Camila AlviteEstevão passava às vezes diante de casa e minha irmã já o vira no ônibus, o que garantira uma observação: ele punha tudo num olhar em que parecia haver certa curiosidade ardente tolhida pela inibição e, sem nunca mudar de roupa, dissolvia-se no nada minucioso da multidão, um livro sob o braço. Não nos preocuparíamos com ele se minha mãe não ficasse intrigada com aquele olhar. Em suas saídas pelas vizinhanças de manhã para ajudar doentes, descobrira que ele vinha do conjunto de casas malfeitas que uma imobiliária alugava numa rua curta; eram quase miseráveis e, no entanto, tinham dependências e fundos sublocados e tudo levava a crer que Estevão morava numa delas. Nunca estava à vista, mas uma vez surpreendeu-o olhando para ela de uma dada passagem obstruída por material de construção. Depois, fez o gesto a um só tempo embaraçado e elegante de cumprimentá-la tirando e repondo um velho boné, como que se desculpando pelo fato de tê-la olhado primeiro. Ela comoveu-se. Era o tipo de escrúpulo que revelava uma boa educação inusitada naquele canto.
Ela incumbiu-me de saber mais. Fui ao bar sem nome de uma esquina meio em escombros – no fim do dia, levas aleatórias de homens eram fontes seguras, desde que o interesse não parecesse evidente demais. “Ah, é o Estevo dos livros…”, ouvi de um deles. “Sempre diz que, se a gente quiser ler, pode pegar uns livros lá com ele. Conheço quem pega, não devolve e tenta vender, isto sim. Mas é uma fria, ninguém quer, ninguém compra.” Perguntei da casa, alguém me apontou uma vaga janela sombreada por um mamoeiro alto. Como entrar? “É só bater na porta da frente, que é do Nestor. O quartinho é lá no fundo…” Alguém gritou: “Não acende um fósforo perto do Nestor, viu? Pode pegar fogo no bafo…” – e vários riram.
Não tive dificuldade de passar por um mulato gordo cuja fala era meio ininteligível – mais rindo do que falando, fez um sinal com o polegar para que eu avançasse. Bati. Estevão me fez entrar e sentar num banco de canto de seu cubículo quase nu, mas muito limpo. Ousei falar um pouco demais, de Verne, de Stevenson, dos livros de aventura que andava lendo. Foi complacente com o que devia lhe parecer uma tentativa adolescente de afetar cultura, sorriu e conduziu-me a um quartinho. Os livros estavam enfileirados com cuidado, mas eu desconhecia a maior parte dos títulos. Falou-me da raridade de algumas edições, apontou desenhos em folhas de rosto, e, por fim, sentou-se e abriu uma garrafa de conhaque barato, vertendo-o numa caneca amassada, sem ousar me oferecer. Não usava camisa e, como olhei para algumas cicatrizes entre seu tórax e o ombro esquerdo com indiscrição quase involuntária, ficou pensativo. Tomou a decisão de ir para o quarto, e, ao voltar dele, cobrira-as com uma blusa larga. Trazia-me um livro.
Era uma coletânea do que me pareceu prosa poética. “Um autor que conheci por aí, nas estradas…”, murmurou. “Acho que nunca ninguém o leu. Edição tão limitada!” Coçou a barba: “Gosto de coisas assim, que foram se perdendo, que só vão ser lidas por acaso e compreendidas, nunca…” Parou para olhar-me fixo – e foi tão cravado, vulnerável e cúmplice o olhar que, decididamente, baixei a cabeça, evitei pensar. Depois, pareceu ouvir algo que lhe agradou, esticou o indicador, pedindo silêncio. Não entendi. Levou-me até a janela. Alguns pingos de uma rala chuva de outubro que começava caíam com um baquezinho característico sobre as folhas do mamoeiro. “Não é maravilhoso ouvir essas coisas, o começo de uma chuva, essa conversinha miúda e essencial entre água e folhas?”
Minha mãe ficou sabendo pouco sobre ele, porque a lembrança das cicatrizes, da barba e dos olhos vulneráveis altamente interessados, dos pingos iniciais de chuva deixava-me confuso, querendo resumir coisas que decididamente me escapavam e, se reduzidas a uma explicação, seriam empobrecidas. Tranquei-me com o livro. Fragmentos assinalavam paradas em rodoviárias, pensões, trapiches, terrenos baldios, em Quito, em Lima, Montevidéu, Bogotá. Alguém que viajava, que não estava à vontade em lugar algum, mas que ouvia, registrava fantasmas, formatos de nuvens, diferentes sonoridades do vento, cantos de pássaros, pântanos, alturas.
Quem era ele? Eu o via como alguém que poderia me ensinar tudo, não houvesse entre mim e a possibilidade de aprendizado todos os muros, todas as restrições e interdições do mundo. Essa criatura dava-se por ímpar e era ímpar. Solitária, mas querendo romper a solidão fosse pelo avanço por estradas sul-americanas, fosse pela escrita. “Noite negra, muito negra/ de uma única estrela/ e quem senão eu/ quem senão eu/ para vê-la?”, dizia uma página; “Yo soy tu hijo/ mi madre estraña/ yo soy tu nido, mi grande araña”. Paulo Amiel. Bati na testa, me repreendendo: claro, não havia Paulo Amiel, que estúpido, eu… O olhar fixo do cubículo foi se arredondando diante de mim, trazendo de volta uma identidade precisa, inequívoca.
Em certos dias ele saía com uma carriola com livros para oferecer nas ruas; aceitava doações de gente cansada e distraída, que tinha volumes por enfeite em alguma estante da sala ou coleções incompletas compradas e esquecidas; as pequenas campanhas não tinham efeito sensacional algum, por vezes eram de uma desolação absoluta, obrigavam-no a parar e a ficar olhando, impotente, as antenas de televisão que aumentavam nos telhados. Decerto viajava, porque de repente não o viam mais e, quando retornava, a discrição do cômodo de fundos não deixava isso publicamente certo.
Mas eu o revi, depois de muitas semanas de releitura. Sentado numa mureta de uma escola primária onde nenhum dos professores que chegavam de carro teria uma ideia do seu papel, estava cansado. Olhou-me com certa ansiedade. “Gostou? Esse Amiel não é mau poeta”; “É um poeta e tanto. Com certeza, é um grande sujeito”; “Não, não, as obras são muito melhores que os autores. Autores são ruínas humanas, contradições…”; “Em todo caso, é alguém que eu gostaria de conhecer”, provoquei, mas ele não se denunciou: “Vaga por aí, eu mesmo só o vi uma vez”. Olhou para o céu e pareceu inquietar-se com o sinal de que o dia acabava. Deu um sorriso, despediu-se.
Minha irmã ainda o viu, no ônibus, semanas depois. Mas a ausência ficou longa demais. Fui procurá-lo, decidido a ser mais direto, atravessando o bom número de quarteirões que nos separavam do conjunto. No bar, o torpor do desinteresse entremeado por vários “não sei”. Mas houve quem arriscasse falar: “Tocaram fogo, e não foi no bafo do Nestor…”; “Santo não era, se tão procurado…”; “É, mas não acharam o homem…”; “Não vão achar mesmo; deve ser especialista em sumir.” Corri para o cubículo. O incêndio escurecera paredes, muita coisa revirada, trens desaparecidos, e era possível imaginar pilhagens de vizinhos, entradas a qualquer hora, sob a vista inepta de Nestor. A prateleira se reduzira a algumas tábuas soltas. Recolhi folhas de um caderno espiral aos pedaços, um toco de lápis, um fragmento de mapa. Talvez dali, dos espaços amarelos cheios de ramificações de rodovias, estradas, rios, brotasse uma pista.
Minha mãe calou-se quanto a fuxicos sobre os acontecimentos que deviam ter-lhe sido fornecidos em alguma de suas novas visitas ao conjunto. Ninguém ousava falar nada, nada restituiria Estevão, mas, numa noite, ouvindo esboço de chuva nas folhas de uma goiabeira, sonhei um sonho que não queria que acabasse. Despertei, dormi de novo, para tentar continuá-lo. E a continuação se deu: de lá dos fundos de algum remoto país vagamente azul ele voltava, acenando de um entroncamento rodoviário, com um livro sob o braço. Eu me atirava em sua direção, mas não conseguia me aproximar, pois estava sempre muitos passos adiante. De longe, sempre de longe, ergueu o livro, sacudiu-o, enfático – que eu nunca o esquecesse; depois, tirou o boné, fez uma reverência, apontando para uma estrada que serpenteava sem fim por entre serras. A seguir, repondo-o, desapareceu.
Chico Lopes é jornalista, tradutor e escritor, autor dos livros de contos Nó de sombras (2000), Dobras da noite (2004) e Hóspedes do vento (2010).
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