Berkeley é só tédio aos domingos. O escritor João Gilberto Noll que o diga. Melhor pegar um trem para San Francisco do que subir e descer a Shattuck Avenue, olhando os cafés vazios. Loucos e pedintes se abrigam nas portas das lojas, com seus cães e tralhas. A reforma psiquiátrica devolveu-os às ruas, impregnados de neurolépticos. Já não existem manicômios, apenas a cidade e o lixo da riqueza, muito lixo, restos da contracultura dos anos sessenta, molambos de hippies. Nenhum corpo nu desfila em protesto pela guerra no Iraque. A insurreição de intelectuais e estudantes nos tempos de Vietnã transformou-se em retratos nas paredes do Free Speech Coffee, da universidade.
Ninguém mais procura o que se enxergava antes, olhos aprisionados na tela do laptop, sem risco de rebelião. As bocas ávidas sorvem large coffee preparado com grãos da Abissínia ou Colômbia. De vez em quando disparam tiros e matam, mas não se comenta nada. São balas perdidas, resquícios, talvez, de Vietnã, Afeganistão e Iraque. O que nem ousam confessar. Os bons meninos e meninas, os rapazes e moças que passam correndo sobre patins estranham-se e matam. Matam-se. E todos se calam nas salas de aula, nos corredores dos departamentos, nos bares, nas avenidas largas sem ruído de buzina e sem atropelamentos. Nenhum clamor ou protesto. Em boca fechada só entra large coffee. É preferível não arranhar a beleza americana dos jardins perfeitos, ostentando camélias e orquídeas tropicais.
As batidas do carrilhão de Berkeley imprimem ritmo aos passos do escritor residente: bão… bão… bão…
– O que é o tempo? – perguntaram a Santo Agostinho.
– Se não me perguntam eu sei; se me perguntam desconheço – ele respondeu.
O escritor sobe e desce a Shattuck aos domingos, como João Gilberto Noll subia e descia a Shattuck aos domingos, angustiado porque nunca conseguiria ler os 6 milhões de livros da biblioteca central. Três andares submersos e mais quatro andares acima do solo coberto de pinheiros, esquilos e fontes d’água. Alexandria de livros. Parte do saber acumulado disponível para que o homem se torne bom, feliz, e não precise matar.
Bão!
Hora de literatura brasileira para jovens atentos e curiosos. Bão! O que é o sertão? Se não me perguntam eu sei; se me perguntam desconheço.
Sertão! – Jatobá!
Sertão! – Cabrobó!
– Cabrobó!
– Ouricuri!
– Exu!
– Exu!
O poeta Ascenso Ferreira, que cantava o sertão, nunca esteve na rica Califórnia de cowboys bang-bang, tomada ao México como reparação de guerra; conheceu apenas o sertão de cangaceiros lampiões e cidades perdidas nos confins de Judá.
O rapaz de Massachusetts estuda na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e lê em voz alta a tradução de uma novela do writer in residence brasileiro. Cursou física, toca saxofone e se desloca num skate. Precisa ganhar dinheiro. Todos precisam ganhar dinheiro, de preferência muito dinheiro, comprar uma picape a diesel e uma casa de três andares. O writer in residence não pode conversar com o aluno de Massachusetts nos corredores, por mais que o aluno deseje esclarecer metáforas. É politicamente incorreto. O writer conversa com os alunos em sua sala do Departamento, com a porta aberta.
– Professor, uma dúvida.
– Escreva para o meu e-mail.
– É apenas uma questão.
– Marque uma hora.
– OK!
– Recebo você na minha sala.
– OK! – Não esqueça o e-mail.
– OK!
Conversam.
Fala cerimonial como a arte cavalheiresca do arqueiro zen. Burocrática como a entrevista com um professor do Departamento. Marcada por e-mail, vários e-mails até os acertos finais do encontro de cinquenta minutos, numa cafeteria.
– Chá ou café, professor?
– Café.
– Pequeno, médio ou grande?
– Grande.
– O que dizia mesmo?
– Tudo acabou. A contracultura acabou.
– Açúcar?
– Mascavo.
– É verdade, o sonho acabou. Mesmo aqui na Califórnia. Não encontrei nada do que pensava encontrar.
– Temos obsessão pelo politicamente correto. Preferimos alface à carne.
O carrilhão de Berkeley desgasta o tempo e as engrenagens do meu inglês enferrujado, cheio de palavras que não se ajustam às do professor do Departamento. Felizmente me distraio com um casal. Acaba de entrar, as mochilas sobrecarregadas de livros, notebook e iPod. Será que namoram? Ele puxa a cadeira e senta; ela põe a bolsa pesada no chão. Os dois são bonitos, um orgulho de Deus e do presidente Bush.
Mas não trocam beijos de cinema. Apenas os gays de San Francisco trocam beijos explícitos, no bairro do Castro. O rapaz e a moça sentam em lados opostos da mesa de café. Cada um ajusta o iPod nas orelhas e abre o laptop. Preferem nunca se tocar. Sozinhos no mundo, ligados pelos canais cibernéticos.
– Como as pessoas começam um namoro aqui?
O professor não compreende a pergunta, ou finge não compreender. É tabu como os assassinatos nas escolas; constrange como tocar em alguém por acaso. O corpo é sagrado na Califórnia, todos possuem seguro saúde. Os estudantes universitários se fotografam nus e editam revistas com subsídio público. As fotos não devem passar sensualidade. Os estúdios filmam pornografia sadomasoquista, na cidade de San Francisco. Pagam os direitos trabalhistas dos rapazes e moças importados do Leste Europeu e da América Latina. Os instrumentos usados nas sessões de sadomasoquismo são cuidadosamente esterilizados. Geram-se empregos, seguros são pagos e o capital circula.
Os corpos se defendem de assédios e toques ao acaso.
– Sorry.
Felizmente se passaram os cinquenta minutos do encontro. No dia seguinte será a conferência e a leitura pública de um conto do writer, na biblioteca do Departamento. Agora ele caminha pela Telegraph Avenue, alegre com o aparente caos. Atravessa um pátio que leva aos departamentos, onde são permitidas manifestações políticas. Compra maçãs e tangerinas sem agrotóxicos, numa feirinha improvisada.
Fez frio desde que chegou, mas o dia luminoso de hoje parece o Brasil. Rapazes tiram as camisas e meninas usam saias curtas. Andam apressados como cavalos a galope. Só ele não tem quase nada o que fazer. Gasta o tempo caminhando, sem vontade de retornar para casa. Toma outro café, retarda o passo. Não voltará ao Departamento, onde assiste ao espetáculo dos alunos sentados nos corredores, esperando falar com seus mestres. Evita observar o empenho de todos em parecer felizes e eficientes. São pessoas ocupadas. Criam o que ninguém parece capaz de criar no restante do planeta. Numa ordem absoluta que vez por outra se fragmenta.
Os tiros.
Alguém enlouquece e decide instalar o caos.
Ronaldo Correia de Brito dramaturgo, escritor, médico e psicanalista. Autor de Faca (com o qual foi um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2004), Pavão misterioso (Prêmio Zilka Salaberry 2007 de teatro infantil) e Livro dos homens. Em 2009, seu Galileia foi o vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura.
Republicar