O SENTIMENTO DO MUNDO
Obra revela o olhar agudo de crianças internadas num hospital
– Essa menina é ligada nos 220 volts. Onde está o botão que te desliga? – perguntou uma recreadora do Instituto da Criança para a irrequieta Talita, de 6 anos, que recebia tratamento no hospital.
– Está aqui – respondeu a menina, apontando para o cateter usado para ministrar a medicação.
O diálogo desconcertante é uma amostra das centenas de registros orais de crianças e adolescentes internados, compilados no livro O hospital pelo olhar da criança, organizado pelas terapeutas ocupacionais Aide Mitie Kudo e Priscila Bagio Maria. Elas trabalham no Instituto da Criança, ligado ao Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, e entre 2005 e 2008 coordenaram uma equipe de recreadoras e terapeutas que colheu frases ditas ocasionalmente por pacientes de 3 a 18 anos. A ideia era reunir apenas reflexões espontâneas, sem nenhuma intervenção ou estímulo dos adultos.
O resultado é um paradoxo. De um lado, a obra retrata crianças como outras quaisquer, que brincam, constroem amizades, buscam aprovação dos adultos e produzem tiradas engraçadas, como as que abasteciam a coluna de Pedro Bloch na extinta revista Manchete. De outro, os relatos expõem o peso das longas internações e a dor da luta contra doenças graves, que em muitos casos acompanham os pacientes desde o nascimento, vistos por um prisma amedrontado mas esperançoso – ora irritadiço, ora bem-humorado e sempre agudo. Max, de 3 anos, ao ver os potes de exame do hospital pediu um deles à enfermeira. “Mas para que você quer?”, indagou a profissional. “É que eu coleciono.” A enfermeira, curiosa, perguntou: “Desde quando?” Ele respondeu: “Comecei agora”.
Embora não tenha linguagem acadêmica e possa surpreender todo tipo de leitor, a obra se dirige a profissionais da saúde infantil. A intenção declarada das autoras é sensibilizar médicos, enfermeiros e terapeutas, desafiando a frieza e a impessoalidade que, por necessidade de ofício, frequentemente permeiam sua relação com os pequenos pacientes.
O livro é dividido em capítulos, organizados segundo ambientes do hospital e situações vividas pelas crianças. O convívio na brinquedoteca foi um celeiro de frases. “Fui eu que fiz esse desenho, tia. Está feio, diferente, porque eu estava mal”, explicou Marcio, de 8 anos, para a recreadora. As restrições alimentares foram um tema recorrente. “Por que servem um tipo de pão sem sal que nem as enfermeiras têm coragem de experimentar?”, reclama Wesley, de 13 anos. Um dos capítulos explora as amizades construídas dentro do hospital. “A Tainá é minha amiga há seis anos”, diz Laleska, de 10 anos de idade. “Hoje ela está na UTI porque fez um transplante. Fiquei cuidando da boneca da Tainá enquanto ela se recupera”, completa. Raphael, de 8, comentou que gostaria de trabalhar como voluntário no hospital quando crescesse. “Mas não sei se vou ter imunidade até lá”, afirmou. Maurício, de 11, escreveu o que gostaria de ganhar no Natal: “Eu quero um videogame. E passar o Natal em casa”.
Uma das passagens mais divertidas é o dicionário das profissões encontradas no hospital, produzido por um grupo de sete crianças e adolescentes. Ascensorista é alguém que “não tem medo de elevador” e “segura a porta para nós entrarmos quando estamos atrasados”. Enfermeiro é uma “figura que sabe as mesmas coisas que o médico, porém de outro jeito”. O médico é o “salva-vidas das crianças”.
Uma centena de fotografias do Instituto da Criança, registradas pelas próprias crianças, ilustram a parte final do livro. O resultado é semelhante ao produzido pelo texto. Imagens de remédios e equipamentos hospitalares se misturam à de um cateter instalado num braço de criança ou de um par de luvas cirúrgicas cheias de ar, transformadas em bexigas para brincar.
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