FABIO COLOMBINIEm outubro de 1975, com a habitual voz baixa e pausada, José Dion de Melo Teles, então presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligou para Warwick Estevão Kerr e anunciou: “Está aqui um engenheiro do ITA que quer trabalhar na Amazônia”. Sempre acolhedor, à frente do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Kerr pediu: “Manda ele para mim”. Formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Carlos Affonso Nobre tinha então 24 anos, grandes esperanças e um problema imediato para resolver: arrumar roupa para viajar no dia seguinte a Manaus; como até aquele momento pensava em voltar do Rio no mesmo dia, não levara bagagem.
Essa conversa o colocou em uma trajetória que não o levou só à Amazônia, já então sob intenso desmatamento por causa dos projetos agropecuários apoiados pelo governo federal, mas o tornaria um dos maiores especialistas em Amazônia, respeitado mundialmente – o trabalho científico de Nobre é hoje essencial para entender as relações entre a floresta tropical e o clima, os impactos dos desmatamentos no clima regional e global e os impactos do aquecimento global na Amazônia.
Tempos depois, com o apoio de Kerr, ele se mudou para Cambridge, nos Estados Unidos, para fazer doutorado em meteorologia com o reconhecido Jule Charney no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Teve de estudar muito sobre nuvens, chuvas e correntes de ar, mas não ficou só nos livros. Acompanhou as passeatas do movimento ambientalista emergente e aproveitou para assistir às palestras do cientista político Noam Chomsky, cujos livros começou a ler com avidez.
“Chomsky me ajudou a consolidar o conhecimento de como funcionam as relações políticas e sociais no mundo”, conta ele. Foi também como descobriu que era de fato possível pensar politicamente com independência. Participou do movimento estudantil e era por demais crítico, o que lhe trouxe alguns problemas no ITA. Esse paulistano nascido em 1951 descobriu no meio do curso de engenharia eletrônica que gostava mesmo era de fazer pesquisa. Seu trabalho de conclusão de curso era um modelo matemático de dispersão de poluentes em São José dos Campos, a meio caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Ao voltar do MIT, começou a trabalhar no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), também em São José dos Campos. Tentou, mas não se sentiu confortável nas roupas de pesquisador ambiental típico; difícil s a ber se foi por ter lido Chomsky ou, lá pelos 15 anos, o Primavera silenciosa, o livro de Rachel Carson que abriu os olhos do mundo (e dele próprio) para a consciência ambiental ao mostrar como um inseticida, o DDT, não matava só insetos, mas também outros animais, inclusive o ser humano. Nobre mergulhou então nas leituras sobre a história e as políticas de ocupação da Amazônia.
“Acho que hoje leio mais sobre geopolítica do que sobre meteorologia”, comenta, exemplificando alguns autores preferidos: a geógrafa Bertha Becker, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o sociólogo argentino Eduardo Viola, da Universidade de Brasília (UnB), e o antropólogo Roberto Araújo, do Museu Paraense Emílio Goeldi. Interessado por ciências sociais, ainda que nem sempre se sinta à vontade com os conceitos que podem levar para um lado ou para outro, gosta também de conversar com pesquisadores como o antropólogo cubano Emílio Moran, profundo conhecedor da Amazônia brasileira que atualmente lidera um grupo de pesquisa na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.
As leituras, conversas, viagens, o trabalho e, claro, a visão de mundo própria de quem começou a trabalhar aos 14 anos e estudou em escolas públicas de periferia fizeram de Nobre um dos mais combativos defensores da Amazônia e respeitável crítico da política pública – ou da falta de política, como ele diz – do governo federal para a maior floresta brasileira.
“Um modelo de desenvolvimento capaz de efetivamente integrar a Amazônia à economia nacional deve ser baseado em ciência e tecnologia, mas o governo federal ainda não acredita que deva investir pesadamente na Amazônia”, comenta.
Para ele, por trás dessa situação persistem resquícios de uma visão arcaica, segundo a qual a Amazônia seria apenas um espaço a ser conquistado, em nome da soberania nacional, como há 30 anos – e não um espaço de riquezas e oportunidades de valor mundial que preservem a floresta. “Os 500 anos de exploração da Amazônia geraram apenas quatro produtos globais, a castanha, a borracha, o guaraná e o açaí”, observa. “Será que a Amazônia não pode oferecer mais e ser uma matriz de escala global?”
Dotado da rara habilidade de apresentar os problemas ambientais em linguagem simples, Nobre às vezes cria termos – e encrencas. Em um estudo publicado em 1991 na revista Journal of Climate, ele lançou o termo savanização para descrever o que pode acontecer com a Amazônia em conseqüência do desmatamento e do aquecimento global: a floresta alta, densa e úmida pode se transformar em outro tipo de floresta, menos densa, mais seca e menos rica em biodiversidade, como o Cerrado, um tipo de savana. Os especialistas em Cerrado se revoltaram: como um engenheiro ousa depreciar o Cerrado? Seu propósito, evidentemente, não era provocar nem ofender, mas alertar para perdas que, a seu ver, podem ser evitadas.
Anos atrás, em um momento de autocrítica da ciência brasileira, Nobre comentou na TV que os cientistas do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um programa internacional de pesquisas que ele havia ajudado a planejar e a coordenar, haviam obtido muito conhecimento sobre a Amazônia, mas não sabiam como transformá-lo em políticas públicas para a região. “Tínhamos a ilusão de que o conhecimento naturalmente se converteria em tecnologia”, diz. Reestruturado, o LBA começa uma segunda fase no próximo ano e talvez consiga suprir essa deficiência.
Em agosto, muitos anos depois de se embrenhar pela floresta por expedições de quase dois meses, medindo o fluxo de gás carbônico e de vapor d’água, Nobre esteve por uma semana no norte de Mato Grosso. Seu propósito era ver como andava o desmatamento. Gostou do que viu. Pela primeira vez, nas conversas e no campo, notou que o desmatamento ilegal começa a não ser mais socialmente aceito. “A floresta começa a ser tratada com mais respeito”, comentou Nobre enquanto segurava no colo uma quase-poodle preta à frente da casa em que vive com a esposa, Ana Amélia Costa, oito cães e oito gatos.
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