A velha caixa de madeira contendo um mapa do trecho norte do litoral carioca e um velho e esfiapado novelo de linha, obra de Cildo Meireles que ocupa lugar de destaque no 32o Panorama das artes, em cartaz até o dia 18 de dezembro no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, pode ser considerada como uma espécie de relíquia, como souvenir de um processo de investigação bem mais amplo. Lembrança física do trabalho que consistiu em percorrer a pé 30 quilômetros da trilha de terra que se tornaria a atual rodovia Rio-Santos desenrolando um novelo ao longo do trajeto e depois recolhendo o que sobrou desse fio, esse objeto também sintetiza a relação tensa, sedutora e extremamente fértil entre o lampejo criativo e a ação cautelosamente planejada, a partir da qual Meireles pauta toda sua trajetória.
Arte física: cordões/30 km de linha estendidos, bem como outras ações idealizadas – nem sempre concretizadas – no mesmo período, nasce da vontade do artista de ampliar suas pesquisas sobre o espaço (já iniciadas nos anos de 1967 e 1968 com as séries dos Cantos e espaços virtuais/Cantos) para a grande escala geográfica, planetária, exigindo sempre empenho físico por parte do executor da obra. Caminhar longas distâncias em linha reta, ficar horas sem ingerir nenhum líquido ou escalar o cume mais alto do país para substituir seus últimos centímetros por um elemento de forte carga simbólica como um diamante – esta última seria a única das “artes físicas” ainda não realizadas que ele ainda pretende executar – estão entre as ideias concebidas por Cildo no final dos anos 1960 e que serviram de combustível para uma produção que nasce fortemente vinculada ao caráter questionador da arte conceitual e que pouco a pouco vai ganhando contornos cada vez mais sedutores.
É apenas relativa a disparidade entre o registro seco da ação por meio da coleta e exposição de vestígios, como se vê na maleta de Cordões, e as grandes instalações imersivas, com que Cildo Meireles conquista o público sobretudo a partir da década de 80 e que o alçam à posição de um dos mais importantes artistas plásticos contemporâneos. Promovendo um paradoxal convívio entre conceitos muitas vezes emprestados de outras áreas do pensamento e o efeito plástico e sensorial impactante, ele concilia um elevado grau de abstração e reflexão teórica a uma estratégia de arrebatamento do público. Sua intenção era superar a noção de espectador passivo. “Com naturalidade fui me encaminhando para peças que trabalham em grande escala, que se destinavam a indivíduos com total liberdade espacial e de tempo para desfrutar o trabalho. Queria tirar a pessoa daquele lugar e daquele momento; arrebatar, seduzir mesmo”, explica.
Cildo costuma dizer que “o melhor momento é quando o objeto de arte risca o céu da sua consciência, sem limite, sem definição”. Esse longo tempo de maturação agrada o artista: “Essa é uma velocidade legal de trabalhar, sem estar contra o relógio”, diz ele, mesmo vendo um certo paradoxo no fato de ter conseguido viabilizar tardiamente muitos de seus projetos. “O ideal seria que o artista tivesse condições de realizar quando jovem”, pondera. Ele lembra, por exemplo, que Desvio para o vermelho, uma de suas obras mais emblemáticas e que atualmente pode ser vista em exposição permanente no Instituto Inhotim (MG), começou a ser pensada junto com a série dos Cantos, ainda nos anos 1960, para adquirir sua forma original em meados dos 80. O mesmo ocorreu com trabalhos como Abajour, mostrado na última Bienal de São Paulo. A instalação, que promove uma sintética e potente crítica, ressaltando as relações causais entre escravidão e deleite plástico, fará parte da grande exposição que o artista está preparando para realizar em 2013 no Museu de Serralves, em Portugal, e que posteriormente segue para Madri. Ainda não há previsão de que a mostra venha para o Brasil.
A possibilidade de dar corpo a uma construção poética apenas décadas após sua concepção não é fruto apenas da inexistência de condições materiais. Esse embate entre conceito e forma é vital para garantir a tensão sentida em boa parte dos trabalhos do artista. Seu exemplo demonstra o desapego da arte contemporânea em relação à ideia romântica de instante criativo, de genialidade iluminadora do autor. Memória, conceito ou encantamento fazem parte de uma estratégia de ruptura com modelos e estratégias fixas. Mesmo atuando para além das fronteiras da dita arte conceitual – e sendo comparado pelo crítico cubano Gerardo Mosquera a um pesquisador científico “que explora uma dimensão poética da matemática, da geometria, da física” (e pode-se acrescentar aí outras áreas como a economia, a história e a antropologia) –, Cildo Meireles atribui um papel central ao caráter libertário do movimento. “A arte conceitual talvez tenha sido a mais genuinamente democrática, ampliando ao infinito a quantidade de materiais e procedimentos”, afirma, ressaltando que depois dessa libertação radical em relação aos dogmas tornou-se possível começar do zero a todo momento. “Não devemos abdicar de jogar com essa pluralidade de territórios”, defende.
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