No início do século XVIII, nos aldeamentos das Missões Jesuíticas da bacia do rio da Prata, território hoje dividido entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai, o jesuíta Buenaventura (ou Boaventura) Suárez (1679-1750) tinha um profundo interesse nos fenômenos celestes, mas enfrentou dificuldades para ser um astrônomo. Como a Companhia de Jesus, na Espanha, não enviava equipamentos de medição e observação, ele construiu seus próprios telescópios e fez observações consideradas consistentes por especialistas em centros científicos europeus dotados de aparelhos muito melhores.
Suárez era da elite criolla da região, filho de uma bisneta do conquistador espanhol Juan de Garay (1528-1583), fundador de Santa Fé, atualmente na Argentina, onde ele nasceu. Estudou no colégio jesuíta da cidade, ingressou na Companhia de Jesus aos 16 anos e, em seguida, na Universidade de Córdoba, também em território argentino. Nessa época, além de se dedicar à filosofia e à teologia, entrou em contato com as ciências exatas e se tornou um matemático e astrônomo autodidata.
Ele observou o primeiro eclipse lunar, a olho nu, em 1700, em Corrientes, próximo da divisa da Argentina com o Paraguai. Ordenado padre em 1704, Suárez foi para as missões jesuíticas nas terras dos Guarani. As 30 missões ocupavam uma área correspondente atualmente ao sul do Paraguai, à província argentina de Misiones e ao oeste do estado do Rio Grande do Sul.
O jesuíta astrônomo construiu sua base em San Cosme y Damián, no atual Paraguai, e fez observações lunares e solares nas missões durante quase cinco décadas. “Seu trabalho científico servia aos interesses das Missões, por exemplo, ao estabelecer as datas de festas móveis no calendário, como a Páscoa”, diz o historiador da ciência Miguel de Asúa, da Universidade Nacional de San Martín, na Argentina. “A astronomia de Suárez tinha uma finalidade religiosa e colaborava com o processo de difusão do cristianismo.”
Em San Miguel Arcanjo, atualmente no município gaúcho de São Miguel das Missões, Suárez registrou dois eclipses lunares, um em 1728 e outro, com um telescópio refrator (de tecnologia simples, com duas lentes convexas) de 3 metros (m) de comprimento, em 1747. Nesse mesmo ano e com o mesmo telescópio, na missão de Santa Maria la Mayor, na atual Argentina, observou outro eclipse lunar. Os registros de 1747 foram publicados na Philosophical Transactions, revista científica da Royal Society, a academia de ciências britânica, em 1749 e 1750.
Mais importantes são suas observações sistemáticas das quatro maiores luas de Júpiter, descobertas pelo matemático italiano Galileu Galilei (1564-1642) e já de amplo conhecimento no século XVIII. Com um relógio ajustado pela posição do sol observada com um quadrante, um aparelho astronômico rudimentar, a medição de eclipses dos satélites jovianos, de acordo com um método desenvolvido pelo próprio Galileu, era usada para encontrar a diferença da longitude entre o local de observação e um local de referência no globo com longitude conhecida, como hoje é o meridiano de Greenwich, em Londres. “Suárez usou o método mais preciso e, ao mesmo tempo, exequível em sua época”, reconhece o astrofísico Oscar Matsuura, professor aposentado da Universidade de São Paulo e organizador do livro História da astronomia no Brasil (Cepe, 2014).
Nos 13 anos em que viveu em San Cosme, o jesuíta observou 147 eclipses de satélites de Júpiter e usou essas informações para estabelecer a longitude de todas as 30 missões. O astrônomo sueco Pehr Wilhelm Wargentin (1717-1783) usou dados colhidos por Suárez em seu artigo publicado em 1748 sobre a lua Io, o mais interno dos satélites galileanos de Júpiter.
Seu conhecimento de matemática lhe serviu também para elaborar lunários – compêndios de predições astronômicas como fases da lua e eclipses lunares e solares. “O lunário era importante para a organização da vida nas missões”, diz o historiador argentino Carlos Daniel Paz, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. “Era uma forma de organizar o tempo das missões e orientar melhor os ciclos da agricultura.”
As predições de eclipses, fases da lua e datas festivas projetadas para cada ano dos 100 anos seguintes foram reunidas no livro Lunario de um siglo, publicado em Lisboa em 1740. Na introdução, ele lamenta que as Missões não tivessem instrumentos de observação astronômica por “não florescer [nessas províncias] o estudo das ciências matemáticas”. A historiadora brasileira Maria Cristina Bohn Martins, da Unisinos, confirma: “Ao contrário do que se possa imaginar, as Missões não eram ricas e importavam apenas o que era essencial. Livros e instrumentos científicos eram muito caros e demoravam meses para chegar ao destino”.
Ele fez seu telescópio nas próprias Missões, com o que tinha à mão. “Os jesuítas eram excelentes artesãos e geralmente tinham oficinas especializadas”, afirma o historiador alemão Karl Heinz Arenz, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Segundo ele, os missionários procuravam produzir nas próprias missões tudo de que precisavam, como equipamentos agrícolas, culinários ou musicais. “O vidro de qualidade suficiente para produzir lentes para telescópios era de acesso restrito, porque tinha de ser comprado via Buenos Aires ou Assunção”, esclarece o historiador Artur Henrique Barcelos, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul.
O mais provável é que ele tenha construído as lentes a partir de materiais locais. Havia cristais de quartzo em abundância no Chaco paraguaio, e o conhecimento indígena das rochas pode ter dado a Suárez cristais muito transparentes que, cuidadosamente polidos, poderiam substituir as lentes de vidro. O historiador argentino Guillermo Furlong (1889-1974), que fez a primeira pesquisa histórica profissional sobre Suárez, encontrou documentos com relatos de instrumentos usados na fabricação de lentes na missão de São Borja, no atual Rio Grande do Sul, logo após a expulsão dos jesuítas das colônias espanholas em 1767.
Construir o tubo – ou corpo – dos telescópios foi menos complicado, já que, segundo Barcelos, os indígenas tinham muita habilidade em marcenaria e carpintaria. Os telescópios, mesmo os maiores, podem ter sido feitos de madeira ou de metal. Em algumas missões, Suárez e os indígenas fundiam sinos e fabricavam instrumentos musicais, como tubos de órgão. “Muitas crônicas jesuíticas destacam a capacidade dos Guarani de fazer relógios e astrolábios como os europeus”, relata Asúa. Impulsionadas pela astronomia de Suárez, as Missões produziram relógios de sol, relógios mecânicos, globos terrestres e celestes, perdidos após a expulsão dos jesuítas das terras espanholas em 1767.
Suárez e os Guarani fabricaram oito telescópios, com comprimento que variou entre 2,3 m e 9 m. Para operar os instrumentos, eram necessárias uma base plana e uma posição privilegiada, como uma torre. Ele fez observações da torre da igreja de Assunção, mas não há documentos descrevendo como ele fixou e operou os instrumentos. “A própria montagem mecânica de um telescópio não é nada trivial”, diz Matsuura.
Rede mundial de astrônomos
Para construir os telescópios, Suárez baseou-se em informações que circulavam por meio de cartas entre jesuítas e astrônomos espalhados pelo mundo. “O religioso se correspondia com astrônomos da América e da Europa”, diz Asúa. Segundo o pesquisador, o jesuíta trocava cartas, por exemplo, com o matemático peruano Pedro Peralta y Barnuevo (1663-1743) em Lima, no Peru, e o jesuíta germânico Nicasius Grammatici (1684-1736) na Baviera e depois na China. Wargentin obteve os dados de Suárez sobre as luas de Júpiter pelas mãos de seu compatriota sueco Anders Celsius (1701-1744), que, por sua vez, recebera de Grammatici os resultados das observações feitas nas Missões – Celsius se tornou mais conhecido por ter criado a escala centígrada de temperaturas, que recebeu seu nome. Já Suárez recebia de Grammatici dados de longitude e resultados de observações astronômicas, importantes para estabelecer, por comparação, a longitude das missões guaranis.
O jesuíta traduziu para o espanhol o livro Theorica verdadeira das marés, publicado em Londres em 1737. O autor é o médico judeu português Jacob de Castro Sarmento (1692-1762), um dos primeiros a introduzir a física newtoniana em Lisboa, antes de fugir da perseguição antissemita para Londres e se tornar membro da Royal Society. Era Sarmento quem lia as observações de Suárez nas reuniões científicas e abriu caminho para o jesuíta publicar seus trabalhos em várias edições da Philosophical Transactions. Sarmento recebia os dados por intermédio do médico carioca Mateus Saraiva (?-?), também membro da Royal Society e interessado em astronomia, com quem o jesuíta se correspondia.
A tradução indica, ainda, que Suárez ultrapassava o aspecto pragmático da astronomia como fazer calendários para atividades religiosas. É também um trabalho intrigante, porque a Companhia de Jesus não dava muita abertura para as novidades teóricas – a mecânica newtoniana ainda não era aceita nem ensinada.
“O ensino jesuítico para os nativos era escolástico, com conteúdos antigos e cristalizados, mas entre os clérigos era permitido ter curiosidade, tomar conhecimento das novidades e debatê-las”, conta Matsuura. “Era normal que uns aderissem às novidades e até as defendessem publicamente, enquanto outros, não.” Como exemplo, ele cita o matemático e astrônomo português José Monteiro da Rocha (1734-1819), educado pelos jesuítas no Colégio da Bahia, que utilizou a teoria newtoniana em seu texto Sistema físico-matemático dos cometas, de 1759.
Suárez não foi o primeiro astrônomo nem o primeiro jesuíta a fazer astronomia na América do Sul. Desde o século XVII, astrônomos, principalmente jesuítas, faziam observações com objetivos cartográficos pelo continente, em especial na Amazônia. Mas foi o primeiro indivíduo nascido na América que produziu conhecimento astronômico relevante para a nascente ciência moderna, com seus próprios meios, construindo os próprios instrumentos. “Sua história é importante para a compreensão de que a América do Sul não foi um mero apêndice na produção de conhecimento do século XVIII”, arremata Paz.
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