A cidade de São Paulo ganhou 1 milhão de excluídos nos dez últimos anos. Atualmente, dos mais de 10 milhões de habitantes da capital, em torno de 8,9 milhões vivem abaixo de um padrão desejável de vida: além de baixa renda, têm dificuldade de acesso à educação, saneamento, habitação, entre outros serviços. Essa deterioração na qualidade de vida da população em 76 dos 96 distritos em que se divide a capital é resultado da ausência ou inadequação de políticas públicas e da carência na oferta de equipamentos sociais. E o quadro é ainda mais grave: a falta de planejamento aprofundou as desigualdades intra-urbanas. Na Vila Jacuí, por exemplo, há um déficit de mais de 27 mil vagas nas creches, um problema desconhecido para a população do Jaguaré, Brás ou Bom Retiro; para cada novo emprego em Aricanduva são criados 1.114 postos de trabalho na Sé; para cada morador de rua no Morumbi, existem 1.061 na Mooca, e, no Jardim Ângela, a taxa média de homicídios é 28 vezes maior que a de Moema.
Essa topografia social perversa está estampada no Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo, destaque do projeto de pesquisa Dinâmica social, qualidade ambiental e espaços intra-urbanos em São Paulo: Uma análise socioespacial, desenvolvido no âmbito do Programa de Pesquisas em Políticas Públicas da FAPESP.
Resultado da parceria entre Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Instituto Pólis, o mapa, já em sua terceira versão, foi elaborado a partir da comparação dos dados dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1991, 1996 e 2000, de estatísticas municipais e dados da pesquisa Origem/Destino da Companhia do Metropolitano de São Paulo, que subdivide a cidade em 270 regiões. A pesquisa utiliza uma metodologia de análise geoespacial e tratamento matemático-computacional das informações em ambiente de Sistema de Informação Georreferenciado (SIG), que permite identificar “o lugar” dos dados nas distintas áreas da cidade e na criação de um Índice de Exclusão/Inclusão (IEX) que possibilita classificar os níveis de qualidade de vida nos diversos distritos de São Paulo. “As informações geradas pelo mapa são estratégicas para a definição de políticas públicas adequadas às necessidades de cada região”, diz Aldaíza Sposati, coordenadora do projeto e secretária de Assistência Social do município de São Paulo.
O Índice, construído pela equipe de pesquisadores que integra o projeto, é uma espécie de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para classificar a qualidade de vida dos países, só que ampliado. Enquanto o IDH utiliza quatro indicadores para avaliar a situação socioeconômica das várias nações, o Índice de Exclusão usa 47 variáveis – que a equipe de pesquisadores chama de “utopias” – agregadas em quatro grandes áreas: autonomia, qualidade de vida, desenvolvimento humano e eqüidade.
Os pesquisadores responsáveis pelo projeto desenvolveram uma metodologia de análise semelhante em Santo André, no ABC paulista, e começam a mapear as desigualdades intraurbanas nos municípios de Campinas, Guarulhos, Piracicaba e Goiânia. “Os dados principais são do IBGE, mas é fundamental compatibilizá-los com informações das prefeituras”, explica Dirce Koga, pesquisadora da PUC-SP, que integra o grupo.
Qualidade de vida
O indicador de Autonomia avalia a renda dos chefes de família e a oferta de emprego nos diversos distritos; o de Qualidade de Vida mede o acesso a serviços, como saneamento, saúde, educação, além de densidade habitacional e conforto domiciliar; o indicador Desenvolvimento Humano considera o nível de escolaridade dos chefes de família, longevidade, mortalidade infantil e juvenil e a violência; e o índice de Eqüidade registra o grau de concentração de mulheres na condição de chefes de família. A cada um desses indicadores foram atribuídas notas decimais negativas e positivas, variando de -1 a 1, sendo o zero definido como o padrão básico de inclusão social. Os distritos foram classificados nesses intervalos em função da distância positiva ou negativa do padrão.
De acordo com esse critério, o pior lugar para se viver em São Paulo é o Jardim Ângela, com índice -1; e o melhor, Moema, com índice 1. Dentro de um padrão desejável está a Vila Jaguara, com índice 0. Segundo essa avaliação, 76 dos 96 distritos da capital foram considerados excluídos. A Zona Leste perdeu para a Sul a condição de região mais carente da capital . “Constatamos que, na última década, os níveis de exclusão na Zona Leste não se alteraram. A região conseguiu melhorias coletivas. Na Sul, a exclusão se intensificou. Precisamos agora entender como isso ocorreu”, afirma Aldaíza.
Além da Zona Sul, a situação também é grave na região que faz limite com a serra da Cantareira, a noroeste da capital, onde se concentra um grande número de distritos excluídos. O mais perverso é que essas são áreas de mananciais e de preservação ambiental que foram “congeladas”, conforme diz Aldaíza, tanto do ponto de vista dos investimentos como de melhorias. Desvalorizadas, elas são objeto de ocupação e estão sendo degradadas.“Os índices de exclusão estão comprometendo o futuro da cidade”, alerta Aldaíza. “Não há combinação de política ambiental e de defesa humana.”
MAPAS SIRIO J. B. CANÇADOPlanejamento urbano
O Mapa da Exclusão faz uma radiografia detalhada da topografia social de São Paulo e é uma importante ferramenta de planejamento urbano. O primeiro mapa, que compara os dados dos censos de 1991 e a recontagem realizada em 1996, foi utilizado pela Secretaria Municipal da Educação, durante a gestão do prefeito Celso Pitta, para avaliar a demanda educacional nas diversas regiões. O segundo, publicado em 2000 – já no âmbito do programa de Políticas Públicas da FAPESP –, tem sido ferramenta estratégica para a definição de áreas de implantação de programas sociais na gestão da prefeita Marta Suplicy. “O foco são as áreas de maior índice de exclusão”, diz Aldaíza.
A terceira versão, que incorpora à série histórica os dados do censo de 2000, ainda está em fase de conclusão, mas os resultados preliminares já são referência para debates sobre o Orçamento Participativo da prefeitura e para o planejamento de programas de saúde.
“As políticas públicas se beneficiam da espacialização dos dados. Essa metodologia de análise permite a compreensão das diferenças entre os vários territórios de um mesmo município”, diz Gilberto Câmara, coordenadorgeral de Observação da Terra do INPE e coordenador-assistente do projeto. “Os pobres do Itaim Paulista não são os mesmos do Jardim Ângela”, resume. O uso da estatística espacial, ele ressalta, é bastante sensível à análise e subsidia as avaliações qualitativas. Aumenta a possibilidade de se identificar e focar “um alvo”, no caso das políticas públicas, ampliando as chances de sucesso de projetos e programas sociais e evitando o desperdício de recursos públicos. “O mapa da exclusão é uma forma de aumentar a capacidade de decisão do prefeito”, diz Câmara.
A metodologia de análise utilizada no projeto revela, por exemplo, que entre 1996 e 2001, período em que a população da capital registrou crescimento de 2%, o número de habitantes do distrito de Anhangüera aumentou 129,96%, enquanto o do Pari decresceu 27,54%. Os números sugerem que, nesse período, houve uma intensa migração intra-urbana dos distritos mais centrais, como o Pari, em direção a áreas periféricas, como Anhangüera, Grajaú, Cidade Tiradentes, entre outras, carentes de equipamentos e serviços públicos para atender às demandas da população ampliada.
O movimento populacional comprometeu a qualidade de vida nos diversos distritos paulistanos. O Índice Autonomia, por exemplo, mostrou uma impressionante desigualdade na oferta de emprego entre os vários distritos paulistanos. O da Sé, de baixa densidade de moradores, concentra a maior taxa distrital, com 6,80 empregos por habitante. O seu contraponto é Anhangüera, região que, apesar da explosão demográfica registrada na década, manteve estável a taxa de crescimento da oferta de trabalho de 0,18 vaga por habitante. A falta de emprego obriga o deslocamento diário dos trabalhadores/moradores para outras áreas com maior oferta de trabalho. “Essa situação deveria exigir do poder público local maior atenção no que diz respeito aos transportes coletivos”, diz Dirce Koga.
O quadro ocupacional se agrava quando se contabiliza a oferta distrital de emprego em relação à população economicamente ativa (PEA), entre 14 e 69 anos: existem empregos para 64% da PEA na cidade. Os demais 36%, pelo menos estatisticamente, estão fora do mercado de trabalho. Nessa perspectiva de análise, a pior situação é a de Cidade Tiradentes: de cada dez moradores, menos de dois (1,8) tem emprego no próprio distrito.
A menor renda familiar, correspondente a 4,64 salários mínimos, está no distrito de José Bonifácio, e a maior, quase 41 mínimos, em Moema. O padrão básico de renda, base para a construção do Índice de Exclusão, foi de 14 mínimos, encontrada no Bom Retiro. Por esse critério, 20 distritos tiveram nota positiva, e 54, notas negativas.
Serviço deficitário
O déficit de vagas nas creches públicas e privadas na cidade cresceu 34%, desde 1995. É certo que, nesse período, a população entre 0 e 4 anos reduziu 12%, mas, ainda assim, as vagas são insuficientes. O problema é particularmente grave em Vila Jacuí, onde o déficit saltou de 540 para 10.014 vagas. Também faltam vagas nas escolas de educação infantil, que atendem crianças entre 5 e 6 anos de idade, em 85 dos 96 distritos paulistas. Em algumas áreas, como o Pari – que teve decréscimo de população –, foi registrado superávit de 83,49%. As vagas nas escolas de ensino fundamental também não atendem à demanda em pelo menos 13 regiões da cidade. Na República, só existem matrículas em escola pública para 868 das 3.646 crianças, um déficit de 76,19%.
Não existem unidades de saúde em dez distritos. Nas áreas centrais, o déficit chega a 100%.Noutras 76, a cobertura está abaixo do padrão básico de um posto de atendimento para cada grupo de 20 mil habitantes. A pior situação é a do Campo Limpo. Já em Jaguara ou na Ponte Rasa, há superávit.
A pesquisa mostra pelo menos um ponto positivo: o percentual de chefes de família sem instrução baixou de 9,47% para 6,45%, em 1996, uma redução de quase 32%. Ainda assim, em 47 distritos, o percentual de chefes de família analfabetos superava a média dos municípios, em alguns casos em até 20,08%. A maior concentração estava no Grajaú, e a menor, na Barra Funda. O percentual de chefes de família com oito a 14 anos de estudo cresceu 32,20%, com destaque para Lajeado. Outra boa notícia é que o número dos que têm nível universitário cresceu 13,85% no conjunto da cidade, no mesmo período. A maior incidência de diplomas de 3º grau foi registrada no distrito do Iguatemi.
Os índices de longevidade também são positivos. E caiu o número de anos potenciais de vida perdidos, calculado pela diferença entre o ano da morte e a expectativa de vida da população, em 23 dos 96 distritos. A taxa de homicídios, no entanto, cresceu 11,33%, entre 1996 e 1999. No Jardim Ângela, a taxa – que é calculada pelo número de homicídios multiplicada por 100 mil habitantes e dividida pela população do distrito – foi de 94,42. Na Sé, essa taxa saltou de 37,52 para 93,47.
Novas utopias
O projeto entra na fase II do Programa de Pesquisas em Políticas Públicas. As metas são produzir novos mapas, aperfeiçoar os indicadores, rever o conteúdo do indicador de eqüidade e agregar ao Índice de Exclusão/Inclusão novas “utopias”: democracia, cidadania e felicidade. “Trabalhamos com a idéia de que há um sofrimento na exclusão e que a felicidade é um direito público”, explica Dirce.
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“A gente faz o que Deus quer”
Inscrustada no alto do Jardim Ângela, Copacabana parece uma cidade fantasma. Às 13h30 de uma segunda-feira, as ruas estão vazias e as casas trancadas. Todas têm as portas e janelas protegidas por grades pontiagudas de alumínio. Os bares estão igualmente fechados. O silêncio parece absoluto. Na esquina, um grupo de crianças joga bola num terreno baldio atulhado de lixo. Duzentos metros à frente, cinco garotos empinam pipa sobre uma laje que se debruça sobre a Vila Tupi. Dizem que lá, sim, é que os chefes do tráfico impõem aos moradores toque de recolher a qualquer hora do dia e da noite.
Com uma população de 250 mil habitantes, o distrito de Jardim Ângela é uma espécie de corredor isolado, na Zona Sul da cidade, um tipo de “buraco urbano” que acaba na serra do Mar. De povoamento recente, abriga uma população sem qualificação profissional e atrai grande parte do contingente de migrantes intra-urbanos. Registra a maior taxa de homicídios e o pior índice (-1) de exclusão da cidade de São Paulo. “Acho que há um certo exagero quando se fala que esta região é muito violenta”, diz Helena dos Santos, de 54 anos, 36 dos quais vividos no Jardim Ângela. “A violência está em todo lugar.” Foi ali que ela conheceu e se casou com João, que já foi até dono de caminhão, mas que hoje “dirige o caminhão dos outros”. Foi com o dinheiro que ele trazia da estrada e com o seu salário de costureira numa confecção da rua José Paulino, na região central, que ambos criaram os dois filhos. “Resolvi largar a confecção e hoje faço bolos para festas e uma ou outra costura”, conta Helena. É assim que ela está ajudando na educação de seus cinco netos, filhos do seu primogênito assassinado há dois anos. “Ele era Policial Militar, mas, naquele dia, não estava em serviço. Era domingo e ele tinha jantado com a mulher, aqui em casa. Foi morto a poucos metros daqui e até hoje não sabemos exatamente o que aconteceu”, diz, deixando claro que não gosta de tratar do assunto. Não atribui a sua tragédia pessoal à violência que campeia no Jardim Ângela.Mas confessa: “Na época, tive vontade de voltar para o interior. Mas depois pensei: a gente faz o que Deus quer. Resolvi ficar e estou bem aqui”.
Regina Eugênia, de 34 anos, três filhas, também defende o lugar onde mora há 11 anos. “Não faltam escolas para as crianças.” Ela desconhece o déficit de vagas nas creches do bairro. “Nunca precisei. Eu não trabalhava e ficava em casa com as crianças.” Regina reconhece que a região tem problemas com atendimento de saúde. “Quando alguém precisa de médico, procuramos um hospital em Campo Limpo, afinal, é para isso que servem os convênios”, afirma. Campo Limpo é distrito vizinho ao Jardim Ângela, com índice de exclusão de -0,61, e que ocupa a 27ª posição no ranking da exclusão. A grande dificuldade, confessa, está em continuar pagando o convênio médico. Seu marido era inspetor de qualidade numa grande empresa, mas está desempregado há três meses e ela “faz bicos”, como diz, para sustentar a família: passa roupas, faz faxina, cozinha. “Tivemos que cortar alguns gastos, inclusive com o convênio”, justifica.
Do outro lado da estrada do M’Boi Mirim, Maria do Socorro Pereira, 47 anos, frita mais uma rodada de pastéis sob a barraca de lona.“Tenho esta barraca há oito anos e nunca fui assaltada”, orgulha-se. A proximidade de uma Base Comunitária da Polícia Militar ajuda a intimidar.Mas ela diz que tem um pacto com quem tem “cara de bandido”.“Ofereço-lhe pastel gratuitamente e conquisto a sua simpatia.”Aguarda ansiosa que a prefeitura cumpra a promessa de transformar a M’Boi Mirim num corredor de ônibus.“Isso com certeza vai aumentar o movimento e eu vou aumentar a venda de pastéis”, prevê.
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