Há muitas décadas, uma pequena cidade nordestina, a 370 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte, acostumou-se a ver parte de seus habitantes atacada por uma misteriosa doença que reduz a visão, aos poucos vai enrijecendo e enfraquecendo as pernas, depois os braços, afeta mais adiante toda a postura, até que os atingidos “se fecham como uma flor”, na delicada comparação de uma pesquisadora. Os moradores de Serrinha dos Pintos – esse é o seu nome -, onde são muito comuns os casamentos consangüíneos, fantasiam que a doença se originou da sífilis de um ancestral comum de muitos deles, “o velho Maximiniano”, ocorrida há 150 anos. Daí o mal se disseminou pelo sangue dos descendentes. Em maio último, essa narrativa passada de geração em geração sofreu um golpe mortal: pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) definiram o estranho mal dos serrinhenses, na revista Annals of Neurology, como uma doença neurodegenerativa provocada por mutação num gene que se encontra numa região do cromossomo 11 até aqui não associada a qualquer enfermidade neurológica.
A descoberta se impôs, sem concorrentes, como objeto da reportagem de capa, da Pesquisa FAPESP de julho, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta, que, junto com o fotógrafo Eduardo Cesar, em junho passou um par de dias na bucólica Serrinha. No texto a partir da página 36, ele aborda os achados científicos dos pesquisadores sobre a doença, relata a sempre intrigante mistura de acasos e bem orientada investigação que desembocou nesses resultados e mostra de que maneiras levam a vida na cidade potiguar as vítimas da síndrome Spoan – o nome refere-se à sigla em inglês de Spastic Paraplegia, Optic Atrophy and Neuropathy, palavras que praticamente resumem o quadro clínico que a síndrome provoca.
Ainda no âmbito de medicina e saúde, vale ressaltar a reportagem de Francisco Bicudo, a partir da página 50, sobre novas evidências dos benefícios da acupuntura encontradas por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eles constataram que essa milenar terapia chinesa de introdução superficial de agulhas na pele pode combater gastrite e úlcera do estômago, além da irritante e perigosa apnéia noturna, e perceberam que seu mecanismo de funcionamento está ligado a um melhor aproveitamento da serotonina como potente analgésico para os nervos periféricos.
Acho interessante chamar a atenção para a variedade de reportagens desta edição que mostra como hoje é espalhada a pesquisa feita no país. Assim, de Recife, a jornalista Verônica Falcão conta nas páginas 58 e 59 como pesquisadores das universidades federais de Pernambuco (UFPE) e da Paraíba (UFPB), com a ajuda de físicos de São Paulo, reconstituiram a megafauna do Nordeste de cerca de 50 mil anos atrás. De São Carlos, em São Paulo, o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, fala das nanofitas de cerâmica candidatas a fazer conexões de circuitos e transistores (página 66), enquanto a editora assistente, Dinorah Ereno, trata da adaptação de uma câmara hiperbárica, no Rio de Janeiro, para equipar a primeira usina piloto de geração de energia pelas ondas do mar, a ser instalada no Ceará (página 76). Daí, na seção de humanidades, o jornalista Gonçalo Júnior nos leva a Salvador (página 88), onde um estudo sobre o poeta seiscentista Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, apresenta novos fatos documentados de sua vida que dificilmente silenciarão a polêmica sobre esta figura controversa. E para fechar o círculo voltamos a um Brasil tão profundo quanto o do começo, mas num outro sentido, na reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag (página 80), sobre pesquisas que revelam entre outras coisas como um autoritarismo sem controle rege ainda o serviço brasileiro de informação.
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