OtávioZaniA Corporação se erguia, vista do canto de rua onde ele se encontrava agora, como o maior edifício da cidade ilimitada, todas as suas luzes acesas, partículas luminosas de alaranjado contra um fundo cinzento. Na verdade, chamar de cinzento aquele céu era condescender em usar uma cor conhecida para qualificá-lo: sua indefinição cromática era muito mais híbrida. Ao olhar para o edifício, na verdade, ele já se sentia fatigado e oprimido, com o esforço de manter a cabeça esticada para dar conta de sua altura, a imponência como uma espécie de intimidação maciça que, pelas dimensões espetaculares e as luzes, deixava o espectador, qualquer bicho humano minúsculo, indeciso entre o deslumbramento e a hostilidade. Ele se esgueirou para um canto mais escuro da rua, como se precisasse do conforto de alguma coisa furtiva, escura, para não se sentir tão pequeno.
Desde a demissão, estava assim, sempre propenso a andar por ruas de pouco trânsito ao sair de casa, quando saía, quando os ruídos lá fora não eram tão assustadores, sugerindo lutas titânicas entre entidades maquinais que produziam guinchos de acabar com qualquer tímpano e um fragor de aviões em queda. A demissão se dera por causa da idade, supôs, depois de uns risinhos e sinais de cabeças incrédulos, sempre silenciosos, de outros funcionários, quando ele arriscou uma queixa. Todos inteiramente submetidos, ficavam satisfeitos em serem cúmplices com essas decisões de cúpula e se divertiam sempre com a infelicidade dos demitidos, mantendo um mutismo cheio de superioridade. Sem mulher, sem filhos, os dez anos que lhe restavam em hipótese otimista seriam passados ao lado de um gato, que seria trocado por outro e por mais outro, numa rua de onde as últimas árvores já teriam sido arrancadas.
Havia tempos tudo lhe doía: a região lombar, os calcanhares, o pescoço, os braços, e seus movimentos haviam começado a ser mais lentos, minuciosamente pensados, como se o chão contivesse hieróglifos que precisassem ser lidos com cuidado para que não caísse. Esse olhar cabisbaixo lhe dava uma forma de conhecimento nova, muitas pernas e pés, sapatos e vozes com caras correspondentes apenas supostas, e os quadrados do calçamento entremeados de capim, alguma barata morta, restos de comida, latas de cerveja, sombras de esguelha, subiam até seus olhos junto com mensagens inscritas numa língua que acreditava estar começando a decifrar. Erguer a cabeça e encarar o que restara da cidade às vezes parecia requerer um esforço sem tamanho, e ele não queria ver o que sabia que veria.
Alguma coisa sucedera lá, no edifício, que o decretara inexistente. No trabalho, tinha uns impulsos erráticos de sociabilidade que deixavam alguns de seus colegas constrangidos, sentia-se sempre menos limpo do que era exigido, mais pesado, visceral, sem aquele ajustamento níveo e fácil dos outros. Não medira palavras, mesmo assim, não controlara adequadamente seus impulsos? Onde teria errado? Qual fora a infração, exatamente? A idade não explicava tudo, outros sexagenários eram mantidos em funções especiais, mas ele, sempre ele, tinha reservas à filosofia da Corporação, isso era sentido com toda certeza. Mesmo que não as expressasse, mesmo que fosse agradável e submisso o quanto lhe era possível, o agrado e a submissão não eram inteiros, não representavam a sujeição ideal desejada.
Sempre assim: alguns quarteirões percorridos e era voltar para casa. Voltava, os calcanhares latejando, pressa de abrir o portão, de se deparar com a varanda familiar. As luzes da Corporação não saíam de sua vista, nem mesmo ao fechar a janela de seu quarto – umas frestas que nunca pudera tapar deixavam entrar aquele alaranjado-ouro intenso onipresente lá fora, perturbavam o seu sono povoado de espectros que desfilavam incessantes, mutáveis, na tela de seus olhos fechados. Eram luzes que o queriam, que o exigiam insone.
Certa manhã encontrou a geladeira desprovida de uns restos de comida que o vinham sustentando, e, achando num canto uma lata de sardinha com óleo para o terceiro gato daquele ano lamber, achou que era preciso tomar uma decisão. De algum modo, isso fora sentido por alguém, uma pessoa de andar curvo, pois ele encontrara, na sua perscrutação do calçamento, algumas mensagens nem tão crípticas, não percebidas pelas viaturas sempre vigilantes da Corporação. Os cabisbaixos da cidade, todos velhos, não ofereciam a essas viaturas uma preocupação maior. E ele seguira lendo calçamento afora, sem despertar suspeita alguma. Havia um lugar. O Lugar, porque não restava dúvida que a coisa ficava subentendida em maiúsculas.
As mensagens o levaram a uma casa em ruínas num quarteirão desprovido de qualquer transeunte às onze de uma certa noite. Pichações e cartazes nos muros de que só restavam trechos intactos indicavam que numa das praças do centro haveria execuções de indesejáveis para a Corporação com entrada gratuita, sob patrocínio de um novo refrigerante. Ele penetrou pelos escombros e foi acolhido por um gato, quase gêmeo em cores e malhas do seu. No topo de uma escada, ele miou e o secundou na entrada num cômodo escuro, de onde vinha uma única luz baça. Havia ali um vulto, encostado a um piano. Ele levantou-se, afastou-se devagar do instrumento e foi para uma área junto a uma janela, revelando-se: uma mulher. Envelhecera mais do que ele. Seu relato compreendia muito mais anos de entrega à Corporação. Ela parecia querer esconder o rosto o tempo todo, e um escrúpulo fazia com que ele não a olhasse diretamente. Precisava de véus, ainda que não os tivesse, precisava evitar qualquer violação do mundo. Perguntou se ele gostava de música e sentou-se ao piano para arranhar algo que talvez fosse um dos improvisos de Schubert.
A decisão, disse ela depois, era a única possível para quem, como eles, só podiam infringir, e ele compreendeu. Ela pegaria em sua mão, se ele tremesse. O lugar de que ela lhe falou estava repleto de pessoas que ele nunca vira, mas que haviam morado ali, muitos anos, na vizinhança ou pouco mais além, sempre invisíveis, emparedadas, ou sem se olharem pelas poucas ruas que lhes restavam para percorrer, e lá estariam todos juntos, protegidos por uma invisibilidade ainda maior, numa floresta com exemplares sobreviventes de animais extintos e de arvoredo inteiramente fechado. Ele beijou a mão longa, ossuda.
Sentaram-se num canto escuro entre escuridões, como se ela soubesse o ponto exato onde as luzes do edifício não chegariam pelos restos da janela, com os farrapos de uma persiana estalando ao vento noturno. O gato subiu no parapeito, miou, e a mulher fez um “xiu”, a que o bicho obedeceu. Ficou olhando-os longamente. Depois, despedindo-se, saltou sobre um telhado próximo e foi tragado pela noite que se incumbiria de conduzi-lo naturalmente a algum corpo de gata ou a alguma cozinha devassada.
Chico Lopes é autor de três livros de contos e seu romance de estreia, O estranho no corredor, foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2012.
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