginas, R$ 39,00

A melhor forma de entender o país é por suas anomalias

José de Souza Martins propõe, neste livro, a compreensão do Brasil político pela perspectiva das anomalias constituintes da sociedade brasileira, consubstanciadas nos arcaísmos em coexistência com formas modernas, nas concepções, ideias e práticas sociais e políticas. São anomalias que nos distanciam dos modelos consagrados de análise política, como a da insidiosa presença da dominação patrimonial instituída um dia no interesse do latifúndio, a persistência da corrupção e a reiteração do trabalho escravizado por dívida no campo e na cidade. Sobretudo, conciliação e convivência políticas de práticas e concepções entre si opostas, como as da Igreja Católica, da grande tradição do pensamento conservador, que apoia e mediatiza reivindicações populares de caráter socialmente modernizador, enquanto grupos liberais, de centro-esquerda e de esquerda, comportam-se como conservadores. Nessa inversão, a dinâmica da sociedade brasileira se torna anômica na gestão política dos débitos sociais do passado, os particularismos sobrepondo-se à universalidade possível.

Nessa dinâmica de opostos, compreende-se que o PT, em parte gestado na tradição conservadora de setores da Igreja, e o PSDB, originário da tradição racional e moderna que nos vem de nossas revoluções republicanas, tenham trocado os papéis políticos e os respectivos projetos de Brasil. O país se debate entre a social-democracia populista de um e a social-democracia formal de outro. A matéria-prima do embate está nos novos sujeitos sociais e políticos que, na repressão aos partidos políticos, emergiram nos movimentos sociais durante o regime autoritário, à margem dos rótulos convencionais da tradição e da teoria. As populações historicamente marginalizadas e silenciadas no passado puseram na agenda política do país suas demandas reprimidas. O PSDB, no governo de Fernando Henrique Cardoso, optou por reconhecer nelas interlocutores legítimos e autônomos, como no caso da reforma agrária. O PT preferiu o aparelhamento de um eleitorado cativo, incorporando-os corporativamente. Eles se tornariam decisivos no nascimento do lulismo e na reeleição improvável de Lula em 2006, em face de um PT abatido pelas denúncias de corrupção relativas ao “mensalão”.

Essa cooptação fragilizou a sociedade civil, cuja impotência se constata, sobretudo nos episódios de corrupção. Os novos sujeitos cobram uma dívida histórica do Estado, demandam políticas compensatórias estranhas à concorrência e à competição do ideário republicano, pois vivem o atraso histórico dos valores e ideias pré-modernas e concebem a política como algo religioso. Seu advento é marcado por certo misticismo antipolítico. O populismo do governo Lula desencadeou amplo atendimento a essas demandas específicas. Ampliou um assistencialismo que bloqueia a transformação social.

Para chegar à compreensão sociológica desses dilemas, o autor adota a perspectiva de interpretação que define como a de “sociologia da história lenta”, leitura dos fatos que desvela a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado: instituições, valores e concepções. No Brasil a mediação desse passado persistente e atrasado freia a mudança, ou a torna lenta, como nos é mostrado ao longo do livro.

Ressalte-se na obra de Martins o rigor sociológico e conceitual que imprime ao seu trabalho, o cuidado e a acuidade na observação dos fatos sociais e políticos, no que se vê e no que não se vê, no dito e no não dito. O seu rigor científico e sociológico pauta-se pela busca incessante do esmiuçar da origem, das determinações sócio-históricas e políticas dos processos em curso. Prima pelo uso pertinente dos conceitos, pois na análise sociológica a fundamentação conceitual é ponto fulcral que corrobora a veracidade ou induz ao erro na interpretação dos fenômenos sociais. Não se contenta com o aparente, com novas designações para velhas questões. Vai ao fundo, às raízes. Radicaliza na precisão conceitual.

Maria da Conceição Quinteiro é socióloga e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (Nupri/USP).

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