Desde a década de 1990, a busca de alternativas à relação entre estados nacionais e populações indígenas tem mobilizado as pesquisas de Lino João de Oliveira Neves, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Partindo da atuação como indigenista em diferentes territórios da Amazônia, foi sob orientação do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Portugal, e considerado um dos principais teóricos do pensamento decolonial, que ele passou a incorporar epistemologias dos povos indígenas em sua reflexão acadêmica. Os estudos decoloniais buscam revisar o processo de construção histórica da modernidade, evidenciando seus efeitos nos países e nas populações que foram colonizadas. Em entrevista virtual concedida a Pesquisa FAPESP de sua casa, em Manaus, ele abordou os desafios da educação escolar indígena no Brasil e os impactos da pandemia entre os povos tradicionais da Amazônia.
O senhor é graduado em engenharia química. Como se tornou antropólogo?
O começo da minha carreira foi distante da antropologia. Antes mesmo de concluir a graduação, descobri que aquela não era minha área de interesse. Meu interesse pelos povos indígenas é remoto. Desde menino, me inquietavam e estimulavam. Eu pensava: como esses indivíduos que enfrentam tanta pressão para abandonar suas identidades e seus costumes seguem sendo índígenas? O que os motiva a continuar sendo o que são? Aludindo ao título de um livro do escritor norte-americano Jack London [1876-1916], eu fui levado por uma espécie de “chamado da floresta” e comecei a me afastar da engenharia. Em 1979, fiz um curso oferecido pelo Cimi [Conselho Indigenista Missionário], órgão vinculado à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Foi minha primeira formação sistemática em história da Amazônia, linguística e antropologia. Nessa época, em plena ditadura militar [1964-1985], todas as ações de formação da Funai [Fundação Nacional do Índio] estavam suspensas. Mais tarde, me filiei à Operação Anchieta, considerada uma das primeiras organizações indigenistas do país, hoje chamada Operação Amazônia Nativa. Nessa ONG [organização não governamental], entre 1979 e 1991, trabalhei com os povos indígenas da Amazônia, especialmente com os Apurinã e os Kanamari, em projetos para fortalecer suas identidades culturais e atuação política, incluindo apoio na elaboração de estratégias para reivindicação de demarcação de terras. Mais ou menos na mesma época, fiz uma especialização em antropologia social na Universidade Federal do Paraná [UFPR]. Em 1991, ingressei no programa de mestrado em antropologia social da Universidade Federal de Santa Catarina [UFSC]. Durante esses anos, também fiz trabalhos de consultoria para o Instituto de Pesquisas Antropológicas do Rio de Janeiro [Iparj], entidade que não existe mais. Em 1992, fui aprovado em concurso para professor de antropologia na Ufam, onde atualmente procuro conciliar a docência com interesses específicos em antropologia política e na relação dos povos indígenas com estados nacionais. Identifico-me com a chamada linha da antropologia da ação, que torna os antropólogos parceiros dos povos indígenas – e não apenas seus conhecedores.
Como foi seu doutorado com Boaventura de Sousa Santos?
Em 1994, já como professor da Ufam, participei de uma exposição etnográfica organizada na cidade do Porto, em Portugal. Na ocasião, buscava ampliar minha interlocução com antropólogos portugueses e, nesse esforço, conheci Boaventura de Sousa Santos, então professor da Faculdade de Economia do Centro de Estudos Sociais [CES] da Universidade de Coimbra. Ele trabalhava com sociologia do direito e povos indígenas da América Latina. Depois de uma longa conversa, ele me convidou para fazer doutorado em sociologia do desenvolvimento e da transformação social, projeto que comecei em 1998, quando me mudei para Portugal. Até 2003, tivemos intensa convivência. Nesse ano, tive de voltar ao Brasil para reassumir meu posto de docente. Acabei perdendo o prazo para depositar a tese e fui jubilado. Em 2008, retomei o projeto. Reconfigurei o estudo e defendi a tese em 2013, sob a orientação dele. No doutorado, trabalhei com um campo de discussão proposto por Sousa Santos que envolve a busca de saberes sobre as chamadas epistemologias do Sul, como é o caso dos saberes indígenas, que permitem ir além do conhecimento produzido pela ciência ocidental moderna. O doutorado ajudou a amalgamar minha trajetória, que partiu de uma base de militância indigenista e foi se associando a uma reflexão teórica conceitual. Sousa Santos é considerado um dos principais expoentes do pensamento decolonial.
Como as universidades brasileiras dialogam com o pensamento decolonial?
Na década de 1990, Sousa Santos ainda não era tão conhecido, no Brasil, no campo da antropologia. Nessa época, ele investigava a existência de culturas e resistências locais e seus efeitos sobre a globalização. Mais tarde, passou a analisar como os processos de globalização também representam a imposição da ciência moderna ocidental em países do Sul, ou seja, em nações colonizadas, e como essa dinâmica cria uma situação de negação e torna invisível o conhecimento dos povos locais. Sousa Santos alargou seu campo de reflexão, movendo-se do direito para sociologia, antropologia e filosofia. Tornou-se referência nas escolas de sociologia, chamando a atenção para autores latino-americanos até então pouco conhecidos, como o sociólogo peruano Aníbal Quijano [1930-2018] e o semiólogo argentino Walter Mignolo. No nosso país, as ciências sociais surgiram a partir de uma missão francesa. Isso tem feito com que os intelectuais brasileiros olhem mais para a produção acadêmica europeia e norte-americana do que para a latino-americana. Na antropologia, Sousa Santos ainda não é considerado autor fundamental para explicar questões etnopolíticas, o que representa enorme prejuízo para a área.
Como o pensamento desse pesquisador português impactou sua trajetória?
Sousa Santos costuma ser orientador e amigo de seus alunos. Além da formação profissional, impressionou-me essa ênfase que dá às práticas ativistas daqueles com quem trabalhamos, nessa ideia de que os grupos sociais com quem atuamos não são objeto de pesquisa, mas aliados com quem deveríamos nos comprometer. O CES da Universidade de Coimbra, que reúne cerca de 300 pesquisadores, é um lugar onde se discutem questões teóricas e políticas, além de compromisso social. Essa experiência que tive em Portugal alimenta minha esperança de que a universidade brasileira, em alguns aspectos distanciada da realidade social, consiga se transformar. Algumas universidades do país são produtivas, mas pouco valorizam as humanidades, por exemplo. Reconheço o valor da área tecnológica, mas penso que só as humanidades podem fomentar a criação de uma sociedade mais fraterna e justa, além de estimular o desenvolvimento do pensamento crítico.
Quais são seus interesses atuais de pesquisa?
Na antropologia política, meu interesse fundamental é investigar as relações entre o Estado nacional e os povos indígenas. Os estados nacionais refletem a cultura ocidental moderna e acabam se impondo politicamente sobre as populações indígenas, negando suas formas de organização e seus conhecimentos. Estou interessado em analisar como se estabelecem essas relações de poder. Enxergo nos povos indígenas grandes possibilidades de superação das crises que vivemos. Penso que eles detêm práticas sociais capazes de tirar nossa sociedade da beira do “abismo abissal”, para usar uma expressão de Sousa Santos, na qual a crise ambiental representa apenas a vertente mais explícita. A chegada de novas zoonoses e do novo coronavírus, por exemplo, sugere que estamos sendo ineficazes em equalizar o descompasso crescente entre o homem e a natureza. Assim, estudo as populações indígenas buscando possibilidades de refundação, ou reconstrução do Estado, que pode se tornar plurinacional e pluriétnico, reconhecendo a existência de vários povos vivendo no mesmo território. Isso não seria nenhuma novidade. Há algum tempo, países como Suíça e Espanha reconheceram a existência de nacionalidades e regiões autônomas. Nesse caminho, tenho investigado epistemologias de povos indígenas onde não existe um poder centralizado e a liderança é participativa. Em pesquisa realizada na Bolívia, há dois anos, estudei a estrutura organizacional dos povos Aimará. Entre eles, para se tornar chefe é preciso estar casado, para que sua mulher também se torne chefa. É uma lógica da complementaridade que procura mostrar que as pessoas são iguais. Se formos abertos o suficiente para entender o que outras populações podem nos ensinar, sairemos da beira desse abismo com mais facilidade. Há 305 povos indígenas no Brasil, cada um com práticas e conhecimentos próprios. Temos muito o que aprender.
Existe diferença na educação indígena praticada no Brasil com a dos outros países da América Latina?
México, Bolívia e Peru, com grandes populações indígenas, dispõem de instituições universitárias antigas, que formam populações tradicionais desde a sua fundação. São universidades criadas no início do período colonial. No Peru, a Universidade Nacional Mayor de San Marcos foi instituída em 1551, mesmo ano de fundação da Universidade Nacional Autônoma do México. Na Bolívia, em 1654 foi estabelecida a Universidade de San Francisco Xavier de Chuquisaca. Todas foram criadas muito antes de o Brasil contar com um curso de graduação. Algumas nações oferecem, ainda, formações em educação intercultural indígena há mais de 40 anos, como é o caso do Equador. Com isso, todos esses países têm formado intelectuais indígenas em diferentes cursos e eles produzem reflexões sobre as condições de colonização. Esses mesmos indígenas também questionam as práticas educacionais formuladas para eles. É um panorama diferente do brasileiro, em que apenas mais recentemente se formou a primeira geração de intelectuais indígenas com perspectiva crítica (ver reportagem “Conhecimento expandido” em Pesquisa FAPESP nº 285). Aqui, há indígenas com curso superior, mas muitos se formaram a partir de bases teóricas que reproduzem o pensamento colonial ou, conforme expressão de Aníbal Quijano, reproduzem a colonialidade do saber. Assim, eles também se fecham à ideia de interculturalidade na educação.
Existem experiências bem-sucedidas de educação indígena no país?
O Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima [UFRR], a licenciatura indígena do Instituto de Política Linguística da UFSC, entre outras, são iniciativas de educação não colonial, que absorvem os saberes das populações locais em seus currículos. Na mesma linha, na Ufam, também oferecemos a Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável. Dou aulas nessa licenciatura e em outros cursos da Ufam. A primeira turma dessa licenciatura se formou em 2009. O curso recebeu nota 4, de uma escala de 5, na avaliação do Ministério da Educação [MEC]. Porém os alunos graduados nessas licenciaturas interculturais têm enfrentado grandes desafios institucionais. A Secretaria de Educação do Amazonas não reconhece, nos concursos para docentes da educação básica, os diplomas de graduados em cursos de educação indígena, exigindo licenciaturas em áreas específicas, como biologia ou língua portuguesa. Até dois anos atrás, em São Gabriel da Cachoeira, onde 90% da população é indígena, as licenciaturas tradicionais também eram pré-requisito para os concursos. Conseguimos reverter essa situação e, hoje, esses diplomas também são aceitos nos concursos. Muitos indígenas que frequentaram escolas tradicionais não percebem o valor do ensino crítico e intercultural. Também por uma questão pragmática, acabam optando por licenciaturas tradicionais. Não é fácil abrir espaços nas instituições, tampouco na consciência das pessoas.
Que outros desafios vocês enfrentam?
A extinção, em 2019, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão [Secadi], que estabelecia programas para fomentar e impulsionar a educação indígena, a educação no campo e a educação voltada para comunidades quilombolas, para citar apenas alguns exemplos, representa outro desafio. O fim da Secadi fez desaparecer os recursos da Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável destinados às ações de formação de professores nos territórios indígenas e, com isso, nossas atividades nessa frente de trabalho estão paradas. Há, ainda, pressão do MEC para que nosso currículo deixe de ser orientado para a pesquisa e volte-se para conteúdos predefinidos, sem considerar os saberes dos próprios estudantes.
Passados mais de sete meses do início da pandemia, no Brasil, que avaliação o senhor faz de seus impactos entre os povos indígenas?
A Covid-19 começou a se espalhar pelo interior do estado do Amazonas em maio, atingindo indígenas e não indígenas. O atendimento à saúde indígena é incumbência da Secretaria Especial de Saúde Indígena [Sesai], que, em interpretação equivocada, entendeu que os indígenas que vivem em cidades não deveriam ser cobertos por ela. Assim, orientou essa população a procurar as Unidades Básicas de Saúde [UBS]. Mas, quando eles chegavam nas UBSs, também não eram atendidos, com a justificativa de que estavam sob a responsabilidade da Sesai. Em nenhum momento a Constituição Federal afirma que indígena da cidade deixa de ser indígena. Logo, a interpretação da Sesai estava equivocada. Em Manaus e na área metropolitana, o contágio entre indígenas foi enorme, assim como a quantidade de mortes. Por causa dessa situação, muitos morreram em casa, sem atendimento. No registro de óbito, muitos dos que viviam em cidades foram identificados como pardos, ou seja, a maioria das mortes nesses locais não foi computada como morte indígena. No começo de setembro, eram pelo menos 126 os povos contaminados na Amazônia, com muitas mortes de crianças e idosos. A perda desses anciãos impacta no processo de transmissão do conhecimento. Com isso, as cosmologias, os relatos míticos, as visões de mundo específicas desses povos correm o risco de se perder. Há também uma ruptura no processo de ensinamento das línguas tradicionais e isso tende a fragilizar a identidade indígena. Por outro lado, apesar desse panorama, constatamos outra situação para a qual ainda não temos uma explicação: por que alguns povos indígenas estão se contagiando, mas apresentam um número tão baixo de mortes? A Terra Indígena Vale Javari, onde vivem cerca de 6 mil indígenas de diferentes povos, registrou mais de 600 contagiados e três mortes. Uma das hipóteses formulada por antropólogos e indígenas sugere que populações mais próximas do estilo de vida da sociedade ocidental moderna registram mais mortes. O indígena que mora na cidade come arroz, macarrão, sardinha enlatada, tem problemas de obesidade e diabetes que o tornariam mais frágil ao novo coronavírus, se comparado com aquele que vive próximo da floresta e tem um estilo de vida mais saudável. Eu não concordo com essa ideia da vulnerabilidade epidemiológica indígena para justificar o modo como a Covid-19 tem atingido os povos tradicionais. É um vírus novo, que afeta igualmente indígenas e não indígenas. A vulnerabilidade dos indígenas, e da população em geral, torna-se mais evidente entre aqueles que vivem em situação de marginalidade social, com alimentação e moradia precárias e que, por isso, são suscetíveis a sucumbir a qualquer outra doença.