Elaborada há mais de 40 anos pelo geólogo alemão Jürgen Haffer e indiretamente pelo zoólogo brasileiro e sambista Paulo Vanzolini, a Teoria dos Refúgios, que associa a diversidade biológica na Amazônia aos períodos de clima seco e isolamento geográfico, acabou declarada como morta várias vezes ao longo destes anos por vários outros pesquisadores. Mas, como diz a música do próprio Vanzolini, ela deu a volta por cima e, com um certo grau de atualização, é considerada válida por vários grupos de pesquisa, não apenas para explicar o surgimento de espécies na Amazônia, mas também na floresta atlântica, onde tem sido aplicada.
Instalado em sua poltrona favorita na sala de seu sobrado em uma antiga vila do bairro da Aclimação, zona sul de São Paulo, Vanzolini, aos 88 anos, afirma que não fez teoria nenhuma: “Era apenas um trabalho com uma espécie de bicho. O que fiz acabou sendo trazer um exemplo prático, daquilo que o Haffer havia proposto do ponto de vista teórico. Nada mais é do que um modelo [conceitual], que pode ser replicado, inclusive, para outras regiões”. Em, 1970, um ano depois de a revista Science ter publicado o artigo de Haffer propondo a teoria, Vanzolini e o pesquisador norte-americano Ernest Williams publicaram um estudo de cerca de 300 páginas sobre o surgimento de uma espécie de lagarto do gênero Anolis – e em momento algum usaram a expressão Teoria dos Refúgios.
Geólogo que havia estudado a distribuição geográfica das aves amazônicas, Haffer teorizava que as mudanças na vegetação seguiram reversões climáticas em virtude dos ciclos naturais durante algum período da história da Terra, causando fragmentação dos centros de origem das espécies e o isolamento de parte das respectivas biotas em refúgios ecológicos separados entre si. Na prática, o implacável curso das mudanças climáticas teria pulverizado zonas com floresta por áreas da Amazônia. Essas manchas, separadas por zonas sem vegetação serviram de palco para novas espécies e subespécies se desenvolverem. É provável que três processos tenham ocorrido nestas regiões: a especiação ou formação de novas espécies, a extinção de certas espécies e a adaptação de outras, que teriam passado sem mudanças genéticas importantes pelas alterações do ecossistema.
Manchas menos definidas
Haffer, em uma entrevista que me concedeu em 2005 para uma reportagem no jornal Folha de S.Paulo, defendeu a Teoria dos Refúgios, mas não deixou de propor algumas correções de rota para o seu trabalho: “É provável que o tamanho dessas manchas de floresta úmida durante os períodos secos fosse maior e bem menos definido do que é mostrado em muitos mapas que ilustram a localização dos refúgios na floresta pluvial tropical”. Haffer morreu em 2010, aos 77 anos.
Uma das críticas feitas ao longo dos anos contra as propostas de Haffer e de Vanzolini é exatamente sobre a localização dessas tais áreas secas da Amazônia, que nunca teriam sido realmente registradas. Haffer diz que, ao longo dos anos, muitas interpretações erradas foram feitas sobre a ideia dos refúgios: “Nossos dados indicam alterações climáticas pelo menos em áreas localizadas e razoavelmente regionais. É claro que extensas áreas de floresta pluvial, que é muito antiga, sempre existiram na Amazônia”.
Nos últimos anos, estudos realizados por grupos de pesquisa de São Paulo sobre o surgimento de novas espécies na mata atlântica ajudaram a reforçar a importância do modelo teórico proposto no final dos anos 1960. Pelo menos a ideia de Vanzolini e do seu colega alemão ainda pode ser considerada válida ou, no mínimo, é interessante para suscitar o debate.
Depois de trocarem correspondência sobre seus estudos por volta de 1970, eles ficaram amigos. Vanzolini gosta de dizer que Haffer mostrou generosidade, além de ser um cientista de primeiro time. “E, como bom alemão, gostava muito de cerveja”, diz. Vanzolini conta que recebeu o artigo do cientista alemão pelo correio quando seu artigo com Williams estava pronto. “Ernest, acharam que passaram a perna na gente”, disse Vanzolini, quando leu a publicação. Em pouco tempo, Vanzolini fez contato com Haffer, que imediatamente abandonou uma pesquisa de campo na África do Sul e veio ao Brasil para conhecer em detalhes os refúgios dos lagartos de Vanzolini.
Novos tempos e estudos seguem mais ou menos o mesmo caminho. Em um artigo sobre saúvas na Amazônia publicado em 2008 na revista PLoS One, cientistas brasileiros e norte-americanos propuseram uma espécie de reconsideração da teoria dos refúgios. Na Amazônia, segundo Maurício Bacci Jr., bioquímico da Universidade Estadual Paulista em Rio Claro, a grande explosão de diversidade das formigas ocorreu mesmo com a barreira geográfica imposta no momento em que os rios da região estavam em formação. Segundo ele, a superdiversificação de espécies de saúvas seria algo recente, ocorrida por volta de 2 milhões de anos atrás. Entre os rios da região, é possível que os ninhos de saúva tenham se deslocado boiando, sobre plantas.
As análises genéticas indicaram que, além da Teoria dos Refúgios, outro processo importante – e anterior – de mudança na paisagem amazônica foi determinante para a diversificação das formigas na região. Há 15 milhões de anos, antes de o rio Amazonas se formar, o aumento do nível dos oceanos fez as águas marinhas invadirem a região, o que, para os cientistas, teria iniciado o isolamento de certas áreas amazônicas, que viraram verdadeiras ilhas. A fragmentação do ambiente, depois, teria então sido realçada pelos refúgios. De acordo com esse trabalho, a grande diversificação de espécies de formigas ocorreu entre 14 milhões e 8 milhões de anos atrás.
O modelo de áreas isoladas durante certo tempo proposto para a Amazônia, guardadas as devidas propor-ções, pode ajudar a explicar muito o porquê de a mata atlântica ser tão diversificada. A ecóloga Cinthia Brasileiro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), defende que vários centros de especiação, verdadeiros núcleos de fabricar espécies, devem ter existido entre a Bahia e São Paulo.
A hipótese dos refúgios para a floresta atlântica ganhou forma com base na avaliação de dados genéticos de duas espécies de rãs. O estudo de filogeografia (mapeamento das diversidades genéticas de uma espécie ao longo do tempo) indica que realmente algumas áreas da mata permaneceram florestadas e mais ou menos estáveis do ponto vista climático por milhões de anos. Nesses locais, não houve grandes secas, nem épocas de frio excessivo. O nível do oceano, também, não registrou grandes oscilações.
Ao longo dos últimos 12 milhões de anos, vários refúgios existiram em regiões geográficas diferentes do litoral brasileiro, portanto. No caso do litoral paulista, é provável que uma área tenha se formado entre São Sebastião e Cananeia. Quando, por exemplo, o mar desceu ao redor desse centro, novas áreas secas surgiram. Elas passaram a ficar florestadas por mais tempo e, neste caso, a colonização por parte das espécies também começou a ocorrer nessas regiões. É mais ou menos como Vanzolini e Haffer pensaram para a questão da especiação que ocorreu na região amazônica.
Independentemente de o modelo proposto ser 100% válido, está claro que definições como fragmentos, isolamentos, alterações climáticas e estabilidade ambiental estão sempre envolvidas com o desenvolvimento de novas espécies. O que significa dizer que o debate levantado pelos refúgios passa a ser mais atual do que nunca. Como as atividades antrópicas estão aumentando a velocidade das mudanças climáticas e, também, diminuindo a área florestada em várias regiões do mundo, é provável que exista um processo, até certo ponto oculto, contra a especiação também em curso. Os resultados disso ainda são imprevisíveis.
Esses temas como mudança climática e extinção da biodiversidade deixam Vanzolini bastante pessimista com a preservação do ambiente amazônico, que ele conheceu tão bem em expedições quase anuais, durante décadas – cada vez ele ficava por lá no mínimo três meses. “A Amazônia acabou”, diz ele. “Tem muita soja e gado por lá. O povo amazônico, que precisa sobreviver, também é o maior interessado em que essas atividades econômicas entrem cada vez mais por lá.”
Artigos científicos
HAFFER, J. e PRANCE, G. T. Impulsos climáticos da evolução na Amazônia durante o Cenozoico: sobre a Teoria dos Refúgios da diferenciação biótica. Estudos Avançados. v. 16, n. 46, 2002.
SCHULTZ T. R. e BRADY, S.G. Major evolutionary transitions in ant agriculture. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA. Early Edition (March 24), 2008.
VANZOLINI, P. E. e WILLIAMS, E. E. South American anoles: the geographic differentiation and evolution of the Anolis chrysolepis species group (Sauria, Iguanidae). Arq. Zool. v.19, n. 1-2, p. 1-176, 1970.
De nosso arquivo
A obra de uma vida –Edição nº 175 – setembro de 2010
Refúgios abalados –Edição nº 129 – novembro de 2006
Um tesouro à beira do Velho Chico – Edição nº 57 – setembro de 2000