No início de março, o novo coronavírus deixou de ser apenas objeto de pesquisa e entrou na vida da minha família. Na terça-feira 10 de março, minha mulher, Liana, e eu jantamos com nossos filhos, nora, genro e netos para comemorar nosso aniversário de casamento. Na quinta-feira, Fernando, meu filho, começou a apresentar alguns sintomas e na manhã do dia seguinte procurou atendimento médico. Quando saiu o resultado positivo para o novo coronavírus, no dia 16, Liana e eu nos isolamos em casa preventivamente. Podíamos estar infectados e não queríamos correr o risco de transmitir o vírus. A epidemia ainda era bem inicial no país, e eu não esperava que fosse nos atingir naquele momento. Quando aconteceu, pensei: agora, o vírus bateu à minha porta, chegou à minha casa. Passei a viver a realidade da coisa, e não apenas a teorizar sobre o que estava ocorrendo lá fora.
Minha esposa e eu estamos bem. Não tivemos sintomas, fizemos o teste, que deu negativo, e seguimos com a vida, isolados em casa por 10 dias. Eu estava acompanhando a evolução da epidemia, desde o seu início, na China, e, com minha equipe, já havíamos redirecionado uma das linhas de pesquisa para desenvolver um composto candidato a vacina contra o novo vírus. Havia projetos para escrever e questões administrativas para cuidar. Aproveitei o tempo em casa para trabalhar nisso.
Meu trabalho não exige que eu esteja presencialmente no laboratório todo o tempo. Aliás, os pesquisadores mais novos e habilidosos pedem para que eu não me aproxime da bancada. Com o tempo, a gente passa a se dedicar mais a planejar experimentos, interpretar resultados e pensar em projetos, e perde um pouco a destreza manual para executá-los, embora, no ano passado, eu tenha voltado a realizar meus próprios experimentos, auxiliado de perto por um pesquisador em estágio de pós-doutorado, quando fiquei um ano como professor visitante na Faculdade de Medicina da Universidade Harvard.
Nos dias em que permaneci em casa, passei boa parte do tempo em frente ao computador falando com pessoas. O Skype e o Zoom se tornaram ferramentas fundamentais de trabalho para orientar a equipe a distância. No laboratório, algumas atividades não foram interrompidas. Fazemos testes de tipificação e de histocompatibilidade para a realização de transplantes, que não podem parar, e continuamos com a pesquisa para o desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus. Os médicos assistentes e residentes do serviço clínico que dirijo se associaram à força-tarefa que o Hospital das Clínicas está organizando para tratar os pacientes infectados com coronavírus.
Existem várias maneiras de se criar uma vacina, e hoje há cerca de 50 compostos candidatos a vacina contra o novo coronavírus em desenvolvimento no mundo, cada um usando uma tecnologia diferente. No início do ano, estávamos começando a trabalhar na aplicação de uma nova tecnologia para produzir a segunda geração de uma vacina contra a bactéria Streptococcus pyogenes, que provoca uma doença autoimune chamada febre reumática – a vacina de primeira geração está pronta e entra em teste clínico em breve. O ingrediente ativo da vacina é um peptídeo derivado da proteína do estreptococo que, no produto de segunda geração, será incorporado a uma estrutura semelhante ao envelope de um vírus: as chamadas partículas similares a vírus, ou virus-like particles (VLPs). Em laboratório, inserem-se nesse envelope proteínas do agente infeccioso contra o qual se deseja desenvolver imunidade. Uma vantagem é que ele funciona como uma plataforma para vacinas para diferentes microrganismos.
Para desenvolver as VLPs, trouxemos para o grupo o jovem pesquisador Gustavo Cabral de Miranda, que teve uma boa experiência na área durante sua passagem pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, e pela Universidade de Berna, na Suíça. Junto com ele, chegou a epidemia e decidimos redirecionar o desenvolvimento da vacina para o coronavírus. Atualmente estamos construindo as VLPs com proteínas das espículas, as estruturas que recobrem o vírus, para iniciar os testes em animais nos próximos meses. Acreditamos que essa estratégia deverá desencadear uma resposta imune mais forte e duradoura do que aquelas que usam isoladamente proteínas do vírus ou material genético viral. Além disso, as VLPs são mais seguras do que vacinas que usam o vírus completo, ainda que atenuado. Como elas não contêm material genético do vírus, não há o risco de que se multipliquem depois de injetadas no organismo.
É importante para um país como o Brasil, com quase 210 milhões de pessoas, tentar desenvolver sua própria vacina. Existem alguns produtos – e a vacina é um deles – que são de proteção da população e devem ser de interesse do Estado. Ter uma vacina nacional vai nos liberar de ter de comprar do exterior. Embora existam vários candidatos a vacina em desenvolvimento contra o novo coronavírus, apenas dois ou três deverão funcionar bem e gerar a proteção desejada. Precisaremos de uma vacina que produza uma resposta imunológica robusta e uma memória imunológica duradoura, para o caso de o vírus voltar a circular depois de alguns anos. Só depois que um vírus infecta uma grande proporção da população, de 50% a 60% das pessoas, sua capacidade de transmissão diminui. É o que chamamos de imunidade de rebanho. A epidemia atual, por exemplo, atingiu menos de 1% da população na China e teme-se que volte a infectar pessoas por lá.
Desenvolver uma vacina leva tempo. Estamos trabalhando sob o regime de fast track, no qual as agências regulatórias do mundo todo estão acompanhando as etapas de pesquisa de perto para que se consiga chegar a um produto com menos testes. Mesmo assim, depois de comprovada a segurança e a eficácia, é preciso fazer o escalonamento para produzir a vacina em grandes quantidades. Por esses motivos, não deveremos ter uma vacina para a epidemia atual.
Depois de quase 10 dias em casa, terminei de escrever o que precisava. Nesta quarta-feira, dia 25, estava mais tranquilo e fui ao laboratório. Queria ver se estava tudo em ordem por lá.
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