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Eletrônica

O desafio do Sol

Nova geração de células flexíveis tenta superar dificuldades para aumentar o uso de energia fotovoltaica no mundo

Em março deste ano foi inaugurada no deserto Madinat Zayed, nos Emirados Árabes Unidos, uma grande central de geração de energia solar com capacidade de 100 megawatts, quantidade suficiente para abastecer 20 mil residências. O empreendimento, instalado em uma das regiões mais ensolaradas e quentes do mundo, é o maior do gênero a empregar essa fonte de energia, considerada renovável, abundante e não poluente. A produção de energia solar ou fotovoltaica cresce no globo a um ritmo acelerado, em torno de 50% por ano, mas sua presença na matriz energética mundial ainda é muito pequena, de cerca de 1% – no Brasil, representa apenas 0,01% do total. Segundo a Agência Internacional de Energia, a geração fotovoltaica de todas as usinas do mundo atingiu 67 gigawatts (GW) em 2011, o equivalente a cinco hidrelétricas de Itaipu. Um dos principais obstáculos para a ampliação do uso dessa fonte energética é o alto custo dos painéis solares e demais equipamentos que compõem o sistema.

Para superar essa dificuldade, universidades, institutos de pesquisa e empresas de vários países, inclusive do Brasil, trabalham no desenvolvimento de uma nova linha de células solares com custo de produção inferior ao das lâminas de silício usadas atualmente nos módulos convencionais. Conhecidas como células solares de terceira geração – as de silício foram as de primeira geração e as de filmes finos inorgânicos, de segunda –, elas são principalmente de dois tipos: orgânicas (OPV, sigla em inglês para organic photovoltaic) ou sensibilizadas por corantes (DSSC, acrônimo em inglês de dye-sensitized solar cell). As células OPV levam esse nome porque usam materiais semicondutores à base de carbono para fazer a conversão de energia luminosa em elétrica. Já as DSSC funcionam através de uma reação química de oxidação-redução. Também chamadas de híbridas, pois são feitas de materiais orgânicos e inorgânicos, elas são construídas entre dois vidros e contêm um eletrólito líquido, normalmente uma solução composta por um sal de iodo. As células ativadas por corantes absorvem a radiação solar, permitindo o fenômeno da separação das cargas (positivas e negativas) para a produção de energia. Nem as células orgânicas nem as híbridas são comercializadas em larga escala no mundo. Estima-se que serão necessários pelo menos mais três anos para que isto ocorra.

Várias novas tecnologias em células solares têm sido pesquisadas nos últimos anos com o objetivo de encontrar uma alternativa mais eficiente às células baseadas em silício cristalino. “De modo geral, as células de terceira geração, nas quais também se incluem as feitas com pontos quânticos [minúsculos cristais semicondutores], multijunção e portadores quentes [de carga altamente energética], fazem um melhor aproveitamento dos fótons que incidem sobre elas”, diz o pesquisador Fernando Ely, do Grupo de Eletrônica Orgânica do Centro de Tecnologia da Informação (CTI) Renato Archer, de Campinas. O CTI Renato Archer tem pesquisas avançadas para o desenvolvimento de células solares de terceira geração. Seus pesquisadores já conseguiram fazer vários protótipos de células flexíveis, com 60 por 40 milímetros de área, usando pontos quânticos, e estão trabalhando em seu aperfeiçoamento. “Além de enfrentar as principais limitações que impedem a comercialização desses dispositivos, nosso grupo busca gerar propriedade intelectual para, posteriormente, transferir esse conhecimento para o setor produtivo. Nossas atividades incluem, ainda, estudos para aumentar a eficiência de conversão das novas células solares por meio do uso de aditivos funcionais, o desenvolvimento de novas técnicas de fabricação por processamento contínuo – a chamada técnica roll-to-roll – e a produção de eletrodos transparentes à base de nanotubos de carbono.” As atividades no CTI Renato Archer são apoiadas pela FAPESP, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

As empresas Dye-Sol, da Austrália, e G24 Innovations, da Grã-Bretanha, são líderes em desenvolvimento de células sensibilizadas por corantes (DSSC). Já a companhia Heliatek e o Instituto Fraunhofer para a Pesquisa Aplicada de Polímeros (IAP), ambos da Alemanha, encabeçam as pesquisas na área de OPV. No Brasil, duas empresas trabalham no desenvolvimento das células de terceira geração. A FlexSolar, com sede em Joinville, no interior de Santa Catarina, assinou em 2012 um acordo com o IAP para desenvolver células solares orgânicas flexíveis. O projeto, no valor de € 4,8 milhões – cerca de R$ 12,5 milhões –, prevê que a produção, num primeiro momento, será concentrada no país europeu, mas depois de dois anos os dispositivos deverão ser fabricados também em Joinville. Segundo comunicado divulgado no site do Instituto Fraunhofer, a ideia do projeto conjunto surgiu durante a visita do presidente da FlexSolar, Bernard Schmidt, a uma feira internacional de eletrônica orgânica em Munique, em junho do ano passado. Quatro meses depois, o entendimento foi assinado entre as partes. A empresa é subsidiária da Cromotransfer, também de Joinville, que há 15 anos desenvolve tecnologias de impressão para os setores têxtil e de embalagem. A FlexSolar foi criada para transferir esse know-how para a área de fotovoltaicos, já que a fabricação das células solares orgânicas utiliza métodos de impressão similares aos da indústria gráfica.

A outra companhia nacional, chamada Tezca Células Solares, está instalada no Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec). Criada no final de 2008, a start- -up já desenvolveu em laboratório vários protótipos de células DSSC, batizadas de TezcaFlex, e espera instalar ainda este ano uma planta-piloto. “No momento, estamos realizando testes de durabilidade em nossas células. Pretendemos trazer novos investidores para o negócio a fim de iniciar a fabricação em escala comercial até 2016”, afirma Agnaldo Gonçalves, um dos sócios fundadores da Tezca.  O objetivo do empresário é construir módulos solares flexíveis de baixa potência, com a espessura de uma folha de papel A4, para uso em equipamentos eletrônicos móveis como a bateria de telefones celulares, por exemplo. Para desenvolver a tecnologia, a Tezca conta com apoio da FAPESP, que financia um projeto Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), e do CNPq.

Vantagens e desafios
A fabricação com baixo consumo de energia e o reduzido custo de manufatura são as principais vantagens das células de terceira geração. Um termo muito usado na área de energia é o chamado payback financeiro ou energético – ou seja, em quanto tempo o investimento se paga ou quanto tempo é necessário para produzir a mesma quantidade de energia que foi gasta na manufatura. “No caso dos painéis fotovoltaicos de silício cristalino, o payback energético é em torno de quatro anos, enquanto nos sistemas feitos de OPV o payback deve ser menor que um ano”, diz Ely. Outro diferencial dessas novas células é a possibilidade de fabricação de grandes painéis flexíveis, feitos de plástico ou tecido, através de métodos simples de impressão da indústria gráfica, permitindo a produção de módulos solares leves e dos mais variados tamanhos. Além disso, as células orgânicas e as sensibilizadas por corantes têm alta fotoconversão usando luz artificial, o que possibilita seu emprego em ambientes internos de escritórios, fábricas e casas.

Por serem leves, flexíveis e semitransparentes, o leque de aplicações das células OPV e DSSC é mais amplo do que o das gerações anteriores. Elas podem ser usadas para recarregar baterias de equipamentos eletrônicos de baixa potência, como telefones celulares, câmeras fotográficas e tablets. Também podem ser integradas em fachadas, janelas ou claraboias de edificações – aplicação conhecida como building integrated photovoltaics (BIPV) – ou ainda em roupas especiais, jaquetas e mochilas, permitindo que o usuário colete energia enquanto se desloca. “O Exército dos Estados Unidos tem um projeto de uso desses painéis nas roupas dos soldados e em tendas para dar carga em equipamentos eletrônicos ou prover iluminação”, afirma Ely. Outra ideia é usar as OPVs no mobiliário urbano, como pontos de ônibus, como fonte de energia para displays de propaganda e sinalização.

Para que tudo isso se torne realidade, no entanto, dois grandes desafios ainda precisam ser superados: a baixa eficiência e o reduzido tempo de vida útil dos novos dispositivos. A taxa de conversão da energia luminosa em energia elétrica – relação entre a quantidade de fótons que incide sobre a célula e a quantidade de energia elétrica convertida – das células de terceira geração ainda é muito baixa. O índice de eficiência máximo, porém não certificado, já obtido para as células OPV foi de 12,1% e para as DSSC, de 11,4%. Nas células feitas de silício cristalino a eficiência recorde é duas vezes maior, de 24,7%. Esses valores se referem a células pequenas, de aproximadamente 1 cm2 de área – em painéis de grande área, a eficiência de conversão cai fortemente. O baixo rendimento das células orgânicas se explica pela não absorção de luz na região do infravermelho, com comprimento de onda superior a 900 nanômetros, e por perdas de energia acarretadas por recombinação de cargas elétricas. “A melhor forma de enfrentar o problema é partir para o desenvolvimento de novos semicondutores orgânicos ou sistemas compósitos com nanomateriais”, diz Ely.

Já a reduzida vida dessas células é resultado da presença de oxigênio ou umidade dentro delas. Com a incidência da luz, especialmente a parcela ultravioleta (UV), a presença de oxigênio e umidade dá origem a elementos indesejados que reagem com os semicondutores orgânicos alterando a sua estrutura química e funcionalidade. A solução, nesse caso, é fabricar as células OPV em atmosfera inerte e, posteriormente, encapsulá-las com filmes impermeáveis. Com relação às DSSC, os problemas são relacionados à confiabilidade, à durabilidade e ao processo de engenharia na construção. Para superá-los, o caminho é substituir o eletrólito líquido para evitar vazamentos e alguns materiais de alto custo usados em sua montagem, como o catalisador de platina e o rutênio, um dos elementos químicos presentes no corante.

Para que os painéis OPV se tornem comercialmente viáveis, acredita Ely, é preciso atingir um nível de eficiência de conversão de 10% e 10 anos de vida útil. Com esses números, o custo do watt seria em torno de US$ 0,10. Não há dados confiáveis do custo de energia fotovoltaica no Brasil, mas na Alemanha, um dos países mais avançados no uso dessa energia, o valor do watt, considerando-se um painel de silício cristalino com eficiência entre 12% e 14%, é de US$ 1,50. “O Brasil tem grande potencial de uso da energia solar. Por isso é importante dominarmos essa tecnologia. Como ainda não há nada comercial na esfera das células solares de terceira geração, vejo que esta é uma grande oportunidade para o país consolidar propriedade intelectual, fabricar e comercializar esses dispositivos”, afirma Fernando Ely.

Projetos
1. Arquiteturas orgânicas semicondutoras para dispositivos eletrônicos (nº 2006/57399-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Coord. Fernando Ely/CTI Renato Archer; Investimento R$ 299.265,87 (FAPESP).
2. INCT Namitec – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Micro e Nanoeletrônicos (Proc. FAPESP nº 2008/57862-6 e Proc. CNPq nº 573738/2008-4); Modalidade Projeto Temático (FAPESP) e Chamada Institutos Nacionais de C&T (CNPq);  Coord. Jacobus W. Swart/CTI Renato Archer; Investimento R$ 4.251.055,34 (FAPESP) e R$ 5.693.114,45 (CNPq).

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