Como uma das curadoras da 3ª Bienal da Bahia, a comunicóloga paulista Ana Mattos Porto Pato entrou pela primeira vez no Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima, em Salvador, no dia 8 de março de 2014. O museu ocupava uma sala do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em um sobrado em estilo neoclássico da Secretaria de Segurança Pública, e tinha sido fechado para visitação pública nove anos antes. Em dezenas de caixas de papelão e isopor, Ana e a equipe do Museu de Arte Moderna da Bahia, responsável pela organização da Bienal, encontraram fotografias, documentos e cerca de 500 peças, incluindo armas, objetos de arte popular, instrumentos médicos, roupas de cangaceiros e centenas de crânios, com escassas informações sobre as datas, autores e locais das coletas. As etiquetas de dois corpos mumificados informavam apenas que se tratava de uma “índia carajá” e de um “cafuso”.
“Estávamos diante de um museu da polícia e de uma história de dor, racismo e violência contra a população pobre e marginalizada”, ela relatou em um artigo de 2015 na Revista CPC, do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo (USP). Em setembro de 2017, ao rever essa experiência, ela comentou: “Objetos sagrados do candomblé apreendidos pela polícia estavam ao lado de fetos deformados, armas e drogas”. Ela examinou essa experiência em seu doutorado, concluído no início deste ano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Giselle Beiguelman.
A abertura das caixas foi mais um capítulo do debate sobre o que fazer com o acervo dos museus de antropologia criminal, que há alguns anos extrapola os espaços acadêmicos na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pesquisadores ligados a universidades argumentam que as coleções deveriam ser mantidas e expostas à visitação pública, enquanto movimentos sociais e familiares requerem a retirada dos remanescentes de pessoas próximas que permanecem em museus. De modo geral, o destino dos acervos com essas características continua incerto no mundo inteiro.
A antropologia criminal foi criada no final do século XIX pelo médico italiano Cesare Lombroso (1836-1909), que aplicava o determinismo biológico no campo criminal e assegurava que era possível identificar a propensão para a criminalidade por meio dos traços físicos. Médicos da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Pernambuco se apoiaram em suas propostas – que se mostrariam inconsistentes décadas mais tarde – para reforçar a ideia de degenerescência das raças, em vigor no início do século XX, segundo a qual o atraso do país era uma consequência da mestiçagem com negros e índios, considerados inferiores. Em São Paulo, o zoólogo alemão Hermann von Ihering (1850-1930), fundador e primeiro diretor do Museu Paulista, defendia o extermínio dos índios.
Em Salvador, o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), adepto de Lombroso, criou um museu na Faculdade de Medicina da Bahia para abrigar uma coleção de objetos que atestassem a inferioridade dos negros. Em 1905, um incêndio destruiu a coleção, que incluía a cabeça do cearense Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel, 1830-1897), líder da revolta de Canudos. Em 1958, um discípulo de Rodrigues, o médico alagoano Estácio Luiz Valente de Lima (1897-1984), reabriu o museu na Faculdade de Medicina. Por ser também diretor do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, Lima recebeu sete cabeças de cangaceiros do bando de Lampião mortos pela polícia em 1938 e as deixou expostas, durante décadas, com o argumento de que eram uma forma de identificar marginais. Após intenso debate, as famílias dos cangaceiros enterraram as cabeças em 1969. Em 2010, quando o museu já tinha sido transferido para o Instituto Médico Legal, a maior parte dos objetos de candomblé foi transferida para o Museu Afro, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como resultado de uma negociação que começou cerca de 10 anos antes.
Sepultamento
Em 2014, depois de desencaixotar o acervo, Ana propôs a um grupo de artistas selecionados para a Bienal que trabalhasse aqueles objetos. Em uma exposição no Arquivo Público do Estado da Bahia, o artista mineiro Paulo Nazareth deitou-se entre os crânios e fez cerimônias simbólicas de sepultamento dos dois corpos mumificados, que ele colocou em uma urna de madeira depois de orar um dia inteiro por eles. Quem entrasse na exposição veria a urna e o vídeo, mas não mais os corpos mumificados.
Os documentos administrativos do museu Estácio de Lima continuam no Arquivo Público, que os recebeu para a exposição de 2014. O acervo documental consiste em 403 documentos textuais, 697 iconográficos e oito negativos fotográficos, já organizados, que só poderão ser liberados para consulta pública após determinação da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, informou Teresa Mattos, diretora-geral do Arquivo. Segundo ela, a diretoria da Fundação Pedro Calmon (FPC), vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, encaminhou em fevereiro de 2017 um ofício à Secretaria de Segurança Pública solicitando a guarda dos documentos. O diretor-geral da FPC, Edvaldo Mendes Araújo, espera que o material seja liberado para consulta pública até novembro, mês da consciência negra, “para servir de exemplo da intolerância e da discriminação religiosa”, diz ele.
A direção do Departamento de Polícia Técnica da Bahia (DPT), por meio de uma nota da assessoria de comunicação, informou que reconhece a importância histórica dos documentos, entende a necessidade do acesso a eles e “ainda está avaliando a solicitação de permanência do acervo no Arquivo Público da Bahia”. As peças do acervo usadas na exposição no Arquivo Público voltaram em março de 2017 para o DPT, responsável pelo museu Estácio de Lima, que permanece fechado.
Manter ou devolver?
O antropólogo italiano Livio Sansone, professor da UFBA e um dos coordenadores do Museu Digital da Memória Africana e Afro-brasileira, critica o desmembramento do acervo, que, segundo ele, deveria ser mantido coeso e aberto à visitação pública como forma de promover debates sobre a segregação social e racial. “Os crânios dos cangaceiros e os objetos sagrados do candomblé apreendidos pela polícia trazem memórias dolorosas, mas temos de lidar com as contradições, em vez de apagar tudo”, recomenda. De modo mais amplo, ele ressalta, “precisamos de um plano museológico, para organizar as instituições, definir as metas e garantir a continuidade dos acervos”.
Como exemplo de possibilidade de ação, Sansone cita o Museu de Antropologia Criminal Cesare Lombroso, de Turim, na Itália. Criado por Lombroso em 1892 e fechado para o público em 1914, foi reaberto em 2011, com uma vasta coleção de crânios, máscaras mortuárias, fotografias e pedaços de pele de criminosos. “Os organizadores de hoje montaram um museu antirracismo, que discute os erros de uma teoria científica, mantendo as peças do acervo, sem repatriar nada”, comenta o professor da UFBA, que também é pesquisador do museu italiano. “Lombroso não era a favor do massacre de povos nativos ou do imperialismo nem acreditava que a mestiçagem poderia degenerar um povo. Ele não era tão simples quanto suas reinterpretações no Brasil”, diz ele.
O direito de posse dos museus etnográficos tem sido questionado em vários países. Com base em leis internacionais, a Organização para a Unidade da África resgatou em 2000 e enterrou em Botswana o corpo de um guerreiro de 27 anos morto em 1830 que tinha sido levado à Europa por um comerciante francês e permanecido em um museu da Espanha por 170 anos. Três museus de Seattle, Denver e Chicago, nos Estados Unidos, tiveram de devolver objetos e remanescentes de corpos a povos tradicionais do Canadá, dos quais tinham sido removidos. Por outro lado, “os museus podem ser muito úteis para os indígenas que sofreram processo de deculturação violenta, ações contra seus valores, suas tecnologias, seus conhecimentos”, observou o antropólogo João Pacheco de Oliveira, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), em um artigo de 2007 na revista Tempo. “O museu é um instrumento poderoso para inculcar e reforçar demarcações identitárias, recusando o preconceito e a invisibilidade com que tais coletividades são tratadas em outros contextos.”
Magia Negra
A historiadora de arte norte-americana Amy Buono, professora da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, Estados Unidos, considera o Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, na capital fluminense, um exemplo de “parábola para entender como a cultura material do Brasil se cruza com o poder institucional e a prática disciplinar”, como ela escreveu em um artigo de 2015 na revista Getty Research Journal. Criado em 1912 na antiga sede da polícia, o museu serviu de sala de aula para estudantes da corporação e foi aberto para o público na década de 1930. Como o Estácio de Lima, reuniu objetos considerados ilegais: armas, materiais de jogos, drogas, dinheiro falso, flâmulas nazistas e objetos de terreiros de candomblé.
As imagens, instrumentos musicais, cuias, búzios e outras peças religiosas formaram a Coleção de Magia Negra e foram tombados em 1938 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O destino dessa coleção, que não está em exibição para o público, também é incerto. Em junho deste ano, mães de santo, militantes do movimento negro, intelectuais e políticos lançaram a campanha Libertem Nosso Sagrado, por meio da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, para reaver aproximadamente 200 objetos colocados em uma coleção e em um museu que expressariam preconceito religioso.
Preto Amaral
“Não devemos desfazer os acervos dos museus, mas sim refazer a memória para mostrar os horrores que ainda vivemos”, sugere o historiador Paulo Fernando de Souza Campos, professor da Universidade Santo Amaro (Unisa), em São Paulo. No doutorado, ele resgatou a história do mineiro José Augusto do Amaral (1871-1927). Filho de escravos libertado pela Lei do Ventre Livre, sem emprego após desertar do Exército, Preto Amaral, como era chamado, foi preso em São Paulo, sob a acusação de ter assassinado e violentado sexualmente três adolescentes. O médico Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1998), diretor do hospital Juquery e criador da disciplina de psiquiatria na USP, “usou o caso de Preto Amaral para aplicar a teoria da degeneração das raças”, conta Paulo Campos. “Para a medicina e para o direito do início do século XX, o negro era um criminoso nato”, afirma.
Amaral morreu de tuberculose cinco meses depois de ser preso e era chamado de o primeiro serial killer – assassino em série – brasileiro, mesmo sem julgamento. Com base nessa situação, em 2006 a Companhia de Teatro Pessoal do Faroeste montou a peça Os crimes do Preto Amaral e em 2012 a Defensoria Pública do Estado de São Paulo organizou um julgamento simbólico na Faculdade de Direito da USP. Preto Amaral foi absolvido, por falta de provas.
O Museu da Polícia de São Paulo, conhecido como Museu do Crime, que faz parte da Academia de Polícia, na Cidade Universitária, mantinha em exposição um busto do Preto Amaral. A pedido de familiares, a peça foi retirada do espaço expositivo e guardada. “Poderia ficar à mostra”, cogita Campos, “para mostrar como medicina e direito construíram a representação do negro como
criminosos”.
Projeto
Arte contemporânea e arquivo: Como tornar público o arquivo público? (nº 13/08130-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Giselle Beiguelman (USP); Bolsista Ana Mattos Porto Pato; Investimento R$ 160.873,04.
Artigos científicos
PATO, A. Arte contemporânea e arquivo: reflexões sobre a 3a Bienal da Bahia. Revista CPC. v. 20, p. 112-136, 2015.
CAMPOS, P. F. de S. Outras faces do monstro urbano: criminalidade e racismo na cidade de São Paulo. Os crimes de preto Amaral. Histórica, v. 14, n. 1, p. 4-10, 2004.
OLIVEIRA, J. P. de. O retrato de um menino Bororo: narrativas sobre o destino dos índios e o horizonte político dos museus, séculos XIX e XXI. Tempo, v.12, n. 23, p.73-99, 2007.
BUONO, A. J. Historicity, Achronicity, and the materiality of cultures in Colonial Brazil. Getty Research Journal, v. 7, p. 19-34, 2015.