Pōwehi. A expressão significa algo como “criação adornada, sombria e imensurável” e aparece algumas vezes no Kumulipo, cântico havaiano do século XVIII que narra em 2.102 versos a origem do mundo. Pōwehi foi o termo escolhido por Larry Kimura, professor de línguas nativas na Universidade do Havaí, Estados Unidos, para nomear a imagem de algo jamais visto anteriormente: a vizinhança de um buraco negro.
Apresentada em uma conferência de imprensa realizada em 10 de abril, a imagem revela um círculo colorido ligeiramente desfocado, ao redor de uma região central enegrecida (ver infográfico). Ela resulta da primeira observação daquilo que é possível enxergar nas proximidades de um buraco negro. No caso, o buraco negro do centro da galáxia Messier 87 (M87), situada no céu em direção à constelação de Virgem. O nome Pōwehi ainda precisa ser submetido à aprovação da União Astronômica Internacional antes de ser formalmente adotado.
A mancha escura envolta pelo anel iluminado no centro da M87 é a sombra deixada pelo horizonte de eventos, região a partir da qual a gravidade cresce absurdamente e captura tudo o que está por perto – a matéria e a energia que atravessam o horizonte de eventos termina comprimida em um único ponto, chamado pelos físicos de singularidade. O anel, tingido artificialmente com cores que vão do amarelo-claro ao vermelho, é a porção mais interna de um disco de gás ultra-aquecido, que espirala na vizinhança do horizonte de eventos antes de ser capturado e perder contato com o Universo. É o brilho desse gás que permite delinear a sombra do horizonte de eventos do buraco negro.
A imagem é a evidência mais direta da existência de um buraco negro. Ela resulta do esforço de mais de 200 pesquisadores do projeto Telescópio Horizonte de Eventos (EHT), consórcio internacional que usou dados de oito observatórios de radioastronomia situados em diferentes pontos do planeta, programados para funcionar como se fossem um radiotelescópio com o tamanho da Terra (ver infográfico).
“Vimos o que se pensava ser invisível”, afirmou o astrônomo norte-americano Sheperd Doeleman, diretor do projeto EHT, ao apresentar a imagem na conferência de imprensa realizada em Washington, Estados Unidos. “Conseguimos algo que se presumia ser impossível há apenas uma geração”, disse Doeleman, que é pesquisador do Centro de Astrofísica Harvard & Smithsonian, em Massachusetts.
Buracos negros são os objetos mais insólitos do Universo. Sua existência só começou a ser imaginada a partir de 1916, depois que o físico e astrônomo alemão Karl Schwarzschild (1873-1916) publicou uma solução, obtida entre as batalhas contra a Rússia na Primeira Guerra Mundial, para as equações da teoria da relatividade geral, de Albert Einstein (1879-1955). A solução que Schwarzschild encontrou definiu a distância a partir da qual um corpo de massa muito elevada passaria a atrair tudo o que está ao redor. Essa distância, chamada de raio de Schwarzschild, é tão maior quanto mais elevada a massa concentrada na singularidade e determina o horizonte de eventos do buraco negro. Quando esses resultados foram apresentados, Einstein e outros físicos o acharam interessante, mas improvável de ocorrer na natureza. Apenas meio século mais tarde, a partir da publicação de estudos teóricos de corpos com massa elevada em rotação e da observação de objetos celestes compatíveis com buracos negros, é que se começou a levar a sério a possibilidade de esses objetos existirem.
“Desde as décadas de 1960 e 1970 havia evidências indiretas da existência desses objetos”, conta o astrofísico Daniel Dutra, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Contudo, ter uma imagem do horizonte de eventos nos dá uma confiança de que dificilmente seria alcançada com indícios indiretos, por mais numerosos que fossem.”
Embora o buraco negro da M87 tenha uma massa extremamente elevada, cerca de 6,5 bilhões de vezes maior que a do Sol, é difícil observar o brilho do gás a sua volta. É que esse buraco negro está tão distante (sua luz levou 55 milhões de anos para chegar ao nosso planeta) e a sombra de seu horizonte de eventos é tão pequena (tem tamanho comparável ao de uma laranja na superfície da Lua vista a partir da Terra) que só recentemente se conseguiu uma estratégia para enxergar os seus limites. Para isso, a equipe do EHT teve de aprender a fazer os oito radiotelescópios funcionarem em conjunto e desenvolver algoritmos para tratar os dados e reconstruir a imagem (ver reportagem).
Com base nos cálculos da relatividade geral, esperava-se que, se o buraco negro estivesse imerso em uma região brilhante, como o interior de um disco de gás incandescente, seria possível observar uma sombra com determinada forma e tamanho. Jamais, porém, havia-se conseguido telescópio com resolução suficiente para registrá-la.
As observações que permitiram gerar essa imagem apresentada agora foram realizadas em abril de 2017 e produziram cerca de 5 petabytes de dados (5 mil terabytes ou 5 mil anos de música guardada em arquivos digitais), armazenados em centenas de discos rígidos de memória e transportados de avião para dois centros de análise. Nesses centros, as equipes trabalharam por dois anos para correlacionar os dados dos diferentes observatórios e fazer as devidas correções. A interpretação dos dados e a estratégia de análise foram apresentadas em seis artigos científicos publicados em abril em uma edição especial da revista The Astrophysical Journal Letters.
“A imagem obtida pela equipe do EHT representa o limite de nosso conhecimento”, afirma o físico teórico Bruno Carneiro da Cunha, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ainda que não tenha nitidez perfeita, ela é considerada um feito científico por duas razões. A primeira é que permite estimar com mais precisão as características do buraco negro da M87 – antes, por exemplo, calculava-se que sua massa fosse 3,5 bilhões de vezes maior que a do Sol. A segunda e mais importante é que ela confirma que a teoria da relatividade geral passou por mais um teste e permite descrever com precisão até mesmo os fenômenos mais extremos do Universo. O primeiro teste foi a observação há 100 anos da curvatura da luz ao passar próximo ao Sol, medida durante o eclipse de 1919 (ver Pesquisa FAPESP nº 278).
Anatomia de um buraco negro
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“O fato de se haver observado o horizonte de eventos com o tamanho estimado a partir de cálculos da teoria da relatividade geral deve reduzir brutalmente a atenção dada a teorias de gravitação alternativas à de Einstein”, avalia o astrofísico teórico Rodrigo Nemmen, da Universidade de São Paulo (USP).
“A observação da mancha no centro da M87 é considerada a evidência mais direta da existência de buracos negros, embora não seja a única”, explica o físico George Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). Em setembro de 2015, o Observatório Interferométrico de Ondas Gravitacionais (Ligo), nos Estados Unidos, havia obtido indícios indiretos ao detectar ondas gravitacionais geradas pela colisão de dois buracos negros (ver Pesquisa FAPESP nº 241).
Avery Broderick, pesquisador do Instituto Perimeter e da Universidade de Waterloo, ambos no Canadá, afirmou durante a conferência de imprensa em Washington que a teoria da relatividade geral faz uma predição precisa dos componentes do buraco negro. Os dados obtidos pelo Ligo e pelo EHT, prosseguiu o pesquisador, indicam que os buracos negros, com massa elevada ou pequena, guardam analogias importantes e devem se comportar do mesmo jeito.
Segundo a astrofísica brasileira Lia Medeiros, integrante da colaboração EHT e atualmente pesquisadora da Universidade do Arizona, Estados Unidos, os resultados apresentados agora ajudarão a conhecer melhor a geometria e o comportamento do disco de matéria que alimenta os buracos negros. “Ainda há muito por compreender. Por exemplo: como são criados os jatos emitidos por alguns buracos negros, como o da galáxia M87”, diz.
Espera-se para os próximos anos obter imagens ainda mais nítidas da vizinhança do buraco negro da M87. Três outros radiotelescópios devem integrar a rede e aumentar em cerca de 30% seu poder de resolução. Antes, porém, talvez seja apresentada outra imagem: a dos arredores do buraco negro no centro da nossa galáxia, a Via Láctea. Conhecido como Sagitário A*, ele tem massa 4,1 milhões de vezes maior do que a do Sol e está situado 2 mil vezes mais perto da Terra do que o buraco negro da M87. Segundo Doeleman, essas imagens são mais complexas e a equipe do EHT ainda trabalha nelas.
Artigos científicos
THE EVENT HORIZON COLLABORATION; et al. First M87 Event Horizon Telescope Results. I. The Shadow of the Supermassive Black Hole. The Astrophysical Journal Letters. 10 abr. 2019.
THE EVENT HORIZON COLLABORATION; et al. First M87 Event Horizon Telescope Results. II. Array and Instrumentation. The Astrophysical Journal Letters. 10 abr. 2019.
THE EVENT HORIZON COLLABORATION; et al. First M87 Event Horizon Telescope Results. III. Data Processing and Calibration. The Astrophysical Journal Letters. 10 abr. 2019.
THE EVENT HORIZON COLLABORATION; et al. First M87 Event Horizon Telescope Results. IV. Imaging the Central Supermassive Black Hole. The Astrophysical Journal Letters. 10 abr. 2019.
THE EVENT HORIZON COLLABORATION; et al. First M87 Event Horizon Telescope Results. V. Physical Origin of the Asymmetric Ring. The Astrophysical Journal Letters. 10 abr. 2019.
THE EVENT HORIZON COLLABORATION; et al. First M87 Event Horizon Telescope Results. VI. The Shadow and Mass of the Central Black Hole. The Astrophysical Journal Letters. 10 abr. 2019.