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Simon Schwartzman

Simon Schwartzman: O crítico da ciência

Ex-presidente do IBGE analisa os impactos sociais das concepções provincianas da universidade brasileira

LÉO RAMOS

O sociólogo Simon Schwartzman está terminando mais um estudo sobre o estado, os impasses e as perspectivas da ciência brasileira. O primeiro – Um espaço para a ciência – resultou em um livro indispensável para entender como se constituíram os primeiros grupos de pesquisa do Brasil: A formação da comunidade científica no Brasil, publicado inicialmente em 1979, revisto e editado em inglês em 1991, e reeditado em português em 2001. No início da década de 1990 ele participou de um grupo que produziu um trabalho de repercussão internacional sobre as novas formas de produção do conhecimento – The new production of knowledge – The dynamics of science and research in contemporary societies, coordenado por Michael Gibbons – que mostrou que a ciência contemporânea nos países mais avançados tendia para o rompimento das barreiras entre a pesquisa acadêmica e a pesquisa aplicada, o mundo universitário, as indústrias e as agências governamentais, e também entre as disciplinas científicas tradicionais. Essa abordagem, que implica uma reconfiguração profunda da maneira pela qual as agências governamentais, indústrias, centros de pesquisa e universidades se organizam, pode ser a saída para muitos impasses do Brasil, como Schwartzman propôs em seguida em amplo estudo sobre as alternativas de política de ciência e tecnologia para o país. Seu trabalho mais recente é uma comparação entre 16 grupos e centros de pesquisa universitários na Argentina, Brasil, Chile e México que, de diferentes modos, combinaram trabalho científico de alta qualidade com aplicações efetivas de relevância econômica e social. Aos 68 anos, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), Schwartzman revê nesta entrevista a função da universidade, que poderia ser mais ativa à frente das inovações; redimensiona o papel das empresas; e valoriza as atribuições do governo, agente primordial no desenvolvimento científico e tecnológico desde que deixasse de ser simplesmente um financiador da oferta da pesquisa e assumisse o papel de usuário e solicitador de conhecimentos científicos e tecnológicos.

Quais as grandes lições desse trabalho que compara as estratégias de repasse de tecnologia adotadas em quatro países?
Ainda estamos na etapa de digerir todo esse material. Nos quatro países, em maior ou menor grau, houve importantes iniciativas de fortalecer a ciência acadêmica, através de sistemas de avaliação e premiação ao desempenho. O Brasil foi o país que avançou mais, com o trabalho da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior], que historicamente tem esse papel de estabelecer padrões, usar publicações científicas como critério de qualidade, avaliar os cursos etc. Isso permitiu que o país desenvolvesse um importante sistema de ensino de pós-graduação e pesquisa universitária, o mais avançado da América Latina, mas que agora, no entanto, começa a sentir os limites causados pela sua ênfase excessiva no modo 1, mais acadêmico, de trabalho científico. O México criou um sistema semelhante, através do Padrón Nacional de Posgrado, que se soma ao já estabelecido Padrón de Excelência para la Ciencia y Tecnologia do Conacyt, o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia de lá. O Chile e a Argentina têm sistemas menos desenvolvidos. O Chile criou um sistema universitário em que as universidades são mais impelidas a buscar recursos próprios. Elas têm de cobrar anuidades, não recebem o dinheiro todo do Estado, não importa se são públicas ou privadas. A Argentina é um pouco diferente porque não adotou, como o Chile, uma estratégia deliberada de buscar recursos externos de mercado, mas também não desenvolveu um sistema de apoio público tão forte quanto o Brasil e o México.

Em cada país, que exemplos o senhor destacaria?
No Brasil, o Departamento de Informática da PUC-Rio [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro]. É um grupo pioneiro, que participou dos projetos de criação dos primeiros computadores aqui. A PUC recebia dinheiro público, mas há vários anos não recebe e agora tem de buscar recursos no mercado. E faz isso a partir da competência científica que acumulou ao longo dos anos. Das instituições privadas no Brasil, talvez seja a mais avançada do ponto de vista de pesquisa científica e tecnológica, e dentro dela a área de informática talvez seja uma das mais notáveis. A PUC é bastante agressiva (no sentido americano e não brasileiro da expressão) nas iniciativas de buscar recursos, fazer convênios e funcionar como incubadora de empresas. Outro exemplo interessante é a Fundação Getúlio Vargas (FGV). O programa de pós-graduação em economia, um dos mais importantes do Brasil, tem um sistema de incentivos acadêmicos muito forte, e todos os seus professores são fortemente recompensados pela publicação de trabalhos em revistas internacionais de alto nível. Por outro lado, a FGV também capta recursos, através de outros setores, como o Instituto Brasileiro de Economia, e sobretudo através dos cursos de extensão, cujo reconhecimento vem em grande parte do prestígio da Escola de Pós-Graduação. Mas a FGV separa as duas coisas: quem está no programa de pós-graduação não precisa buscar recursos lá fora; quem busca recursos normalmente não está nesse programa. Podemos contrastar essa situação com a do Centro de Modelamento Matemático da Universidade do Chile. É um grupo de alto nível da área de matemática, que tem status de laboratório do CNRS [Centro Nacional de Pesquisa Científica] francês em Santiago. Eles fazem um trabalho aplicado de modelamento matemático em áreas que têm a ver com o lixiviamento do cobre, um processo de separação em que se usa um tipo de bactéria, e tem toda uma questão de modelos matemáticos sobre a variabilidade genética dessas bactérias. Conforme o desenvolvimento das bactérias, a produtividade pode ser maior ou menor. Do ponto de vista matemático, exige um trabalho de pesquisa nova, situada na fronteira entre a biologia molecular e a matemática. As aplicações são de muita importância, já que o Chile é um dos maiores produtores de cobre do mundo. A Codelco, Companhia Chilena de Cobre, é que financia o projeto. Eles estão, ao mesmo tempo, produzindo conhecimento científico de ponta e trabalho aplicado. Esse é o exemplo que estamos buscando, o casamento da pesquisa com a aplicação – uma coisa não é oposta à outra. Freqüentemente as pessoas da área acadêmica temem a situação de ter que buscar financiamento através de projetos com parceiros externos, como se isso levasse à perda de qualidade do trabalho acadêmico. Em alguns casos isso de fato ocorre, mas o caso do Chile é um bom exemplo onde não só não ocorre, como as duas coisas se alimentam.

Como eles conseguiram?
Primeiro, eles têm necessidade. Os recursos disponíveis lá não permitem que avancem muito sem buscar recursos externos. Ao mesmo tempo, eles mantêm um controle acadêmico sobre o trabalho. Não aceitam qualquer coisa, têm critérios próprios e o trabalho tem de ter um conteúdo intelectual de inovação. Perguntamos a um jovem pesquisador como conseguia combinar as duas coisas, o trabalho acadêmico e o trabalho aplicado, e ele respondeu: “A gente trabalha em dobro”. Um dos pontos em comum entre todos os casos é que eles têm de estabelecer regras próprias de relacionamento com o mundo não-acadêmico. E isso tem a ver com fluxo de dinheiro, com a forma como recebem e administram os recursos, com a autonomia na seleção das pessoas que vão trabalhar… Os pesquisadores desses grupos, e sobretudo seus líderes, são muito empresariais, estão sempre olhando para algo mais amplo, para um mundo que não é só o da pesquisa científica. Outra característica comum é a necessidade de uma liderança acadêmica forte. É o caso de um grupo de química da Universidade Estadual de Campinas [Unicamp], dirigido pelo Fernando Galembeck, uma pessoa com uma formação científica muito boa e uma longa experiência de trabalho aplicado e uma série de patentes.

Os outros países também se preocupam com patentes?
Em poucas ocasiões esse tema apareceu como algo importante. É um paradoxo, porque se imagina que as patentes seriam a culminância da pesquisa aplicada de interesse industrial. Um dos problemas centrais é o processo de registro e sobretudo os custos de manutenção e defesa das patentes. Se alguém usar sem pagar ou registrar patente semelhante, é preciso entrar na Justiça para garantir esse direito, na Europa, Estados Unidos ou Ásia, conforme for o caso. O custo de uma patente efetiva pode chegar a centenas de milhares de dólares. Então, quem é que vai fazer a patente? Uma grande empresa, que tem um interesse comercial claramente definido. Sem um parceiro comercial forte, a patente não tem sentido. Como essas pontes para fora são débeis, as patentes não se transformam em produtos efetivamente rentáveis, ou muito raramente.

Comparativamente, como está o Brasil?
Academicamente, nas publicações, o Brasil avançou muito, mas não tanto do ponto de vista das aplicações, de uso da ciência. Em geral, nosso sistema de incentivos ainda é muito acadêmico. Veja o caso da Capes, uma instituição que todo mundo considera muito bem-sucedida, mas que está chegando ao limite do seu modelo: está montada para a valorização do trabalho acadêmico, tem muita dificuldade para apoiar áreas interdisciplinares e desestimula qualquer tipo de atividade em que exista um benefício que tenha a ver com resultados, com aplicações. A Capes tenta colocar todos os programas de pós-graduação no país dentro de um sistema unificado e coordenado de avaliação, mas este sistema já começa a se extravasar. O Brasil até hoje não conseguiu avançar com os mestrados profissionais, que são os que predominam em todo o mundo, porque eles não se sairiam bem nas avaliações da Capes. Por outro lado, existem muitos cursos de pós-graduação que, para fugir da sistemática da Capes, se denominam de extensão, ou MBA. A Capes é uma agência federal, mas as universidades estaduais são autônomas, não precisam ser avaliadas por ela, e podem entrar em convênios com instituições estrangeiras para cursos avançados e pesquisas sem passar pela avaliação da Capes. Além disso, temos instituições internacionais oferecendo cursos e titulações a distância, ou se instalando no Brasil… Temos de avançar, não no sentido de abandonar a pesquisa de qualidade, mas de criar incentivos mais fortes para que as instituições façam pontes, acordos de cooperação e busquem recursos adicionais. Inclusive porque a escala de recursos que uma instituição pode ter vai depender muito da própria capacidade de se valorizar ao mundo externo. Presidi o IBGE durante cinco anos e descobri que o IBGE, da mesma forma que o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], não aparecia como instituição nos levantamentos do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tinha um orçamento anual de cerca de US$ 500 milhões para as atividades correntes, fora recursos muito maiores nos períodos de recenseamento. Isto é ou não é gasto de pesquisa nas ciências sociais? A qualidade da pesquisa do IBGE poderia ser muito melhor, porque, na verdade, ele não está pensado como instituto de pesquisa, mas como uma burocracia de produzir dados, numa concepção antiga. Ele tem um quadro técnico de alto nível pequeno, ao lado de uma grande burocracia de milhares de funcionários espalhados pelo país. Com os mesmos ou menos recursos e uma reforma institucional adequada, ele poderia dar um salto e avançar muito na qualidade e relevância dos trabalhos que realiza em temas cruciais como pobreza, desigualdade, mercado de trabalho, migrações, saúde, contas nacionais, e tantos outros.

Na terceira Pintec [Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica], divulgada em julho, o número de empresas inovadoras não avançou muito entre 2003 e 2005; só uma em cada três das 91 mil empresas brasileiras tem alguma atividade de pesquisa e desenvolvimento. Ao mesmo tempo, um levantamento da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] mostra que 80% das empresas paulistas desconhecem as linhas de apoio à inovação e 70% trabalham com recursos próprios. Como entender esses resultados?
Uma queixa comum na área empresarial é que é muito complicado usar os fundos públicos de inovação. Como os procedimentos são lentos e não se sabe quando o dinheiro vai sair, muitas empresas acham que não vale a pena o esforço. Se o financiamento à inovação é muito subsidiado, existe o risco de as empresas buscarem o dinheiro e usarem para outros fins. Outra questão é o estímulo, a necessidade que as empresas têm de inovar. É uma questão que já não é mais da ciência, mas de economia. Algumas empresas competem no mundo em termos de inovação e eficiência, enquanto outras trabalham mais em quantidade, baixando os preços, porque conseguem mão-de-obra mais barata, e não têm como competir no nível da tecnologia mais alta. Também é importante dizer que no Brasil as principais empresas de alta tecnologia são multinacionais que têm seus laboratórios de pesquisa e desenvolvimento fora do Brasil. Muitas multinacionais estão espalhando centros de pesquisas pelo mundo, mas o Brasil não tem sido uma escolha porque falta pessoal, um ambiente adequado e, inclusive, segurança pessoal para os pesquisadores.

O senhor vê alguma perspectiva de mudar esse quadro?
Não espero muito e não acredito que o dinamismo virá do setor empresarial. O maior dinamismo deve vir do setor público, que tem uma capacidade de compra muito grande em áreas que requerem um trabalho intenso e permanente de pesquisa e inovação, como energia, clima, recursos naturais, meio ambiente, saúde, e toda a área social. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pesquisa social se desenvolveu muito fortemente associada às tentativas de implantação de políticas públicas dessas áreas. Isso já ocorre em parte no Brasil, e alguns setores do governo federal mantêm seus próprios centros de pesquisa, como a Embrapa, o Instituto Oswaldo Cruz, o Ipea, O Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais], o IBGE, o CTA [Centro Técnico Aeroespacial] – e outros contratam regularmente pesquisas para apoiar seus trabalhos.

O setor público está pedindo tanto quanto poderia?
Ainda não, e um dos problemas é que nem sempre o pesquisador vai dizer o que o contratante quer. O contratante que quiser alguém para avaliar e legitimar seus projetos vai escolher quem ele sabe que não vai dizer nada desagradável. Isso pode levar ao afastamento dos pesquisadores e centros de pesquisa mais independentes e o desenvolvimento de centros e grupos de pesquisa fazendo trabalhos muito financiados e de má qualidade e credibilidade. É necessário que os centros de pesquisa sejam realmente independentes e não totalmente controlados, direta ou indiretamente, pelos seus clientes, e que os processos de contratação sejam públicos e transparentes.

O que fazer para melhorar essa situação?
Em relação aos centros acadêmicos de pesquisa, é importante desenvolver sistemas de incentivos que favoreçam mais a aplicação e a busca de resultados, e não somente os critérios acadêmicos de qualidade. As fundações universitárias, que existem na USP e em muitas universidades públicas, são uma maneira interessante de criar pontes mais efetivas com o mundo externo. Há um movimento, que eu diria muito reacionário, que busca derrubar essas pontes, argumentando que a universidade pública não pode receber dinheiro fora do orçamento e o professor não pode ter complementação salarial. Deveria ser o contrário. Um professor competente na área de computação que possa fazer contribuições importantes não tem de ganhar o mesmo que um professor de história, geografia, sociologia, que é a minha área, ou de ciência política. O mercado é diferente. Ou a universidade dá a essas pessoas o mesmo tipo de vantagens que o mercado daria, ou vai perdê-las. Essas mudanças passam pela autonomia efetiva das universidades na área de pessoal e na de remuneração, que elas nem sempre têm como deveriam.

Como o senhor próprio escreveu em um artigo recente, a reforma universitária terminou antes de começar. Por que às vezes as perspectivas de mudanças parecem tão difíceis e remotas?
Você deve estar se referindo ao projeto de reforma de Tarso Genro, muito mal concebido, que provocou muitas reações e que parece na prática ter sido abandonado pelo ministro Fernando Haddad. Na época do governo Fernando Henrique Cardoso, o Paulo Renato Souza, como ministro da Educação, tentou mexer com as universidades públicas, dando-lhes mais autonomia e responsabilidade pela qualidade de seus resultados e uso adequado de recursos. Houve uma reação contrária muito forte e nada se fez. Na época do Itamar Franco, todos na universidade gostavam de Murilo Hingel, o ministro da Educação; ele sempre elogiava as universidades e não tinha nenhuma política para o setor. O atual governo faz também um pouco isso. O governo Lula tem uma política explícita de aumentar os recursos para as universidades públicas e ao mesmo tempo enfraqueceu o principal instrumento de avaliação que existia no setor, que era o antigo provão. As principais políticas do governo federal para o ensino superior têm sido na área da inclusão social, pelas cotas raciais e pelo ProUni, o Programa Universidade para Todos. Em ambos os casos a ampliação do acesso tem sido feita sem nenhuma política para garantir que os cursos são de qualidade e que os alunos terão condições efetivas de compensar suas deficiências de formação e completar seus cursos. Agora começa a haver alguma preocupação com isso, e algumas experiências interessantes, como a tentativa, em algumas universidades federais como a da Bahia e a nova universidade federal do ABC, de introduzir um formato semelhante ao do processo de Bologna europeu, que adia o momento de escolha profissional para os estudantes que entram no ensino superior. A universidade pública brasileira é pequena para as necessidades do país, custa muito caro em termos de gastos por estudante, não tem um sistema bem definido de controle de qualidade e subsidia muitos estudantes de classe média e alta que poderiam estar pagando pelos seus estudos. Mas quase 80% do ensino superior brasileiro é privado, com coisas boas e ruins, e não existem políticas positivas para o setor, somente a suspeita permanente de que ele é ilegítimo e não deveria existir. É preciso começar a discutir mais a fundo para que estamos financiando esse sistema todo, o que devemos esperar das universidades públicas, dentre as quais estão as que concentram a pesquisa, e qual o papel da educação superior privada. Os governos têm sido complacentes e preferem atender às demandas de curto prazo, sem criar problemas, a pensar num projeto a longo prazo.

Qual sua perspectiva?
Não vejo atualmente nenhum esforço sério em mexer nem na questão da pesquisa, nem do ensino superior. Para muitos pesquisadores, a idéia que têm sobre política científica se limita a pressionar para que o governo dê mais dinheiro para seus projetos. Mas dinheiro não é suficiente. Na Europa e em muitos países da Ásia está havendo um grande movimento para concentrar recursos de pesquisa em algumas universidades que possam atingir padrões internacionais de qualidade de pesquisa, inovação e formação, e funcionem como referência para as demais e ponte efetiva para a produção cientifica e intelectual do resto do mundo. No Brasil, a USP poderia ter esse papel, pelo seu orçamento e a massa de recursos humanos de qualidade que possui. Mas, se olharmos por exemplo o famoso ranking das universidades publicado pela Universidade de Jiao Tong na China, a USP, que é a melhor da América Latina, aparece no grupo na posição 102-120, ou seja, não tem presença internacional. Não existe hoje, no Brasil, nenhuma política deliberada de excelência, nem do governo de São Paulo, nem do governo federal, e há muitos que pensam que falar em excelência e competição por qualidade não são coisas politicamente corretas. As universidades de excelência atraem talentos, recursos e conhecimentos de toda parte, e criam circuitos internacionais de contatos e prestígio para seus países. Por que instituições como a USP ou a Unicamp não abrem mais seus programas de pós-graduação para alunos de outros países da América Latina? Uma das razões é que, como são públicas, não poderiam cobrar dos alunos. Nem sempre também se sabe como selecionar esses estudantes, porque a seleção é toda em português e formal. O sistema todo é muito rígido. A dimensão internacional fica capenga porque temos uma concepção muito provinciana e fechada do que é uma universidade.

Por favor, conte agora de sua própria formação e de como construiu essa visão de ciência brasileira e de ensino superior no Brasil.
Me formei em Belo Horizonte, em 1961, e passei dois anos no Chile na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, a Flacso. A maioria dos professores eram europeus, e os estudantes vinham de toda a América Latina. Foi o meu primeiro contato com a sociologia moderna. Voltei ao Brasil no início de 1964, mas fui preso, acusado do crime de subverter a mente dos jovens. Quando fui para o Chile eu tinha um vínculo como pesquisador com a UFMG e na volta me deram a responsabilidade de ensinar ciência política. Dei duas aulas e fui preso. Antes de viajar tinha participado do movimento estudantil em 1959 e 1960.

Quanto tempo ficou preso?
Um mês, mais ou menos. Naquela situação de não saber o que ia acontecer, se ia ter processo… Quando me soltaram, um mês depois saí do país e fui para a Noruega. No Chile tive como professor o Johan Galtung, um pesquisador norueguês que me convidou para trabalhar com ele em um instituto que ele dirigia em Oslo. Passei um ano lá e outro ano na Argentina. Depois fui para os Estados Unidos fazer o doutorado em ciência política. Até aí os meus temas eram mais de política, partidos políticos e sistemas políticos, sistemas internacionais. Fiz doutorado em Berkeley, e a minha tese foi publicada com o título São Paulo e o Estado nacional, revista mais tarde e publicada como Bases do autoritarismo brasileiro. Nos anos 1970 eu estava trabalhando na FGV, no Iuperj [Instituto de Pesquisas em Ciências Sociais no Rio de Janeiro], e fui para a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Foi aí que comecei a me envolver com ciência e tecnologia. Foi lá que surgiu a idéia de fazer a pesquisa histórica sobre a ciência brasileira, que depois saiu em livro, Formação da comunidade científica no Brasil. Com os recursos da Finep, consegui uma equipe boa e entrevistamos cerca de 70 pesquisadores e líderes das principais instituições de pesquisa do Brasil, por várias horas. Na época trouxemos um dos principais especialistas internacionais na área de estudos sobre ciência, o sociólogo Joseph Ben-David, com quem discutimos longamente nosso projeto e que nos deixou um texto muito interessante sobre a ciência brasileira, disponível no meu site (http://www.schwartzman.org.br/simon/). Foi uma oportunidade olhar a literatura internacional sobre história e sociologia da ciência, e fazer um amplo levantamento sobre o que já existia sobre isso no Brasil. Na época havia muito ressentimento, desconfiança e hostilidade entre os cientistas e o regime militar. Mas José Pelúcio Ferreira, então presidente da Finep, tinha uma visão completamente distinta e muito interesse em trazer os cientistas exilados de volta para o Brasil e fortalecer suas instituições. Por outro lado, havia já uma discussão sobre o tema da ciência aplicada ou não-aplicada e a autonomia do trabalho científico. A visão do Pelúcio, como economista, era muito aplicada. O próprio desenho que se fez naquela época do setor de C&T, com forte influência dele, era assim. O CNPq, que era um órgão ligado à Presidência da República, se transforma em Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e, junto com a Finep, passa para o Ministério do Planejamento. Havia uma idéia de que a ciência faz parte do planejamento, e que, assim como se deve planejar a economia, se deveria também a ciência.

O senhor gostava desse enfoque?
Não. Eu nunca acreditei no planejamento da economia e muito menos no planejamento da ciência. Para se ter ciência é preciso uma comunidade científica livre. Deve ser livre, acadêmica, tem de ter instituições com independência. Ben-David mostra bem, em seus estudos, como foi assim que a ciência ocidental se desenvolveu. Além dele, Robert Merton, um dos principais nomes da sociologia norte-americana, havia desenvolvido a idéia da ciência como uma comunidade livre de scholars, que se contrapunha às tentativas de atrelar a ciência aos regimes políticos que, nas décadas de 1930 e 40, tentaram amarrar a ciência aos regimes autoritários da Alemanha nazista, antes, e à União Soviética stalinista, depois. Esses autores se opunham à tradição que se pode chamar bernalista, de John Desmond Bernal. Bernal era um inglês que desenvolveu pesquisas originais na área de cristalografia e contribuiu ativamente para o esforço de guerra de seu país contra a Alemanha. Era fascinado pela União Soviética, que citava como um grande exemplo de como se coloca a ciência a serviço da sociedade. Nisso ele seguia a tradição de Jean Perrin, físico e Prêmio Nobel francês, responsável, junto com Irène Joliot-Curie, pela organização do sistema científico francês no período do Froint Populaire na década de 1930. Para eles, a ciência tem de estar dentro do Estado, a serviço do planejamento, e ajudar a organizar a sociedade de acordo com critérios científicos.

São duas visões radicais...
E também totalitárias. Bernal tem um trabalho famoso, Science in history (Ciência na história), em quatro volumes. Em três ele faz uma história da ciência muito interessante e o quarto volume é dedicado a mostrar como a União Soviética era a culminação da ciência social aplicada. Muitos cientistas brasileiros famosos, principalmente da geração formada nos anos 1940 e 50, adotaram as idéias de Bernal e Perrin e militaram ativamente no movimento comunista, o mais conhecido sendo Mário Schenberg. Nunca vi textos em que esses cientistas discutissem essas coisas expressamente, eram coisas que consideravam naturais. A visão deles da ciência é essa visão socrática, “o cientista é que vai governar”. O conflito que eles tiveram com os militares era menos um conflito sobre o papel e o lugar da ciência na sociedade e mais sobre o reconhecimento do papel que deveriam ter nos sistemas de planejamento. O objetivo da pesquisa sobre a comunidade científica brasileira, refletida no próprio título do livro, era recuperar a importância da noção de uma “república da ciência” autônoma, mas nem por isso isolada e indiferente ao que ocorre na sociedade. A ciência pode ser útil, deve ser importante e aplicada, mas temos de partir de uma ciência com liberdade, com autonomia, com capacidade de ter universidades independentes. Os economistas sempre olharam a ciência do ponto de vista produtivo. A visão mais sociológica, de como é que se organiza a ciência, como é que se criam as instituições, os economistas não tinham. Nos anos 1970 havia uma intenção genuína de trazer os cientistas de volta, de fortalecer a pós-graduação e a pesquisa. Em 1979, com o fim do governo Geisel, Pelúcio deixou a Finep e eu saí também. Em 1985, com a abertura política, participei de uma comissão presidencial que deveria propor uma reformulação do ensino superior brasileiro, e que lançou as primeiras idéias sobre avaliação e autonomia efetiva das universidades, propostas controversas e rapidamente arquivadas pelo governo Sarney. Ao final dos anos 1980 fui convidado para participar, junto com Eunice Durham, da criação do Núcleo de Pesquisas de Ensino Superior na USP, quando José Goldenberg era reitor. Nessa época comecei a estudar mais o que estava acontecendo no ensino superior e na pesquisa fora do Brasil. É dessa época minha participação no grupo que elaborou o livro sobre A nova produção do conhecimento e a coordenação da equipe responsável pela proposta de uma nova política científica e tecnológica para o Brasil, cujas propostas, como muitas vezes acontece, jamais chegaram a ser adotadas pelo próprio Ministério da Ciência e Tecnologia que havia financiado o estudo. Em 1994 assumi a presidência do IBGE, onde fiquei cinco anos. Foi aí que comecei a me inteirar e envolver mais com as questões da desigualdade social, pobreza e políticas sociais, assim como com os problemas da educação básica, que são hoje os temas que mais me interessam.

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