Após ser internado no Hospital de Lisboa para tratar de sífilis, Luís Vaz de Camões escreveu a um amigo por volta de 1550. “Em tom jocoso e com referências à mitologia greco-romana, ele fala a respeito do lugar e das doenças provocadas pelas flechas de Cupido, pelo desejo sexual”, conta Marcia Arruda Franco, professora de literatura portuguesa da Universidade de São Paulo (USP). A missiva, até então inédita, está reunida ao lado de outras cinco cartas atribuídas ao poeta português no livro Cartas em prosa e descrição do Hospital de Cupido (Editora Madamu, 2024), organizado por Franco. “Camões transitava por tabernas e prostíbulos, e nesses textos mostra os vícios e demais ‘pecados’ do período quinhentista”, acrescenta a pesquisadora, que levantou o material na Biblioteca Nacional de Portugal.
O lançamento ocorre no marco dos 500 anos de nascimento de Camões, apontado como um dos maiores poetas da língua portuguesa e autor de Os Lusíadas (1572), épico de 8.816 versos que narra a viagem marítima de Portugal até a Índia, entre 1497 e 1499, liderada pelo navegador Vasco da Gama (1469-1524). A efeméride vem suscitando uma série de homenagens ao literato. No Brasil, por exemplo, o Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, promove até junho de 2025 o evento Quinhentos Camões – O Poeta Reverberado, que prevê a cada mês uma mesa-redonda com convidados do Brasil e exterior. Já a Biblioteca Nacional sediou até outubro de forma presencial a exposição A língua que se escreve sobre o mar – Camões 500 anos, cujos 38 itens podem também ser vistos virtualmente. Estão lá, por exemplo, capas das primeiras edições de Os Lusíadas e obras literárias inspiradas pelo universo camoniano, inclusive da literatura de cordel.
Em Portugal, as comemorações devem se estender até 2026 e se iniciaram oficialmente em 10 de junho, na Universidade de Coimbra. A data é considerada o dia da morte de Camões, que faleceu em 1580. Isso porque a data exata de nascimento do poeta é uma incógnita. “Trata-se de uma das várias zonas nebulosas na trajetória de Camões”, informa a escritora portuguesa Isabel Rio Novo, autora da recém-lançada Fortuna, caso, tempo e sorte: Biografia de Luís Vaz de Camões (Contraponto, 2024), inédita no Brasil. “O que se sabe é que ele nasceu entre 1524 e 1525, pois segundo um documento de 1550 o poeta tinha então 25 anos de idade.”
A autora, que tem doutorado em literatura comparada pela Universidade do Porto, levou cinco anos para escrever o livro. Um dos desafios foi navegar em meio à série de boatos e mitos que envolvem a trajetória do escritor. Franco, da USP, enfrentou problema parecido ao editar o livro Vidas de Camões no século XVII (Madamu, 2024). A pesquisadora brasileira, que integra o Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, da Universidade de Coimbra, cotejou quatro das chamadas “relações da vida” de Camões e um epítome, todos do século XVII e assinados por autores como Manuel de Faria e Sousa (1590-1649). “São textos impressos junto com as edições das obras de Camões, que buscam construir uma imagem mítica do poeta, mas que estão cheios de lacunas e parecem falar de pessoas diferentes dado o número de contradições entre eles”, diz.
Outro obstáculo apontado por Rio Novo é a escassez de fontes. Além de Portugal, ela conta ter levantado informações em outros países, tanto de forma virtual, a exemplo do site da Biblioteca Nacional brasileira, como presencial, em acervos na Índia e em Moçambique. Durante a pesquisa, descobriu fontes inéditas, como um documento sobre o episódio que levou o poeta ao cárcere em 1552. “Ele desacatou Gonçalo Borges, criado da Casa Real, durante uma festa religiosa em Lisboa, e ficou confinado na Prisão do Tronco. Camões foi preso várias vezes, sobretudo por causa de brigas”, relata.
O escritor acabou sendo libertado no ano seguinte mediante uma carta de perdão concedida por dom João III (1502-1557). Em troca, seguiu como soldado no Exército lusitano rumo à Índia até chegar a Goa em 1554. Não era sua primeira experiência no campo militar, de acordo com a biógrafa. Em 1549, quando participava de uma missão portuguesa no norte da África, perdeu um dos olhos. “Camões foi vítima de um acidente com arma de fogo, provavelmente um canhão disparado por um dos companheiros, cuja faísca atingiu seu globo ocular”, conta Rio Novo.
O poeta serviu o Império português por 17 anos. “Camões tinha origem nobre, mas o patrimônio de sua família foi se perdendo ao longo de gerações. Embora fosse bem relacionado, era um homem de poucas posses que precisava trabalhar para sobreviver”, prossegue Rio Novo. Dentre outras funções, em 1562 se tornou Provedor-mor dos Defuntos e Ausentes e passou a cuidar da guarda dos bens daqueles que não haviam nomeado procuradores em seus testamentos. Ele assumiu a função em Macau, na época entreposto comercial português, que hoje faz parte da China.
Após ser afastado do cargo e sobreviver a um naufrágio no delta do rio Mekong, no Sudeste Asiático, Camões embarcou, em 1567, para Moçambique, onde viveu em condições precárias. Três anos depois, voltou para Portugal com a ajuda de amigos e finalizou Os Lusíadas na terra natal. O livro foi publicado em 1572. Naquele mesmo ano, o poeta passou a receber até o fim da vida uma pensão não muito elevada e cujo pagamento era irregular. De acordo com a biógrafa, isso se deu sobretudo como retribuição aos 17 anos em que Camões trabalhou para o Império português, mas o processo foi agilizado em função da epopeia ter sido dedicada ao então rei dom Sebastião I (1554-1578).
“Camões é um dos maiores poetas que já existiram. Antes de tudo, pela síntese que sua poesia faz de uma experiência aristocrática, de elementos da filosofia cristã elaborada, principalmente, por Santo Agostinho [354-430] e São Tomás de Aquino [?-1274], e também da cultura greco-romana, a partir dos escritos de Platão [c. 428-347 a.C.] e Cícero [106-43 a.C.], dentre outros. Ele tem ainda grande influência do poeta italiano Francesco Petrarca [1304-1374]”, enumera João Adolfo Hansen, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Todos esses elementos estão em Os Lusíadas.”
Dividida em 10 cantos, a epopeia é considerada sua obra-prima. “Talvez seja o primeiro poema moderno da língua portuguesa, pois, dentre outras coisas, é aberto à contradição, à ambiguidade, que não responde, mas pergunta”, avalia Luis Maffei, professor de literatura portuguesa da Universidade Federal Fluminense (UFF), que deve lançar neste ano uma nova edição da obra em parceria com Paulo Braz, do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Tentamos recuperar o ritmo presente na primeira edição do livro, que foi sendo alterado ao longo dos anos, sobretudo no século XX, bem como corrigir intervenções equivocadas feitas pelos editores no passado, como mudanças de palavras e de pontuação”, explica Maffei, que desde 2012 promove o evento anual “Um dia com Camões”, na UFF. Em razão do aniversário do poeta, o encontro será realizado até meados de 2025 com periodicidade mensal.
Veridiana Scarpelli
Ao associar história e literatura, a epopeia ganhou versões em outros idiomas. A primeira tradução em inglês saiu em 1655. “Camões foi lido em lugares como Inglaterra e Alemanha, influenciando o surgimento do romantismo nesses dois países a partir do final do século XVIII ”, diz Matheus de Brito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que desenvolveu estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre Camões com apoio da FAPESP.
A variedade de traduções é um dos assuntos abordados pelo dossiê “Além da Taprobana… memórias gloriosas: Os Lusíadas 450 anos”, lançado pela revista Desassossego, da USP, no ano passado. “Na Rússia, por exemplo, houve uma tradução indireta do francês no final do século XIX, depois outra incompleta nos anos 1940 e, por fim, a versão da estudiosa Olga Ovtcharenko em 1988. Já no Japão, há ao todo três traduções disponíveis, sendo que a primeira foi publicada em 1972”, conta Mauricio Massahiro Nishihata, professor do Instituto Federal de Rondônia (Ifro) e um dos organizadores do dossiê, sob a supervisão de Adma Muhana, professora de literatura portuguesa da USP.
Em busca de um herói
Por outro lado, a junção entre história e literatura fez com que Os Lusíadas se confundisse com a identidade da nação portuguesa. “Em 1580, Portugal perdeu a sua autonomia política e ficou sob o jugo da Espanha por 60 anos. Foi um grande trauma para os portugueses e Camões passou a ser usado como símbolo daquele passado glorioso”, informa Sheila Hue, da Uerj, que também prepara uma edição crítica de Os Lusíadas, com Simon Park, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. “Ele se tornou um cânone logo cedo e essa grande imagem camoniana praticamente apagou outros poetas contemporâneos portugueses.”
A apropriação da figura de Camões atravessou os séculos. “Quando dom João VI [1767-1826] transferiu a Corte para o Brasil em 1808 para escapar de Napoleão [1769-1821], Portugal se viu acéfalo e em dificuldades financeiras. Em busca de um herói, o Romantismo português divulgou a imagem de um Camões subversivo e revolucionário”, comenta Sabrina Sedlmayer, professora de literatura portuguesa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No século XX, foi a vez da ditadura salazarista (1933-1974) lançar mão do estratagema. “Para difundir o civismo, o patriotismo e a honra, o Estado Novo português voltou-se para o passado heroico e glorioso de povo conquistador. Assim, elegeu Camões como ícone de sua propaganda nacionalista”, acrescenta a pesquisadora, atual presidente da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL).
Os Lusíadas é uma das poucas obras cuja autoria pode ser creditada a Camões. “Em vida, ele publicou outros três poemas e grande parte de sua poesia lírica só foi sair no livro Rhythmas, lançado 15 anos após sua morte, porque até então só se publicava poesia épica ou religiosa em Portugal”, conta Hue, que integra o Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, da Universidade de Coimbra. A obra ganhou uma segunda edição em 1598, acrescida de poemas, como o célebre Amor é fogo que arde sem se ver, e duas cartas. De acordo com a pesquisadora, o editor do livro pediu na época que pessoas lhe enviassem poemas escritos por Camões. “Mas nada era autógrafo. Ou seja, nada tinha a assinatura do poeta”, informa Hue. “Há também poemas manuscritos nos chamados cancioneiros, que são livros do século XVI copiados à mão. Ali, vários são atribuídos a Camões.”
Ao lado das cartas e sonetos, Camões escreveu as peças de teatro Auto de Filodemo e Auto dos anfitriões, ambas de 1587, além de Auto d’el-rei Seleuco, cuja autoria é atribuída ao poeta e foi encenada em 1645. “Desde o século XVI, o corpus camoniano é como uma sanfona, que se estende e encolhe de acordo com os critérios filológicos predominantes e os interesses dos editores de cada época”, constata Alcir Pécora, da Unicamp. “Eu me interesso muito mais pela leitura do poema do que tentar descobrir a real autoria do poema. Para quem trabalha com obras dos séculos XVI e XVII, isso é quase uma impossibilidade. Naquela época, a poesia era oralizada e os poemas eram copiados à mão. Muitas vezes quem copiava se sentia autorizado a ‘melhorar’ o poema. Ou seja, na prática, eu penso Camões como o nome de um corpus, mais do que de um homem em particular.”
Alguns estudiosos tentaram organizar a produção camoniana. Em edição realizada em 1980, a escritora Cleonice Berardinelli (1916-2023), professora da UFRJ, reuniu 400 poemas que haviam sido atribuídos a Camões alguma vez. “Ela não tenta definir o que Camões realmente escreveu por saber que isso é impossível”, diz Hue. “Ao reuni-los, enfatiza a forma de ser da poesia da época, baseada na imitação, na circulação oral e manuscrita, o que gerava múltiplas versões e diferentes autorias.” Já o filólogo pernambucano Leodegário de Azevedo Filho (1927-2011), da Uerj, publicou entre 1985 e 2001 a Lírica de Camões, série em sete volumes bancada pela editora Imprensa Nacional Casa da Moeda, do governo português. Nela, define que o corpus minimum de Camões teria 133 sonetos a partir do que chamou de “duplo testemunho dos manuscritos”. Ou seja, cada um dos textos ali reunidos teria dois comprovantes oriundos do século XVI.
Camões conheceu boa parte do Império português, mas nunca visitou o Brasil. “De qualquer forma, a obra dele começa a ser lida aqui no período colonial e podemos ver essa influência em épicas como Prosopopeia [1601], de Bento Teixeira [c. 1561-1618], e À ilha de maré [1705], de Manuel Botelho de Oliveira [1636-1711]”, conta Marco Lucchesi, professor da UFRJ e atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional. “No século XIX, sua presença já estava consolidada entre nós e desde então vários autores prestaram homenagens ao poeta, como é o caso de Machado de Assis [1839-1908], Jorge de Lima [1893-1953] e Manuel Bandeira [1886-1968].” Para Sedlmayer, da UFMG, essa influência se estende até os dias de hoje, em versos de autores como Caetano Veloso e Gregório Duvivier. “O fôlego de Camões parece não ter fim”, afirma.
A reportagem acima foi publicada com o título “O fôlego do poeta” na edição impressa nº 345, de novembro de 2024.
Projeto
O ethos do dissídio na lírica camoniana (nº 17/11260-4); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Antonio Alcir Bernardez Pécora (Unicamp); Bolsista Matheus Barbosa Morais de Brito; Investimento R$ 319.400,46
Artigo científico
HANSEN, J. A. Máquina do mundo. Teresa, USP, v. 1, n. 19. p. 295-314, dez. 2023.
Livros
CAMÕES, L. V. de. 20 sonetos. Introdução e edição comentada de Sheila Hue. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
CAMÕES, L. V. de. Cartas em prosa e descrição do Hospital de Cupido. Introdução, notas e proposta de fixação textual Marcia Arruda Franco. São Paulo: Madamu, 2024.
MARIS, P. de et al. Vidas de Camões no século XVII. Edição, introdução, tradução e notas de Marcia Arruda Franco. São Paulo: Madamu, 2024.
RIO NOVO, I. Fortuna, caso, tempo e sorte: Biografia de Luís Vaz de Camões. Lisboa: Contraponto, 2024.
Dossiê
NISHIHATA, M. M. et al. (orgs.). Além da Taprobana… Memórias gloriosas: Os Lusíadas 450 anos. Desassossego, USP, v. 15, n. 29. 2023.